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De Marx para Lula

É fundamental deixar claro a todos os povos que a ação que empreenderam, na tentativa de destruição do Estado brasileiro e de seus vínculos com a sociedade, não é mais tolerável, preservando, protegendo e defendendo a promessa da Constituição Cidadã, para tocar os melhores anjos de nossa natureza.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Atualizado às 13:06

1864 parecia um ano auspicioso para a história norte-americana. Avizinhava-se o fim da Guerra Civil. Lincoln fora reeleito, por larga maioria, para assegurar a vitória da União contra a dissidência dos Estados Confederados. Sua proposta fundamental era dar fim à escravidão, concretizando a promessa de sua Proclamação de Emancipação de 1863, e ampliando a proposta de sua primeira campanha presidencial de resistência a seu avanço. A abolição definitiva ocorreria com a 13ª Emenda Constitucional, aprovada em 1865, às vésperas do fim do conflito sangrento, que se arrastava desse 1861, e do assassinato do Presidente. 

É em novembro de 1864 que o filósofo e ativista político Karl Marx redige uma Carta de congratulações ao povo americano, endereçada ao Presidente reeleito e subscrita pelos membros da Associação Internacional de Trabalhadores. Lincoln, ao responder aos trabalhadores europeus, ressaltou que as Nações existem não para si, mas para "promover o bem-estar e a felicidade da humanidade," sendo que resistência, insurgência e combate à escravidão formam a "causa da natureza humana."

Marx ressaltara que a oligarquia de proprietários de escravos tivera a vergonhosa ousadia de inscrever a escravidão na bandeira da revolta armada, alçando a propriedade a inimiga do trabalho. Colocava Lincoln como o grande líder, que encaminhava a revolução americana a ampliar sua abrangência da classe média à classe trabalhadora, de que era filho. Seu diagnóstico, porém, seriar contrariado pela história. Somente cem anos depois, duas leis determinaram o fim da discriminação racial civil, laboral e eleitoral, cumprindo a promessa da decisão da Suprema Corte, que impusera o fim da discriminação racial nas escolas, dez anos antes. Na verdade, até hoje os negros norte-americanos resistem e combatem a discriminação e a violência de que são vítimas.

Seria, então, necessário modular não apenas o otimismo da Carta de 1864, mas sobretudo os cumprimentos dirigidos a um povo que, mais de cento e sessenta anos passados, ainda preserva as estruturas e a cultura de desigualdade, exploração econômica e violência estatal contra aqueles que compõem e marcam com brilho a vida cultural, social, econômica e política dos Estados Unidos.

A reflexão que emerge da leitura desses documentos históricos guarda uma misteriosa analogia com o quadro da situação política atual brasileira. Após quatro anos de um conflito aberto e constante contra a Constituição brasileira e os direitos, deveres e políticas públicas que determina, contra o próprio povo brasileiro, em sua diversidade, trabalhamos para a difícil vitória eleitoral de um projeto democrático que assumiu o governo em primeiro de janeiro.

Lula foi escolhido para liderar o processo de recomposição do valor da Constituição, de sua interação internacional. As contradições, a violência e as desigualdades preservadas nesses duzentos anos de Brasil ainda não foram resolvidas. Aquela velha oligarquia continua presente, financiando e participando de acampamentos ilegais diante de quartéis, não se envergonhando de pregar e inscrever em suas bandeiras o fim da democracia e da república, por meio de uma intervenção militar que seria tão anticonstitucional e criminosa quanto a omissão dos agentes de Estado em reprimir e encerrar essas manifestações.

Há uma promessa renovada de emancipar o povo brasileiro, resgatando sua dignidade e alçando a programa constitucional sua participação efetiva na conformação da estrutura do Estado brasileiro. Com a experiência adquirida após seu diagnóstico equivocado, penso que Marx escreveria ao novo filho da classe trabalhadora, agora, para congratular a parcela do povo brasileiro que lhe concedeu uma vitória apertada e difícil. Levar à morte a escravidão, refletiria Marx, não basta. É preciso fazer com que as estruturas políticas e culturais do Estado e da sociedade brasileiras se transformem. Mas o pacto e o perdão concedido por Lincoln aos revoltosos e escravocratas não devem ser repetidos. É fundamental deixar claro a todos os povos que a ação que empreenderam, na tentativa de destruição do Estado brasileiro e de seus vínculos com a sociedade, não é mais tolerável, preservando, protegendo e defendendo a promessa da Constituição Cidadã, para tocar os melhores anjos de nossa natureza.

Alfredo Attié Júnior

Alfredo Attié Júnior

Jurista, filósofo e escritor. Presidente da Academia Paulista de Direito, desembargador no TJ/SP.

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