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Desafios do monitoramento com câmeras e da vigilância excessiva em espaços escolares

Heloisa Hasselmann Camardella Schiavo, Rayanne Conceição de Almeida dos Santos e Beatriz Ferreira Guimarães

A tomada de decisão sobre a adoção ou não de câmeras no ambiente escolar envolve diversos aspectos.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Atualizado às 07:23

O debate sobre o monitoramento  por meio de câmeras já se tornou usual na sociedade  e no meio acadêmico, inclusive,  tendo trazido possíveis conflitos ao discutido no Judiciário1. Embora a maior parte da população seja a favor das filmagens2, quando se trata de menores de idade, o assunto ganha contornos que provocam divergências doutrinárias entre pais e responsáveis.

Um dos pontos mais suscetíveis de controvérsias é o monitoramento de crianças em escolas. Enquanto para alguns, a medida garante a segurança dos vulneráveis e ameniza preocupações dos pais; para outros configura invasão de privacidade e intimidação dos profissionais da educação.

No âmbito internacional, a National Education Union3, um dos maiores sindicatos de professores e profissionais de educação do Reino Unido, elaborou uma política voltada para regular o uso do sistema de vigilância por meio de câmeras denominado CCTV Systems (Closed Circuit Television) em escolas. O objetivo é estabelecer diretrizes de forma que as escolas consigam implementar esse sistema para trazer segurança, mas, ao mesmo tempo, garantindo que esse uso seja responsável e seguro, em especial no que tange à proteção de dados pessoais.

A vigência da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)4 no Brasil aumenta ainda mais as discordâncias, motivo pelo qual tem sido necessário ponderar sobre a aplicação conjunta das normas que abrangem a temática.

No ano passado, foi noticiada a utilização de câmeras escondidas para monitorar alunos em locais proibidos5.  No caso em questão, a escola posicionou  câmeras  entre os azulejos dos banheiros femininos e masculinos, contrariando a Constituição Federal de 1988, que garante a inviolabilidade da intimidade no  art. 5º, inciso X e o art. 227, que garante a proteção de crianças e adolescentes pela família, sociedade e Estado. Tal conduta fere tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente ("ECA"), pelo constrangimento causado aos alunos, quanto a LGPD, pela falta de transparência e do cumprimento das exigências da legislação para proteção dos dados pessoais de crianças.

Inicialmente, o ECA6 atribui às crianças e aos adolescentes o direito à liberdade e à dignidade, deixando evidente que, apesar do poder pátrio, a garantia dos direitos individuais desse grupo não depende apenas da vontade dos pais, à luz  dos arts. 3º e 4º. Exemplo disso é a necessária consideração  do princípio do melhor interesse da criança7 e/ou adolescente, implicitamente previsto na normativa e na Constituição Federal8,  ligado à doutrina da proteção integral.

Considerando o cenário de insegurança e violência no país, é compreensível a angústia dos responsáveis. Porém, a vigilância em excesso pode interferir no desenvolvimento social e acadêmico dos menores.   

Os que defendem a utilização de câmeras em escolas sustentam que esse uso visa prevenir condutas violentas, ajudam educadores a identificar e coibir práticas de bullying, auxiliam no monitoramento de áreas das escolas como corredores, espaços de recreação e portarias, inclusive, ajudando a prevenir a entrada ou permanência de pessoas não autorizadas. Apesar de existirem vantagens na adoção de câmeras no ambiente escolar, é preciso ter muita cautela e ponderar os riscos envolvidos na realização dessa vigilância e monitoramento.

Além do princípio do melhor interesse da criança, o contraponto dos prós e contras precisa atentar para o previsto no art. 232 do ECA, pois a norma determina que constitui crime submeter qualquer criança ou adolescente à vexame. Desse modo, ao instalar monitoramento por câmeras, mesmo com intenções legítimas, é necessário ter em mente que captar imagens capazes de constranger ou expor um menor está em desconformidade com o texto legal.

Por exemplo, filmar uma criança praticante de bullying, é uma atitude que inicialmente poderia ser vista como aceitável. No entanto, existem riscos também à violação da privacidade da criança que praticou a conduta reprovável. Além disso, nessa situação, na qual a escola poderia responder judicialmente, o teor da filmagem possui potencial para impactar a vida da criança ao longo de seu crescimento, especialmente considerando a cultura de cancelamento presente na sociedade atual.

Como enfatizado, é ainda de extrema importância considerar as questões ligadas à privacidade e proteção de dados pessoais. O monitoramento implementado nas escolas deve observar os princípios e as regras previstos na LGPD, especialmente tendo em vista o potencial de uso abusivo de dados de indivíduos menores de idade, invadindo a privacidade dos alunos. Exemplificando, tal abuso pode se dar pela coleta excessiva de dados pessoais e/ou pela falta de transparência sobre diferentes operações de tratamento. Ademais, a coleta de dados de crianças e adolescentes, por regra geral, só pode ser realizada com o consentimento específico de pelo menos um de seus responsáveis legais e em destaque9.

Referente ao tema do tratamento de dados pessoais, é certo que a escola, ao coletar e tratar essas informações dos alunos, se torna controladora dos dados pessoais, e, consequentemente, a responsável pelas informações  que coleta. Dessa forma, responde por eventuais danos causados aos titulares. Isso significa que a escola deve cumprir, sobretudo, os  princípios estabelecidos na LGPD, incluindo  - mas  não se limitando - ao princípio da necessidade, adequação e finalidade, que aplicado às instituições de ensino determinará que não estão autorizadas a coletar dados pessoais e tomar medidas mais invasivas do que o necessário para a finalidade de tratamento.

Outro ponto relevante para as escolas é o estabelecimento de estruturas de governança e de segurança de informação relacionadas ao acesso aos dados pessoais de seus alunos. Quem terá acesso às imagens capturadas pelas câmeras? De que modo o acesso será feito? A preocupação com eventuais vazamentos deve levar os controladores de dados pessoais a repensar  suas estratégias  de tratamento e métodos de mitigação dos  riscos de irregularidades.

Nesse sentido, as escolas devem ainda adotar medidas como a nomeação de um encarregado (ou Data Protection Officer) para garantir a conformidade com a LGPD. Além disso, adotar políticas para regular e dar transparência a esse tratamento de dados pessoais, como a Política de Privacidade, Política de Segurança da Informação, garantida a acessibilidade da transmissão da informação e possíveis novas orientações sobre o tratamento de dados de crianças e adolescentes pela ANPD. Em acréscimo, o Regulamento Interno na Instituição é uma medida igualmente essencial. Outro elemento importante é instituir canal de comunicação efetivo para o exercício de direitos pelos titulares, treinando colaboradores para que desempenhem suas atividades com base nessa nova cultura de privacidade e proteção de dados que está sendo construída.

Portanto, a tomada de decisão sobre a adoção ou não de câmeras no ambiente escolar envolve diversos aspectos. Assim, exige-se ser cuidadosamente analisada e pensada de modo a estar em conformidade com as normativas acima referidas e, ao mesmo tempo, atingir a finalidade de proteger crianças e adolescentes, sob pena de ser caracterizada como vigilância excessiva.

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário com Agravo 878.911 Rio de Janeiro. Recorrente: Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Recorrido: Prefeito Municipal do Riode Janeiro. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Julgado em 19 de setembro de 2016. Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=310486098&ext=.pdf Acesso em: 09 jan. 2023.

2 CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA (CNI). Retratos da Sociedade Brasileira - Segurança Pública. Indicadores CNI. ano 6. nº 38,2017. Disponível em: https://static.poder360.com.br/2017/03/retratosdasociedadebrasileira.pdf. Acesso em: 16 ago 2022.

O referido documento detalha os parâmetros que devem ser adotados pelas escolas para utilização do sistema CCTV, e reconhece que as imagens capturadas são dados pessoais e, por essa razão, o tratamento desses dados deve estar em conformidade com o General Data Protection Regulation (GDPR). Disponível em: NATIONAL EDUCATION UNION. CCTV Model Policy for schools. 28 de setembro de 2021. Disponível em: https://neu.org.uk/media/17481/view#:~:text=When%20CCTV%20recordings%20are%20being,need%2Dto%2Dknow%20basis.&text=Individuals%20have%20the%20right%20to,to%20the%20Data%20Protection%20Officer. Acesso em: 09 jan. 2023.

BRASIL. Lei 13.709 de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Brasília, DF: Presidência da República, 2018.. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14020.htm. Acesso em: 16 ago 2022.

Alunos acham câmeras instaladas em banheiros de escola estadual na Mooca, Zona Leste de SP. G1, junho de 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/06/27/alunos-acham-cameras-instaladas-em-banheiros-de-escola-estadual-na-mooca-zona-leste-de-sp.ghtml Acesso em 16 ago 2022.

BRASIL. Lei 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 16 ago. 2022. 

É importante registrar que o melhor interesse da criança também está determinado na Convenção Internacional de Haia, que trata da proteção dos interesses das crianças, e em outras normativas internacionais. O Código Civil também abrange o princípio nos arts. 1.583 e 1.584, refletindo a própria disposição do art. 227 da Constituição Federal que dispõe sobre os deveres com o menor e adolescente.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 16 ago 2022.  Acesso em: 16 ago 2022.

Sobre este assunto, a IX Jornada de Direito Digital e Novos Direitos registrou orientações nos enunciados 682, 684 e 692 Além disso, há a discussão presente no Estudo Técnico da ANPD 3615243. Ambas as orientações apresentam panoramas, ainda que o tema persista divergente. BRASIL. Enunciados da IX Jornada de Direito Civil: comemoração dos 20 anos da Lei n. 10.406/2022 e da instituição da Jornada de Direito Civil: Enunciados aprovados (Direito Digital e Novos Direitos). Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários.  https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/. Disponível em: jornadas-cej/enunciados-aprovados-2022-vf.pdf. Acesso em: 29 dez. 2022. AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS. Estudo Preliminar: Hipóteses legais aplicáveis ao tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes. Setembro de 2022. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/documentos-e-publicacoes/estudo-preliminar-tratamento-de-dados-crianca-e-adolescente.pdf. Acesso em: 2 dez. 2022.

Heloisa Hasselmann Camardella Schiavo

Heloisa Hasselmann Camardella Schiavo

Advogada do escritório Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA).

Rayanne Conceição de Almeida dos Santos

Rayanne Conceição de Almeida dos Santos

Advogada do escritório Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA).

Beatriz Ferreira Guimarães

Beatriz Ferreira Guimarães

Advogada do escritório Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA).

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