MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. A figura do juiz das garantias no direito processual penal brasileiro: O fim do viés inquisitório

A figura do juiz das garantias no direito processual penal brasileiro: O fim do viés inquisitório

Thais Silva Miranda

Acredita-se que a medida terá o condão de mitigar significativamente os vieses inquisitoriais ainda presentes no processo penal brasileiro.

segunda-feira, 6 de março de 2023

Atualizado às 08:04

No decorrer da história, no que tange à fase de investigação preliminar, o Direito Processual Penal brasileiro assumiu diversas faces e, por quase quarenta anos, prevaleceu a figura do juiz inquisidor, o qual detinha vastos poderes de investigação dentro das funções policiais e judicantes (SILVA, 2012).

Isso somente começou a perder intensidade na década de 70, período em que houve a separação entre as funções supramencionadas. Estabeleceu-se, ali, o inquérito policial, cuja presidência está centralizada na figura da autoridade policial (ANSELMO, 2015).

Com o advento do Código de Processo Penal, em 1941, e, posteriormente, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, tal disposição foi mantida e formalmente consolidada, permanecendo em vigor até os dias atuais.

Embora a lei processual tenha sofrido algumas modificações pontuais ao longo dos anos, a sua estrutura básica sempre permaneceu e até então se encontrava firmada em bases inquisitoriais (LIMA, 2020), sendo possível extrair diversos dispositivos legais que ainda autorizam iniciativas do próprio magistrado.

Em que pese o juiz não mais comande a fase investigatória, conforme se extrai do Código de Processo Penal, ainda lhe são facultados alguns poderes que revelam a subsistência de resquícios inquisitoriais como, por exemplo, a determinação, ex officio, do sequestro (art. 127, CPP), da produção antecipada de provas (art. 156, I, CPP) ou a de buscas domiciliares (art. 242, CPP) (SILVA, 2012).

Além disso, até pouco tempo o juiz poderia ordenar - sem provocação da autoridade policial ou do Ministério Público - a prisão preventiva em qualquer fase do inquérito policial.

Eis que aos 23 de janeiro de 2020 entra em vigor o Pacote Anticrime, instituído pela lei 13.964/19, trazendo, dentre diversas outras modificações, uma "nova" figura à seara processual pátria: o juiz das garantias, que será o responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais do acusado, promovendo, assim, a garantia da imparcialidade (LIMA, 2020).

Como medida auspiciosa para uma tentativa de se mitigar a inquisitoriedade presente no âmbito processual penal (LEITE, 2020; NUCCI, 2020), a lei 13.964/19 mencionou que o processo penal terá estrutura acusatória e instituiu a figura do juiz das garantias, incluindo no Código de Processo Penal os arts. 3º-A a 3º-F.

A partir de agora, então, conforme disposição do art. 3º-A do CPP, a lei processual penal brasileira passa a adotar expressamente o sistema acusatório (NUCCI, 2020), que já era a opção da Constituição Federal de 1988:

CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

Um dos pilares de defesa da implementação do juiz das garantias firma-se na necessidade de separação das competências dos magistrados que atuam na fase investigatória e na fase da instrução processual, com vistas a garantir a imparcialidade do juiz que atuar na fase processual, afastando a possibilidade de que este se contamine pelos dados colhidos na investigação preliminar (SILVA, 2012).

A imparcialidade do magistrado atuante na fase processual estaria mais bem resguardada com a absoluta separação entre as figuras dos juízes atuantes nas duas fases (SILVA, 2012), visto que "o exercício prévio no processo de determinadas funções processuais pode provocar dúvidas de parcialidade" (BADARÓ, 2011).

Assim, pode-se dizer que a implementação do juiz das garantias se mostra bastante benéfica porque tal medida afasta problemas de comprometimento decisório prévio (MACHADO, 2020) ao garantir a imparcialidade do magistrado que, após o recebimento da exordial, terá condições de instruir o processo verdadeiramente livre de máculas.

Acredita-se, então, que a medida terá o condão de mitigar significativamente os vieses inquisitoriais ainda presentes no processo penal brasileiro, garantindo, assim, o princípio da imparcialidade e a efetivação do devido processo legal.

Oportunamente, insta ressaltar que o Ministro Luiz Fux, do STF, Relator das ADIn's 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, ajuizadas em face do Pacote Anticrime, suspendeu cautelarmente a eficácia dos arts. 3º-A a 3º-F do CPP. A constitucionalidade formal e material da referida inovação ainda será apreciada pelo Plenário do STF, contudo, já em 2023, ainda não há previsão para a demanda ser levada à pauta.

----------

ALSELMO, Márcio Adriano. A presidência do inquérito policial e a requisição de diligências. Disponível em: . Acesso em fevereiro de 2023.

BADARÓ, Gustavo Henrique Rigui Ivahy. Direito ao julgamento por juiz imparcial: como assegurar a imparcialidade objetiva no juiz nos sistemas em que não há a função do juiz das garantias. Processo Penal, Constituição e Crítica - Estudos em Homenagem ao Dr. Jacinto Nelson de Miranda. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2011.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília: Senado Federal. In: Vade Mecum Saraiva Compacto / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Lívia Céspedes e Fabiana Dias da Rocha. - 21ª ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

BRASIL. Código de Processo Penal, 1941. Brasília: Senado Federal. In: Vade Mecum Saraiva Compacto / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Lívia Céspedes e Fabiana Dias da Rocha. - 21ª ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

BRASIL, Senado Federal. Anteprojeto / Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal. Brasília: Senado Federal, 2009.

BRASIL. Senado Federal. Parecer da Comissa~o Tempora'ria de Estudo da Reforma do Co'digo de Processo Penal sobre o Projeto de Lei do Senado no 156. Relator: Senador Renato Casagrande. Senado Federal, 2009.

CHOUKR, Fauzi Hassan. O juiz das garantias na reforma do Co'digo de Processo Penal. Processo Penal, Constituic¸a~o e cri'tica: estudos em homenagem ao Dr. Jacinto Nelson de Miranda. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2011.

FARIA, André. Os poderes instrutórios do juiz no processo penal. Belo Horizonte: Arraes, 2011.

LEITE, Hebert Soares. A cognição judicial imparcial e os efeitos dos vieses cognitivos no processo penal democrático. 2020. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito. Belo Horizonte.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único / Renato Brasileiro de Lima - 8. Ed. rev., ampl. e atual. - Salvador: Ed. JusPodivm, 2020.

LOPES JU'NIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. 7 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 11, 2011.

LOPES JR., Aury. Teoria da dissona^ncia cognitiva ajuda a compreender imparcialidade do juiz. 2014. Disponi'vel em: . Acesso em fevereiro de 2023.

MACHADO, Leonardo Marcondes. Juiz das garantias: a nova gramática da Justiça criminal brasileira. Disponível em: >. Acesso em fevereiro de 2023.

MAYA, André Machado. Imparcialidade e processo penal: da prevenção da competência ao juiz das garantias / André Machado Maya. 2. Ed. rev. E ampl. São Paulo: Atlas, 2014.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

SILVA, Larissa Marilia Serrano. A construção do juiz das garantias no brasil: a superação da tradição inquisitória. 2012. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito. Belo Horizonte.

SILVEIRA, Fabiano Augusto Martins. O juiz das garantias entre os caminhos da reforma do Código de Processo Penal. Processo Penal, Constituição e Crítica - Estudos em Homenagem ao Dr. Jacinto Nelson de Miranda. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2011.

Thais Silva Miranda

Thais Silva Miranda

Graduada em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. Advogada.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca