A (não) problematização dos crimes do colarinho branco
Não é novidade dizer que no Brasil a maioria da população carcerária representa as camadas sociais menos privilegiadas.
quarta-feira, 29 de março de 2023
Atualizado às 14:56
Os crimes do colarinho branco, ou White Collar Crimes, são assim denominados por possuírem, em seu pólo ativo, indivíduos de classes sociais privilegiadas que gozam de prestígio social e até de fé pública, seja por sua profissão de alto escalão no mercado de trabalho ou por algum cargo público de renome.
Tais agentes, muitas vezes, possuem conhecimento legislativo e acesso à informações privilegiadas, bem como, habilidades políticas de persuasão, utilizando-se até mesmo de fraudes e subornos, o que fazem com que passem despercebidos em investigações criminais, isto é, quando estas ocorrem em face de crimes desta natureza patrimonial.
Desta forma, o sistema penal acaba mantendo-os longe de seu alcance, de forma que os criminosos punidos sejam, em sua maioria, indivíduos de classes sociais baixas, que praticam os chamados crimes comuns, como furto, roubo, homicídio, entre outros desta categoria, cuja consequência dá-se apenas em particulares.
É claro que o particular, quando vítima, tem direito à justa punição de seu agente, contudo, tal punição dificilmente ocorre quando o a vítima é o patrimônio público.
O que é bastante irônico, pois, quando o mesmo é lesado, acaba lesando-se também toda a estrutura básica de uma sociedade.
Aspectos fundamentais como a saúde, educação, segurança, saneamento básico, entre outros, acabam sendo prejudicados porque o dinheiro que deveria estar sendo investido nestas áreas, muitas vezes, está sendo desviado para fins de enriquecimento ilegal de poucos privilegiados.
É bastante compreensível que a população brasileira tenha cada vez mais se revoltado perante a realidade político-sócio-econômica do país.
Foram séries de escândalos, investigações e prisões de políticos e megaempresários que o brasileiro recentemente flagrou perante a TV, jornais, internet, entre outros meios midiáticos, que as lesões ao patrimônio público atingem números estrondosos, de forma que o brasileiro comum sequer tenha a noção do que de fato significam todas aquelas quantias.
Todavia, tem algo que todos entendemos, ainda que de forma leiga: o Brasil está corrompido. Os limites da corrupção simplesmente inexistem. Em todos os âmbitos nacionais está ela, presente como uma câncer, cujas células estão se espalhando pelo corpo, ou seja, pela máquina estatal inteira, de forma rápida e ininterrupta.1
A política corrompida já é um clichê. A corrupção, de certa forma, foi institucionalizada e, atualmente, os políticos perderam o status de prestígio de representantes do povo, e têm ganhado, cada vez mais, títulos pejorativos como criminosos, bandidos, entre outros, o que demonstra o quanto o brasileiro tem se indignado com estes crimes que crescem silenciosamente.
Desenvolvimento: White Collar Crimes
De acordo com Veras2, a origem da criminalidade, juntamente com a sua causa, nos remete à própria origem do homem. Os crimes do colarinho branco, apesar de ser uma tipificação recente na criminologia, também ocorrem desde os primórdios da humanidade.
Uma vez que sempre houve hierarquia nas divisões humanas, também sempre houve pessoas cujo status social ou financeiro facilitou para que praticassem atos em prol de mais status social e financeiro, em detrimento dos demais, menos privilegiados.
O termo White Collar Crimes foi criado por Sutherland3, e durante sua pesquisa acerca deste tipo de crime, ele utilizou o termo para denotar o estilo do criminoso que o pratica, bem como, dar ênfase à sua posição social muitas vezes denunciada pelas roupas que veste, ou seja,as que contêm o colarinho branco em sua estrutura.
De forma geral, tratam-se de empresários, políticos e homens de negócios.
O conceito dos White Collar Crimes esteve em um considerável tempo em construção, porque, a princípio, a ideia seria de que tais crimes eram praticados por pessoas hierarquicamente e financeiramente superiores às outras, porém, seguindo este raciocínio demasiadamente simplista, um traficante rico ou um proprietário de casa de prostituição que possui subordinados, poderiam facilmente enquadrar-se neste tipo de criminoso, o que não seria correto, uma vez que não se tratam de cargos de prestígio na sociedade.
Por este motivo, foi necessário aperfeiçoar o conceito. Sendo assim, Sutherland propôs quatro elementos necessários para a conceituação dos White Collar Crimes4. São eles: 1) é um crime, 2) cometido por pessoas respeitáveis, 3) com elevado status social, 4) no exercício de sua profissão.
Ou seja, uma conduta injusta e punível, que ocorre necessariamente durante o exercício do ofício que, por sua vez, é dotado de respeito e reconhecimento por parte da sociedade, cujo agente também possui respeitabilidade e, muitas vezes, confiança ou fé pública advinda de seu status social.
Como enfatiza Veras5, dizer que o crime do colarinho branco é um crime não configura pleonasmo. Isto porque passou-se muito tempo sem que eles fossem considerados crimes de fato ou até mesmo estivessem presentes no ordenamento jurídico.
Na época da pesquisa de Sutherland, a previsão penal das condutas tipificadas como tais crimes era estreita, quase inexistente.
Isto porque os próprios legisladores e executores da lei não tinham o real interesse em punir os atos que iriam de acordo com a conservação e incremento da riqueza deles mesmos - ou seja, dos White Collar.
Os sociólogos norte-americanos William Chambliss e Robert Seidman6, ao analisarem o funcionamento da justiça criminal norte-americana, notaram que tal como o Estado, a Justiça Penal não é neutra.
Isto pois, esta expressa valores de apenas um determinado grupo da sociedade: os detentores do poder, seja ele legislativo, executivo ou judiciário. Esta ausência de imparcialidade é refletida tanto no momento da criação da lei, o que os autores denominaram de criminalização primária, quanto no momento de aplicação da lei, a criminalização secundária.
Desta forma, percebe-se que os órgãos responsáveis pela aplicação da lei absorvem um elevado número de criminosos marginalizados, cujos interesses não estão sendo defendidos pela legislação em vigor, em prol de um número mínimo de indivíduos que também cometem crimes, contudo, não são, erroneamente, considerados nocivos à ordem pública.
A ocultação dos crimes do colarinho branco
Os crimes do colarinho branco fazem parte do rol de crimes de real lesividade social. Os chamados crimes comuns, como homicídio, roubo, furto, entre outros, não deixam de ser lesivos, mas, geralmente, uma só conduta de um crime comum atinge poucas vítimas, enquanto uma só conduta de um crime de corrupção é capaz de atingir inúmeras vítimas, enquanto grupo social.7
Entretanto, o que se vê nas estatísticas, bem como na mídia, é um alto índice de crimes comuns, com alta reprovação social, enquanto os White Collar Crimes aparecem bastante reduzidos, quando aparecem.
O papel da mídia é de suma importância na disseminação de notícias de fatos criminosos. Contudo, a diferença entre a exposição dos diferentes tipos de crimes, com diferentes tipos de autores é discrepante, quando se analisa as notícias midiáticas.
O número de crimes comuns noticiados, principalmente de autores cuja classe social é desprivilegiada é imensamente maior do que os demais crimes, o que faz com que a sociedade acredite que o seu maior inimigo é o criminoso pobre e comum, enquanto o verdadeiro está sendo ocultado e protegido por uma mídia tendenciosa, que atua falsamente uma imparcialidade e que, na verdade, está corrompida.8
Embora as condutas criminosas do colarinho branco estejam sim previstas no ordenamento jurídico com as devidas punições, esta previsão acaba sendo apenas simbólica, pois, de fato, na persecução penal, estes crimes estão, em sua maioria, excluídos.
Tal previsão legal acaba por legitimar os crimes do colarinho branco, de forma que, por haver a previsão, a sociedade acha que este crime está sendo combatido, dando a ele o status dos demais crimes e a falsa sensação de igualdade entre todos eles.
Contudo, este "combate" acontece apenas e tão somente na letra da lei, o que, obviamente, não é o bastante, uma vez que muitas vezes os crimes do colarinho branco não chegam a ser investigados, tampouco penalizados.
Assim, as notícias e estatísticas continuam disseminando apenas os crimes cometidos pelos miseráveis, dando também a falsa impressão de que os crimes do colarinho branco pouco acontecem quando na verdade, eles estão em pleno andamento, num sistema altamente apto a ocultá-los.9
Crimes do colarinho branco no ordenamento jurídico
Apesar do não interesse das camadas privilegiadas de criminalizar as condutas ilícitas do colarinho branco, os resultados naturalísticos destes atos começaram a aparecer no Brasil de forma gritante e prejudiciais a toda sociedade, como fome, miséria, aumento da criminalidade e da população de rua, com adictos, famílias e até mesmo crianças.
Porém, mais do que isso, tais condutas começaram a ser demasiadamente criticadas e denunciadas por esta mesma sociedade vítima da desonestidade de suas autoridades.
E, assim, foi necessário que a legislação brasileira aperfeiçoasse a tipificação destes crimes com a criação de novas leis.
Os crimes do colarinho branco estão previstos na legislação brasileira, tanto no Código Penal vigente10, quanto em algumas Leis específicas, como a lei 7.492/86, denominada lei do Colarinho Branco11, que traz desde o artigo 2º ao artigo 23 todas as condutas puníveis inseridas nos crimes desta natureza.
Também há a lei 8.137/90, a lei de Crimes contra a Ordem Tributária12, que elenca do artigo 1º ao 7º tais condutas. E, por fim, há a lei 9.613/98, a lei de Lavagem de Dinheiro13, que prevê em seu artigo 1º o rol das condutas criminalizadas.
Inseridos no Código Penal, os crimes do colarinho branco estão previstos, principalmente, no Título XI - Dos crimes contra a Administração Pública, em variados capítulos, os exemplos principais são: peculato, inserção de dados falsos em sistema de informações, emprego irregular de verbas ou rendas públicas, concussão, corrupção ativa e passiva, prevaricação, advocacia administrativa, violação de sigilo funcional, sonegação de contribuição previdenciária, corrupção ativa em transação comercial internacional, favorecimento real e ilegal, contratação de operação de crédito, entre outros crimes que não estão necessariamente no Título em questão, como associação criminosa, previsto dentro do Título IX - Dos crimes contra a paz pública.
Sendo assim, de forma geral, o crime praticado por pessoas mais favorecidas, que utilizam-se do colarinho branco para efetivá-lo, envolve principalmente práticas como: fraudes no mercado financeiro e na máquina estatal, suborno de agentes públicos, chantagens e propinas, propagandas enganosas e abusivas, desvios de capital, falências fraudulentas, dentre outras práticas e crimes já citados que estão inseridos, necessariamente, no conhecido "business world".
Neste ínterim e diante de uma cenário político-econômico tão corrompido por esta espécie de crime, sobrevieram duas leis com o intuito de instituir controle excessivo à estes delitos, são elas: a lei Complementar 135/10, a denominada lei da Ficha Limpa14 e a lei 12.527/11, a lei da Transparência15.
A primeira, lei da "Ficha Limpa", trata das causas de inelegibilidades relacionadas à condenação criminal, como os atos de rejeição de contas, quebra de decoro parlamentar, cassação de mandato, aposentadoria compulsória, prática de abuso de poder político, econômico ou dos meios de comunicação, expulsão de conselhos profissionais, demissão do serviço público, improbidade administrativa e realização de doações ilegais.
Já a lei da Transparência, em resumo, regulamenta o direito constitucional dos cidadãos de terem acesso às informações públicas que não sejam sigilosas.
Há também a lei de 7.492/86, denominada lei dos Crimes de Colarinho Branco, que surgiu no intuito de alcançar administradores e diretores de instituições financeiras, embora, com o tempo, a designação foi ampliada para agir contra qualquer indivíduo que lese a ordem econômica.
Do ponto de vista formal e legal, pode-se concluir que as leis contra corrupção e demais crimes econômicos existem sim no Brasil, entretanto, o que não existe é a real eficácia destes dispositivos legais, o que torna a existência destes bastante questionável.
Na prática, a aplicação de tais leis vê-se prejudicada devido a uma concepção e formulação legislativa defeituosa, que tem como consequência a existência de lacunas, tornando tais leis impraticáveis e inaplicáveis na realidade vigente, o que acaba por colocar em cheque a confiabilidade dos sistemas legislativo, executivo e judiciário brasileiros, acarretando numa verdadeira insegurança jurídica e estatal.16
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1 WARDE, Walfrido. O espetáculo da corrupção. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Casa da Palavra, 2018, p.23.
2 VERAS, Ryanna Pala. Nova criminologia e os crimes do colarinho branco. 1ª Ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes Ltda., 2010, p.24.
3 SUTHERLAND, Edwin Hardin. White Collar Crime. New York: Dryden Press, 1949, p. 09. Tradução livre.
4 SUTHERLAND, Edwin Hardin. White Collar Crime. New York: Dryden Press, 1949, p. 20. Tradução livre.
5 VERAS, Ryanna Pala. Nova criminologia e os crimes do colarinho branco. 1ª Ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes Ltda., 2010, p.29.
6 CHAMBLISS, William. SEIDMAN, Robert. Law, Order and Power. Chicago: Chicago Press, 1974. Tradução livre.
7 VERAS, Ryanna Pala. Nova criminologia e os crimes do colarinho branco. 1ª Ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes Ltda., 2010, p.157.
8 VERAS, Ryanna Pala. Nova criminologia e os crimes do colarinho branco. 1ª Ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes Ltda., 2010, p.159.
9 VERAS, Ryanna Pala. Nova criminologia e os crimes do colarinho branco. 1ª Ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes Ltda., 2010, p.169.
10 BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Diário Oficial da União, Brasília-DF, 07 de dezembro de 1940.
11 BRASIL. Lei n. 7.492, de 16 de junho de 1986. Diário Oficial da União, Brasília-DF, 16 de junho de 1986.
12 BRASIL. Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Diário Oficial da União, Brasília-DF, 27 de dezembro de 1990.
13 BRASIL. Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998. Diário Oficial da União, Brasília-DF, 03 de março de 1998.
14 BRASIL. Lei Complementar n. 135, de 04 de junho de 2010. Diário Oficial da União, Brasília-DF, 04 de junho de 2010.
15 BRASIL. Lei n. 12.527, de 18 de novembro de 2011. Diário Oficial da União, Brasília-DF, 18 de novembro de 2011.
16 VERAS, Ryanna Pala. Nova criminologia e os crimes do colarinho branco. 1ª Ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes Ltda., 2010, p.35.


