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A atipicidade do descumprimento das medidas protetivas de urgência concedidas sumariamente pelo delegado

A sensação de impunidade é muito perigosa, em especial no que se trata de crimes contra as mulheres, pois pode desencadear um número ainda maior do crime no qual a sociedade mais repudia, que é o de feminicídio.

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Atualizado em 28 de abril de 2023 09:38

Escrevo este artigo no dia 26 de abril de 2023, sendo sancionada a exatamente uma semana a lei 14.550/23, tal ordenamento jurídico trouxe importantes inovações na lei Maria da Penha, dentre elas que as medidas protetivas de urgência possam ser concedidas sumariamente pelo Delegado, ou seja, no momento em que uma mulher em situação de violência doméstica, familiar ou íntima de afeto realizar a notícia crime na Delegacia, poderá o Delegado fornecer de imediato medidas protetivas de urgência, só podendo negá-las caso avalie a inexistência de risco a integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes.

O primeiro problema a ser citado é o fato de que, creio, muitos Delegados terem dificuldade em sumariamente fornecerem medidas protetivas de urgência como:

  1. Restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores (Art. 22, IV da lei Maria da Penha) pois há a necessidade de a equipe multidisciplinar ser ouvida, não havendo nas Delegacias psicólogos e assistentes sociais, o que infelizmente é a realidade esmagadora das Delegacias do país;
  2. Afastamento do acusado do lar e recondução da mulher a tal domicílio (Art. 22, II, C/C art. 23, II da lei Maria da Penha), se o local no município do local do fato for sede de comarca, pois haveria conflito aparente com o artigo 12-C da própria lei Maria da Penha.

Agora vamos a parte final do texto, que é a mais importante. Caso o acusado seja primeiramente levado para a Delegacia por Policiais no momento do flagrante de um crime afiançável, como o crime de ameaça, sendo tal acusado citado pelo Delegado quanto as medidas protetivas de urgência de cognição sumária e, logo após o acusado sair da Delegacia descumprir a medida protetiva de urgência como a de não se aproximar ou não poder se comunicar com a vítima, será o acusado preso em flagrante delito por descumprimento das medidas protetivas de urgência? Vamos ao texto do art. 19, § 4º da lei Maria da Penha:

"Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida.

§ 4º As medidas protetivas de urgência serão concedidas em juízo de cognição sumária a partir do depoimento da ofendida perante a autoridade policial ou da apresentação de suas alegações escritas e poderão ser indeferidas no caso de avaliação pela autoridade de inexistência de risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes."

Bem, primeiramente precisamos entender o que está tipificado no crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência, no caput do artigo 24-A da lei Maria da Penha:

"Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta lei".

O texto diz "descumprir decisão judicial", não sendo as medidas protetivas de urgência uma decisão judicial, mas sim de cognição sumária do Delegado, não poderá o acusado estar cometendo o crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência, havendo a proibição no direito penal de a analogia ser utilizada para prejudicar o acusado, sob pena de o ato ser considerado como "direito penal do inimigo" e, por consequência, abuso de autoridade a prisão por descumprimento das medidas protetivas de urgência sem a determinação judicial. O mesmo problema ocorre no caso do artigo 12-C da lei Maria da Penha, caso o acusado seja retirado do lar pelo Delegado ou qualquer outro Policial, por não ser uma decisão judicial.

Poderia então ser considerado crime de desobediência? Infelizmente a resposta é NÃO.

O crime de desobediência (artigo 330 do Código Penal) é tido pela tese de número 9 do STJ como atípico por não estar contido na lei Maria da Penha, por isso foi criado o artigo 24-A da lei Maria da Penha (que como já disse, não nos serve nesse momento, pois não há ordem judicial). Ainda há o crime previsto no 359 do Código Penal, o crime de desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito, mas este não serve por três motivos: 1- Não está na lei Maria da Penha, 2- Tal artigo fala também de decisão judicial, 3- Para muitos poderia parecer forçoso o corpo do texto de tal artigo se adequar a maior parte das medidas protetivas de urgência.

O que diz a tese 9 do do STJ:

TESE 9 DO STJ:

"O descumprimento de medida protetiva de urgência não configura o crime de desobediência, em face da existência de outras sanções previstas no ordenamento jurídico para a hipótese."

Bem, talvez algum Delegado tipifique como crime de violência psicológica ou, se a perseguição for reiterada, o crime de Stalking, mas são dois crimes previstos no Código Penal, voltando o problema da tese nº. 9 do STJ, logo seria somente o crime de stalking (sendo o ato reiterado) ou violência psicológica, mas não o crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência.

CONCLUSÃO

É inegável a boa vontade do legislador que criou o projeto que deu origem a lei 14.550/23, entretanto, de forma muito humilde, publico este artigo pioneiro para solicitar como cidadão nova alteração na lei Maria da Penha, para que seja retirada a palavra "judicial" do caput do artigo 24-A, do contrário as medidas protetivas de urgência de cognição sumária fornecidas pelo Delegado, previstas no art. 19, § 4º, além do previsto no art. 12-C, ambos da lei Maria da Penha,  não alcançarão o objetivo que é o de dar proteção e fornecer dignidade a mulher em situação de violência.

A sensação de impunidade é muito perigosa, em especial no que se trata de crimes contra as mulheres, pois pode desencadear um número ainda maior do crime no qual a sociedade mais repudia, que é o de feminicídio.

Wagner Luís da Fonseca e Silva

VIP Wagner Luís da Fonseca e Silva

Bacharel em Direito, aprovado no XXIII exame de habilitação da OAB. Pós-graduado em Direito Militar pelo Instituto Venturo. Pós-graduado em Gênero e Direito pela EMERJ. Policial Militar.

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