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A unção dos enfermos e a distanásia constitucional

Rogamos aqui a todos os Ministros: evitem a distanásia, a prorrogação do sofrimento da nossa já tão cicatrizada Constituição, assim como dos concursados que permanecem ao léu.

quarta-feira, 3 de maio de 2023

Atualizado às 07:48

A partir de uma decisão, dentre outras tomadas pelo Concílio Vaticano II (1961-62), a Igreja Católica renomeou o último de seus Sacramentos (depois do Batismo, Confirmação, Penitência, Eucaristia, Ordem e Matrimônio) e seus membros passaram a abster-se de utilizar o termo Extrema Unção (Extrema Unctio), substituindo-o por Unção dos Enfermos (Sacram Unctionem Infirmorum).

Conjectura-se que, dentre outras razões, a mudança se prestou a estancar a sangria da autoridade clerical, a qual somente podendo conceder a Extrema Unção in articulo mortis (na hora da morte), era, por vezes, desautorizada pelo enfermo que, atrevido, insistia em permanecer vivo, daí a melhor solução seria ungir os enfermos quantas vezes necessário, até a morte.

Mas podemos imaginar mais. Os avanços tecnológicos da medicina, o aumento da longevidade, já vertiginosos à época, divisavam no horizonte o tamanho do problema imposto ao clérigo de sacramentar o morto-vivo repetidamente, desgastando a sacralidade do rito, além de sua autoridade sacerdotal.

Hoje, vamos além. Há estudos em criogenia que apontam para a preservação da vida, a princípio, indefinidamente, no que podemos concluir pelo  desacerto da reflexão provocada pela bula papal Humanae Salutis de João XXIII, tornando a Unção dos Enfermos um arremedo da inutilidade do incessante e eterno trabalho ao qual foi condenado Sísifo.

Pior. Podemos também entrever aí uma legitimação/sacralização de práticas hoje abominadas pela moderna Bioética e pelo Direito Médico. Falamos de mistanásia ou eutanásia social, a morte miserável, infeliz, do abandono, ou de distanásia, a que nos interessa aqui, a morte sofrida pelo excesso da confiança terapêutica, em detrimento da vida boa, pela tirania do mérito, ambas responsáveis, ao fim, pela manutenção do sofrimento.

Assim, observamos que o "neologismo" empregado pela Igreja, ao fim e ao cabo, apenas trocou um problema pelo outro, ou melhor, somente o nome do problema.

Contudo, não bastasse o exemplo vivo da ineficácia da prestidigitação semântica para a solução de problemas, alguns expedientes ditos jurídicos em nosso país têm se prestado a emularem a pseudo solução, mediante a manutenção de um dispositivo constitucional em estado vegetativo há quase 35 anos, ou seja, mais de 1/3 de século em coma, uma verdadeira distanásia constitucional, minando sua força vital, impedindo sua plena vigência.

É o que acontece com o §3º do art. 236 da Constituição Federal, in verbis: O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.

Embora dotado de eficácia plena ictu oculi,  sua aplicabilidade jamais viu a luz do sol. Encontra-se em coma induzido há praticamente trinta e cinco anos, não por excesso de confiança terapêutica, sabemos, mas por razões menos altaneiras.

A corajosa iniciativa de retirá-lo do coma induzido coube ao Partido Comunista do Brasil - PC do B, no também já longínquo ano de 1994, quando ajuizaram a ADIn 1183, na ocasião em que buscavam restabelecer o "estado constitucional das coisas".

Com julgamento virtual finalizado em 7/6/21, cujo voto do Ministro Nunes Marques foi seguido pela absoluta maioria, foi declarado "inconstitucional a interpretação que extraia do art. 20 da lei 8.935/94 a possibilidade de que prepostos (não concursados), indicados pelo titular ou mesmo pelos tribunais de justiça, possam exercer substituições ininterruptas por períodos maiores de que 6 (seis) meses. Declarou, ainda, que, para essas longas substituições (maiores que 6 meses), a solução constitucionalmente válida é a indicação, como "substituto", de outro notário ou registrador, sem prejuízo da imediata abertura de concurso público para preenchimento da(s) vaga(s)".

Um marco para a história do extrajudicial brasileiro, e o primeiro respiro do então  moribundo dispositivo constitucional que, após mais de três décadas, foi finalmente extubado.

Contudo, contraditoriamente, o mesmo PC do B aviou  Embargos de Declaração, nos quais, em rota de colisão com o requerido inicialmente e ante a constitucionalidade restabelecida, pretende ressuscitar e perpetuar a ilegalidade pela própria ilegalidade, sob inacreditável fundamento venire contra factum proprium, ou seja, já que a ilegalidade se encontra "pacificada", que seja mantido o statu quo (ilegal), projetando para o futuro o restabelecimento do devido Estado Constitucional das Coisas, nas palavras do embargante: "Acatando a aplicação do art. 27 da lei 9.868/99 e restringir os efeitos da V. Decisão desta lide às vacâncias que ocorrerem após o trânsito em julgado desta lide."

Em outras palavras, pretendem que sejam mantidas as delegações indevidas e eternizadas e, por conseguinte, mantidos os prejuízos aos delegatários legalmente investidos por concurso público.

Caso eventualmente acolhidos os embargos serão sepultados mais de três décadas de "eficácia plena", de clareza solar do disposto no art. 236 da CF, inaugurando o instituto da "eficácia plena natimorta", até então sacramentada por repetidas unções dos enfermos e, a depender deste julgamento, após quase trinta e cinco anos, ressuscitará, para o gáudio de suas eternas carpideiras, uma rediviva extrema unção.

  Até o momento, (não cansamos de repetir) há quase trinta e cinco anos, permanece um dispositivo constitucional zumbi, walking dead, o qual tentam a todo o custo que seja banhado no Estige e, assim possa ser finalmente esquecido.

No magistério de Maria Helena Diniz, a distanásia "trata-se do prolongamento exagerado da morte de um paciente terminal ou tratamento inútil. Não visa prolongar a vida, mas sim o processo de morte" (DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001).

Novamente, em 14/4/23, iniciado o julgamento dos Embargos, após proferido voto pelo Ministro Relator Nunes Marques, acompanhado pela Ministra Cármen Lúcia; e pelo Ministro Alexandre de Moraes, que divergia parcialmente do Relator, pediu vistas dos autos o Ministro Dias Toffoli.

Outra vez, retoma-se o processo de morte sofrida. O §3º do art. 236 foi novamente entubado.

Rogamos aqui a todos os Ministros: evitem a distanásia, a prorrogação do sofrimento da  nossa já tão cicatrizada Constituição, assim como dos concursados que permanecem ao léu, deixemos de lado a prática da eternização da Unção dos Enfermos como tática de prestidigitação, deixem o §3º do art.236 vir à Luz em sua plena força e eficácia.

A outra "solução" será o horror do ressurgimento fatal de uma espécie de Extrema Unção Constitucional, sacramentando o §3º do art.236 da Constituição como um dispositivo natimorto há mais de três décadas.

Andréa Chaves

Andréa Chaves

Presidente da Associação Brasileira de Cartórios Extrajudiciais -ABRACE.

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