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Operação penalidade máxima: legalidade do pontapé inicial

Segundo artigo da série debate a legalidade do início da Operação Penalidade Máxima, que contou com a atuação do presidente de um clube na obtenção de elementos de prova.

terça-feira, 30 de maio de 2023

Atualizado em 31 de maio de 2023 13:06

Dando continuidade à série de artigos inaugurada na última semana1, desta vez debateremos o início das investigações, com especial enfoque na atuação do então presidente do Vila Nova/GO (o Policial Militar Hugo Jorge Bravo) que, conforme já relatado no artigo anterior, levou ao conhecimento das autoridades a situação de um jogador do clube (Romário). O atleta, por sua vez, teria aceita-do uma oferta de R$150.000,00 para cometer um pênalti em partida contra o Sport/PE, em partida válida pela última rodada da Série B do Campeonato Brasileiro de 20222. 

Cientes de que foram esses indícios os responsáveis pelo pontapé inicial da Operação Penalidade Máxima, e que foram angariados pela atuação de um particular e não da autoridade policial ou do MPGO, é inegável a relevância que o tema tem. Com isso, a avaliação da legalidade desses atos iniciais é de suma importância, na medida em que o reconhecimento de eventual nulidade pode contaminar todas as provas que daí derivaram.

Apesar de pública a Ação Penal relativa à segunda fase da Operação, não houve a divulgação ampla dos procedimentos investigativos (que ainda estão com diligências em curso). Assim, o presente artigo se valerá do que foi divulgado pela mídia, em especial as entrevistas concedidas pelo presidente do Vila Nova/GO, onde foi relatado como se desenrolou a sua atuação naquele momento pré-processual.

Nesse sentido, a questão foi bem resumida em entrevista concedida ao programa Sports Center, da ESPN, onde Hugo relatou que "a gente descobriu isso porque nós tínhamos um grupo de atletas muito sérios. E a partir do momento em que esses atletas não cederam à tentativa de um atleta, que não era relaci-onado e tentou cooptar um outro atleta que estava jogando para cometer um pênalti no primeiro tempo da última partida do Campeonato Brasileiro da Série B, partida entre o Vila Nova e o Sport. Como não aconteceu esta prática, caiu por terra todo um combinado. À medida em que caiu por terra esse combinado, alguém foi prejudicado, houve prejuízo para o pessoal que apostou. E a partir daí eles começaram a ameaçar este atleta. Então, dois ou três dias depois do jogo, eu tive a informação que esse atleta estava sendo ameaçado pelos criminosos. Busquei informações sobre de onde vinham essas ameaças e quem estava praticando, e daí a gente começou a estabelecer uma conversa com essa pessoa, e dessa conversa fomos retirando provas que posteriormente foram entregues ao Ministério Público de Goiás"3.

Este trecho da entrevista já ressalta a primeira questão que deve ser analisada: é possível que um particular, no caso o presidente de um clube de futebol, pro-mova diligências investigativas por conta própria?

E a resposta é positiva. Nesse sentido cumpre citar o que consta no art. 39, § 5º do CPP, que prevê que "o órgão do Ministério Público dispensará o inquérito, se com a representação forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal". Ou seja, o inquérito policial é uma peça dispensável, caso a repre-sentação criminal venha acompanhada de indícios que demonstrem de forma satisfatória (e legalmente aceita) a materialidade e a autoria.

Ademais, nos termos do que compreendeu o STJ quando do julgamento do HC 264.620/BA4, "a ação penal pode basear-se em elementos probatórios oriun-dos ou não do inquérito policial, que não é seu suporte exclusivo de justa causa. Assim, admitindo-se, em tese, a persecução criminal por qualquer fonte con-fiável de prova, estatal ou mesmo particular, nada impede seja essa fonte de prova provinda do órgão Ministerial" (destaque nosso).

Portanto, temos que a atuação de Hugo no sentido de angariar provas no intuito de provocar as autoridades competentes é lícita, encontrando respaldo na juris-prudência da Corte Superior. No entanto, mesmo que presente a legitimidade para esse tipo de atuação por particular, isso não significa que ela não deva obedecer a parâmetros legais, mormente porque o tema da investigação priva-da é bastante sensível em temas de direito e processo penal.

O zelo com o tema advém daquilo já abordado no primeiro artigo: os princípios e direitos fundamentais garantidos ao acusado e/ou àquele sob investigação criminal. Não se pode flexibilizar, por conseguinte, àquele que promove investi-gação privada, os limites estabelecidos para a investigação por parte da Autori-dade Policial ou, atualmente, pelo Ministério Público, através dos PICs5.

Entender de modo diverso, por exemplo, poderia levar a uma privatização da atividade investigativa, na qual os entes estatais poderiam se utilizar desta flexibilização para obtenção de elementos de informação que, seguidos os dita-mes legais, não poderiam ser obtidos sem decisão judicial prévia ou sequer poderiam ser obtidos.

Esta preocupação é algo rotineiro em casos de investigação corporativa, especialmente quando há indícios do cometimento de crimes dentro de estruturas empresariais por parte de funcionários, tendo a pessoa jurídica empregadora como vítima.

Nesses casos, que muito se assemelham com o presente, visto que há um funcionário cujas atitudes possivelmente prejudicam seu empregador, há um claro conflito entre o Direito do Trabalho e o Direito Processual Penal. Verifica-se um embate entre os deveres que o empregado têm perante o empregador6 e seus direitos constitucional e legalmente garantidos, como o direito à não autoincri-minação, entre outros.

Justamente por isso é que se recomenda que, em situações similares, o particular procure a orientação de um Advogado, que pode auxiliar nas investigações com respaldo no Provimento 188/2018 do Conselho Federal da OAB7.

Referido provimento regulamenta "o exercício da prerrogativa profissional do advogado de realização de diligências investigatórias para instrução em proce-dimentos administrativos e judiciais" e prevê que a atuação do advogado nesse sentido pode ser voltada à produção de prova para "rejeição ou recebimento de denúncia ou queixa" (art. 3º, II)  e que "poderá o advogado, na condução da in-vestigação defensiva, promover diretamente todas as diligências investigatórias necessárias ao esclarecimento do fato, em especial a colheita de depoimentos, pesquisa e obtenção de dados e informações disponíveis em órgãos públicos ou privados, determinar a elaboração de laudos e exames periciais, e realizar reconstituições, ressalvadas as hipóteses de reserva de jurisdição" (art. 4º, caput). 

E é aqui que reside uma preocupação, ainda que embrionária - eis que lastrea-da apenas em entrevistas concedidas por Hugo, e não da análise do que consta nos autos: é possível que a prova que iniciou a operação - apesar da atua-ção do presidente do Vila Nova/GO ter sido pautada pela melhor das intenções - seja declarada nula? Em nosso entender, a resposta é positiva.

Isso porque, em entrevista concedida ao jornal O Globo, Hugo, ao ser questio-nado se após receber as informações sobre o apostador que supostamente ameaçava um de seus atletas, tomou a iniciativa de procurá-lo, respondeu que "Sim, aí entrou na minha área, sou policial. A minha condição me obriga a agir, não podia me omitir. (...) Primeiro, identifiquei o apostador e consegui seu número do telefone. Então, fiz contato pelo WhatsApp. Escrevi que estava à dis-posição para entender o que estava acontecendo. Eu disse: 'Estou aqui para te ajudar'. Inicialmente, ele me ligou e conversei com ele por chamada de voz. Aí ele foi abrindo: disse que tinha um acerto para que três jogos da última rodada da Série B tivessem pênalti no primeiro tempo. (...) Como eu sabia que precisava produzir provas mais concretas, fui ganhando a confiança e induzi ele a escrever no aplicativo, para deixar tudo registrado. De posse das mensagens, procurei o Ministério Público"8.

E mais, em entrevista concedida ao canal "Cartoloucos"9, relatou que "comecei a fazer aquela... a puxar a cadeia ali e chegamos na pessoa que supostamente estaria ameaçando ele. Chegamos no Instagram da pessoa, com base no ins-tagram a gente identificou ele, conseguiu contato telefônico e aí, meu amigo, teoria do salvador, já ouviu falar dela? (...) teoria do salvador meu amigo, o en-cantador de serpentes, teoria do salvador: 'Amigão, voce tá com um problema', aí você se coloca como sendo a pessoa pra resolver esse problema, fala assim 'ó meu filho, só eu posso te ajudar', e dai entender como que tinha sido a aposta, daí a gente conseguiu obter o comprovante de depósito". 

Além do quanto já discorrido sobre a sensibilidade do tema da Investigação Privada, há, em olhar superficial e indiciário, uma confusão entre a função pú-blica exercida por Hugo (policial militar) e a privada (presidente de clube de fu-tebol). E é justamente nesse contexto que as informações são obtidas para, posteriormente, fundamentarem a deflagração da Operação Penalidade Máxima.

Ressalta com a situação em comento a similaridade com outros meios de ob-tenção de prova, previstos na lei 12.850/13, como a Ação Controlada e a Infiltração de Agentes. O próprio presidente admite que induziu o suspeito da prática delitiva a produzir provas contra si mesmo, em possível violação ao princípio do nemo tenetur se detegere (direito à não autoincriminação), enquanto ciente das disposições legais e constitucionais quanto ao tema, já que também destaca ser esse tipo de atitude vinculada à área policial.

O que pretendemos demonstrar aqui, portanto, é a necessidade de um olhar atento para a situação. Parece existir uma confusão entre atribuições públicas e privadas quando um servidor público, cuja atribuição muitas das vezes tem vin-culação com investigações criminais, utiliza-se de outra estrutura, de função privada, para realizar diligências e angariar elementos de informação. Elementos esses que fundamentaram a instauração de procedimentos investigativos e ensejaram a decretação de medidas como a prisão preventiva dos investigados.

Há, em nossa visão, uma utilização indevida da investigação criminal privada no presente caso, em desrespeito aos ditames legais, já que conduzida de forma a violar o direito à não autoincriminação, insculpido na Constituição da República e também garantido pelo Código de Processo Penal.

Não se está dizendo que a atuação do presidente do Vila Nova/GO deva ser rechaçada por completo, apenas que houve possível excesso quando ela não se limitou à angariação dos elementos de prova já existentes e que chegaram ao seu conhecimento, mas entrou no campo da realização de diligências ativas, especificamente quando o presidente provocou contato com um dos supostos autores dos delitos e o "induziu" a produzir prova contra si mesmo. A situação é no mínimo preocupante e a futura declaração de nulidade dessa prova - basilar à operação como um todo - pode ter efeito devastador.

Essa constatação nos parece bastante clara quando comparada a presente si-tuação às investigações formais conduzidas pela Autoridade Policial ou pelo Ministério Público, nas quais é dever legal o esclarecimento àquele sob suspei-ta de prática delitiva da possibilidade de manter-se em silêncio e de que este não será considerado em seu prejuízo.

Assim sendo, há que se analisar a situação mais detalhadamente, a fim de con-firmar - ou rechaçar - a hipótese aqui aventada, que não conta com todos os elementos inseridos no processo, já que o reconhecimento de eventual nulida-de no início das investigações poderia desencadear na contaminação de todo o material amealhado a partir das informações apresentadas pelo presidente do Vila Nova/GO.

Em suma, o que pretendemos esclarecer com o presente é que, assim como no futebol e em todos os esportes, no processo penal existem regras e, para que os resultados sejam válidos, as regras de um jogo - em uma analogia simplista - que trata da liberdade do indivíduo precisam ser seguidas à risca, afinal "o processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucional-mente asseguradas (as regras do devido processo legal)".10

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1 https://www.migalhas.com.br/depeso/386840/operacao-penalidade-maxima-olhar-sob-vies-do-direito-e-processo-penal

2 Informação veiculada pelo portal G1, na coluna esportiva, em 9/5/23. Disponível em: https://ge.globo.com/go/futebol/noticia/2023/05/09/justica-acata-denuncia-e-torna-reus-os-16-investigados-na-operacao-penalidade-maxima-ii.ghtml. Acesso em: 16 mai. 2023.

3  Disponível em: "https://www.espn.com.br/futebol/brasileirao/artigo/_/id/12037185/presidente-vila-nova-detalha-como-descobriu-esquema-apostas-levou-operacao-penalidade-maxima". Acesso em 20/5/23. 

4 STJ - HC nº 284.620/BA, 6ª Turma, Rel. Min. Nefi Cordeiro. J. 9/8/16. 

5 Procedimento Investigatório Criminal, regido pela Resolução nº 181/2017 do CNMP (atua-lizada pela Res. 183/2018 e  Res. 201/2019). Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resoluo-181-1.pdf. Acesso em 23 mai. 2023.

6 Vide: LIRA, Silvia Fidalgo. Aspectos trabalhistas envolvidos em investigações inter-nas. Levy & Salomão Advogados, 2019. Disponível em: https://www.levysalomao.com.br/publicacoes/Boletim/aspectostrabalhistas-envolvidos-em-investigacoes-internas. Acesso em 24 mai. 2023.

7 Disponível em: https://www.oab.org.br/leisnormas/legislacao/provimentos/188-2018. Acesso em 24 mai. 2023. 

8 Disponível em: https://oglobo.globo.com/esportes/noticia/2023/05/senti-que-eu-precisava-levar-tudo-pronto-com-provas-concretas-diz-presidente-do-vila-nova.ghtml. Acesso em 20 mai. 2023.

10 Lopes Júnior, Aury. Direito Processual Penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 39.

Lorenzo Ottobelli

Lorenzo Ottobelli

Pós-Graduando em Direito Penal Econômico na FGV. Bacharel em Direito pela UFPR. Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFPR. Membro do Grupo de Estudos Avançados em Investigação Defensiva do IBCCRIM/PR. Advogado na Trauczynski Muffone Advogados.

Igor Rayzel

Igor Rayzel

Bacharel em Direito formado pela Unicuritiba. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Positivo. Engenheiro Ambiental formado pela PUC/PR. Pós-graduando em Controladoria, Compliance e Auditoria na PUC/RS. Advogado Associado no Escritório Beno Brandão Advogados Associados.

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