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Música e pirataria: a cultura que atravessa gerações

O problema da pirataria não é recente. Sua prática acompanhou a própria história mundial da música enquanto produto cultural de consumo.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Atualizado às 08:19

Para quem pensa que pirataria de música é coisa da era digital, fica a reflexão: não é à toa que o termo remonta a uma prática de ataques e saques a navios que atravessou os séculos, mundo afora. Há mais de 100 anos, a prática da pirataria passou a ser associada ao uso indevido de música, sem o respectivo pagamento de direitos autorais.

Um caso histórico, ocorrido em 1901, costuma ser referenciado como marco inicial desse cenário. Naquele ano, a música "Stars and Stripes Forever", de John Philip Jones, foi gravada sem autorização e vendida em discos de vinil pela empresa Berliner Gramophone. O autor iniciou uma campanha pública em defesa de seus direitos, acusando a empresa de praticar pirataria autoral.

Mais tarde, a chegada das fitas cassete trouxe um novo desafio. As gravações e reproduções, antes restritas aos estúdios, passaram a ser possíveis pelos usuários. Surgia a indústria das fitas cassete piratas, com rótulos e faixas copiadas das originais.

Surgia, também, a pirataria da radiodifusão, mediante a gravação e comercialização ilegal da programação musical das rádios, que viviam seus tempos áureos.

Na sequência dos acontecimentos, o desenvolvimento da tecnologia passou a permitir a gravação digital de CDs e DVDs. A qualidade do conteúdo cresceu, o controle das cópias se sofisticou, mas novamente a pirataria venceu. Os aparelhos gravadores de CDs se tornaram matrizes de criação de bibliotecas particulares de CDs piratas, não sem muito protesto por parte das gravadoras e outros agentes da indústria fonográfica.

A popularização da internet, na década de 90, foi a responsável por outra importante virada de chave. Passou a ser possível gravar arquivos de música em mídias móveis, como o pendrive, além da troca e compartilhamento de arquivos entre computadores.

Em 1999, veio à tona o famoso caso Napster. Ele foi um serviço digital pioneiro no compartilhamento de músicas em formato mp3, de pessoa para pessoa, pelo processo que passou a ser chamado de peer-to-peer (P2P). Tudo isso, sem qualquer tipo de pagamento de direitos autorais. Acusado de pirataria por gravadoras e artistas, em 2001, o Napster sofreu um processo judicial que culminou no encerramento do serviço.

Em 2003, outra novidade estremeceu a indústria da música. O Pirate Bay chegou como um serviço de compartilhamento de arquivos torrent. Por meio dele, os usuários podiam "baixar" (fazer o download) de arquivos de conteúdo, incluindo músicas. Novamente, sem qualquer controle ou pagamento autoral.

O Pirate Bay também enfrentou a fúria das gravadoras e editoras musicais. Elas já sofriam os impactos da nova realidade digital e perdiam investimentos na já condenada indústria das mídias físicas (CDs e DVDs). Em 2009, seus fundadores acabaram condenados a um ano de prisão e ao pagamento de uma multa milionária por pirataria e violação autoral.

De experiências digitais precursoras, como o Napster e o Pirate Bay, surgiu o modelo de negócios do streaming musical. Protagonizada especialmente pela empresa Spotify, a criação da tecnologia permitiu a transmissão da música em tempo real, sem a necessidade de mídia física.

Como a proposta inicial do Spotify era a da oferta de música gratuita aos usuários, a plataforma, em seus primeiros anos, também foi acusada de pirataria. Por isso, enfrentou muitos embates junto às grandes gravadoras.

Porém, diferentemente de suas antecessoras, o Spotify migrou para um modelo híbrido. Ou seja, oferece música gratuita subsidiada pela publicidade de grandes anunciantes e uma versão premium paga pelo usuário, mediante assinatura mensal e sem qualquer tipo de propaganda.

Aos poucos, o Spotify fez acordos com as gravadoras e disponibilizou espaço para a distribuição das músicas de seus artistas. Tudo isso, mediante o compromisso de pagar os direitos autorais devidos pelas visualizações dos usuários. É um modelo de sucesso que se tornou a base de novos negócios semelhantes, como Apple Music, Deezer, Amazon Music, dentre outras plataformas de streaming musical da atualidade.

Nesse novo paradigma, cabe o questionamento sobre o fim ou não da pirataria musical. Embora o streaming venha se consolidando como um meio legal de consumo de música digital, já existem algumas distorções. São identificadas algumas práticas consideradas violadoras dos direitos autorais, como o compartilhamento de contas de acesso premium que diminui a arrecadação de royalties.

Também há registro de outras condutas piratas. Criação de perfis falsos para se eximir do pagamento da assinatura, clonagem de contas pagas e compartilhamento ilegal de playlists com músicas protegidas por direitos autorais são alguns exemplos.

Todas essas violações autorais digitais ocorrem à medida que os usuários se apropriam da tecnologia e vão descobrindo falhas na segurança dos sistemas. Ou seja, uma clara demonstração de desprezo aos direitos dos autores. Não existe sistema inviolável, se a ética não limitar a ação humana.

Como se pode perceber, o problema da pirataria não é recente. Sua prática acompanhou a própria história mundial da música enquanto produto cultural de consumo. A questão é muito mais comportamental e social do que tecnológica.

Do ponto de vista econômico, existe um embate histórico entre a sociedade e a indústria da música. Há uma exclusão por completo da perspectiva central do autor como origem de toda a criação musical. Enquanto assim for, vamos continuar convivendo com novas e diferentes formas de pirataria, desafiando progressivamente toda a lógica da cadeia musical.

Elisângela Dias Menezes

Elisângela Dias Menezes

Advogada, jornalista profissional e perita judicial. Mestre pela PUC Minas e doutoranda pela UFMG. Professora universitária, palestrante, pesquisadora e autora de publicações jurídicas sobre Propriedade Intelectual e Direito Digital.

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