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O autismo e a recusa de tratamento pelo plano de saúde

Diante da explosão de diagnósticos de Autismo no Brasil decidimos apresentar este trabalho com o objetivo de demonstrar como o Poder Judiciário lida com a recusa de tratamento dos planos de saúde.

quinta-feira, 22 de junho de 2023

Atualizado às 13:36

O autismo e a condição neurológica do paciente

Apesar de ser recente a descoberta do Autismo, pois o primeiro diagnóstico foi dado pelo psiquiatra austríaco Leo Kanner em 1.943, o TEA (Transtorno do Espectro Autista) tem preocupado a comunidade médica e jurídica, dado o aumento do número de diagnósticos nos últimos anos. É um transtorno no desenvolvimento neurológico que tem como principais características o atraso na fala, prejuízo na interação social, estereotipias, seletividade alimentar e comportamento inflexível, o que gera uma incapacidade do indivíduo em se relacionar com outras pessoas.

Fomos atrás também da origem da palavra Autismo, que vem do grego "autos", que significa "si mesmo" traduzindo uma condição da pessoa, um estado onde o indivíduo vive para si mesmo, como se estivesse submerso em um mundo que é só dele, é o que Kanner chamou de "distúrbios autísticos do contato afetivo".

Detectado o diagnóstico o médico indica o tratamentos com terapia multidisciplinar com fonoaudiologia, terapia ocupacional e psicólogo através do método ABA (Applied Behavior Analysis) que consiste numa abordagem da psicologia comportamental que foi adaptada e aplicada ao ensino de crianças com autismo.

Alguns médicos têm exigido outras terapias como: musicoterapia, hidroterapia, equoterapia, Psicopedagodia e até auxiliar terapêutica em ambiente escolar, porém, notamos que o Judiciário indefere esses pedidos sob alegação de que tais exigências são excessivas.

O Conselho Regional de Medicina do Paraná publicou em 19/8/19 o parecer de 2770/19, em atendimento a determinação judicial, no qual descreve a eficácia do tratamento para o autistas utilizando-se do método ABA. Abaixo se transcreve um trecho do mencionado parecer;

"A ABA - Applied Behavior Analysis - é uma abordagem da psicologia comportamental que foi adaptada e aplicada ao ensino de crianças com autismo. Baseia-se nos princípios de reforço positivo, solicitações graduais, repetição, e as divisões das tarefas em pequenas partes, ensinadas inicialmente em separado. As técnicas da ABA visam aumentar os comportamentos adequados e reduzir aqueles que possam causar danos ou interferir no aprendizado. O método ABA é amplamente reconhecido como efetivo e seguro no tratamento para autismo, além de várias pesquisas (MacDonald et al., 2014; Schlichenmeyer et al., 2015; Tordjman et al., 2015;) confirmarem sua efetividade, sendo endossada pelo Departamento de Saúde do Estado de Nova York e pelo U.S. Surgeon General. Estudos demonstram que crianças com autismo que passaram pelo método ABA melhoraram o aprendizado, a comunicação e a capacidade de adaptação. O tratamento é multidisciplinar, e vários profissionais estão envolvidos na reabilitação dos doentes. São médicos, mais especificamente neuropediatras, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas e psicólogos".  

A explosão de diagnósticos do TEA

Nos últimos anos houve um aumento significativo do diagnóstico de autismo, também chamado de TEA (Transtorno do Espectro Autista), o que chamou a atenção da comunidade médica e também da comunidade jurídica. A discussão permeia questões como: O estado de saúde dos autistas é definitivo ou provisório? É passível de diminuição ou remissão?

Segundo reportagem publicada pelo jornal da Unesp  o Censo escolar do Brasil registrou um aumento de 280% no número de estudantes com TEA matriculados em escolas públicas e particulares apenas no período entre 2017 e 2021. No Brasil, dados da Organização Mundial da Saúde sugerem a existência de dois milhões de autistas, mas esta estimativa é considerada desatualizada.

Pesquisas recentes do Center for Disease Control and Prevention dos EUA demonstraram que, se nos anos setenta o número de diagnósticos de TEA estava na faixa de 1 para cada 10 mil crianças, em 1995 já havia pulado para 1 em cada mil e continuou crescendo aceleradamente, até chegar a 1 para cada 59 pessoas em 2018 e 1 a cada 44 segundo relatório de 2022. Se essa proporção for adaptada para a população brasileira, isso resultaria em um contingente de mais de 4 milhões de pessoas.

OS ASPECTOS JURÍDICOS

A negativa de tratamento pelos planos de saúde

Como dito anteriormente, assim que detectado o diagnóstico de TEA, o médico propõe o tratamento multidisciplinar com psicólogo, fonoaudiólogo e terapia ocupacional através do método ABA com carga horária de 20 a 40 horas semanais e é aqui que surge o problema, pois as empresas de planos de saúde limitam o número de sessões, as clínicas exigem que o paciente apresente guias de autorização para realização das sessões de terapia, indicam clínicas a 30 km de distância da residência do paciente, tudo isso para dificultar ou impedir que o tratamento seja realizado.

Dois são os argumentos utilizados pelas operadoras de planos de saúde para negar o tratamento de quem tem o diagnóstico de TEA. O primeiro deles é dizer que o autismo não consta no ROL de procedimentos obrigatórios da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), ou seja, é o mesmo que dizer que a doença não tem previsão contratual para tratamento, o que não é verdade porque desde junho de 2.022 a ANS incluiu no citado ROL a obrigatoriedade dos planos de saúde em fornecer o tratamento para pacientes acometidos pelo transtorno do espectro autista (TEA) através da Resolução Normativa 539/22. Abaixo se transcreve o art. 6º, §4º da citada norma.

"Art. 6º (...)

§ 4º Para a cobertura dos procedimentos que envolvam o tratamento/manejo dos beneficiários portadores de transtornos globais do desenvolvimento, incluindo o transtorno do espectro autista, a operadora deverá oferecer atendimento por prestador apto a executar o método ou técnica indicados pelo médico assistente para tratar a doença ou agravo do paciente."

E o segundo argumento muito utilizado pelas operadoras de planos de saúde para negar o tratamento da doença é dizer que o ROL de procedimentos da ANS é taxativo e não exemplificativo. Apesar de, neste ponto, entrar um pouco de "juridiquês", logo adiante esclareço essa questão da taxatividade do Rol da ANS.

Assim, o que fazem as empresas de planos de saúde? Negam o tratamento sob as alegações já ditas acima e limitam o número de sessões terapêuticas exigidas pelo médico do paciente.

Vejamos o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo a respeito da ilegitimidade da recusa da operadora diante da exigência médica para tratamento do paciente:

Súmula 102 do TJ/SP;

"Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS."

A ANS proibiu que as operadoras de planos de saúde limitem o número de sessões de terapias para os portadores de autismo consoante a Resolução Normativa 469 de 09 de julho de 2021, tornando ilícita a conduta de limitar a carga de sessões exigidas pelo médico.

O STJ (Superior Tribunal de Justiça) decidiu sim que o ROL de procedimentos da ANS é taxativo, o que significa que as empresas de planos de saúde não estão obrigadas a cobrirem tratamentos não previsto na lista.

Porém, o Tribunal Superior (STJ) fixou parâmetros para que, em situações excepcionais, os planos custeiem procedimentos não previstos na lista, flexibilizando assim a regra.

Uma observação merece relevo. Percebam o seguinte: dizer que o ROL da ANS é taxativo é dize que determinada doença não consta no citado ROL, porém, como já esclarecido acima, o autismo foi inserido nas coberturas do plano de saúde consoante a Resolução Normativa 539/22 expedida pela ANS e mesmo assim os planos de saúde tentam obstaculizar o tratamento sob alegação de ser o ROL taxativo, assim, concluímos que existe uma contradição, uma incongruências neste argumento levantado pelos planos de saúde.

Retornando para os parâmetros que flexibilizam a taxatividade do ROL, foram firmadas as seguintes teses pelo STJ;

  1. O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra, taxativo;
  2. A operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol;
  3. É possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol;
  4. Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da saúde suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e Natjus) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.

Interessante ressaltar que o entendimento dominante e majoritário dos Tribunais é de que o plano de saúde pode estabelecer as doenças que terão cobertura, mas não o tipo de terapêutica indicada por profissional habilitado a conduzir o tratamento, bem como que é abusiva a cláusula contratual que exclui método e quantidade de sessões, haja visto que prescrito para garantir a saúde e por consequência vida da beneficiária.

A nosso ver, entender de modo diverso implicaria indevida restrição à livre atuação e responsabilidade do médico escolhido pelo paciente e, por via oblíqua, permitir aquilo que a jurisprudência sempre vedou: a intromissão da operadora no tratamento prescrito pelo médico. Em outras palavras, a escolha terapêutica cabe somente ao médico, sendo ilegítima a intromissão da empresa de plano de saúde.

Nosso Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo segue o mesmo entendimento, segundo o qual a recusa em arcar com terapias multidisciplinares expressamente indicadas ao tratamento do paciente mostra-se abusiva quando coberta a doença pelo plano de saúde (Agravo de Instrumento2170608-65.2021.8.26.0000; Relator (a): Salles Rossi; Data do Julgamento: 20/09/2021; Data de Registro: 20/09/2021.

Além de dificultar o tratamento, indicando clínicas muito distantes da residência do paciente e limitando o número de sessões terapêuticas, as operadoras de saúde também impedem o reembolso integral para o tratamento sob as mesmas alegações retro citadas utilizando-se assim de estratégia cruel para se esquivar de suas responsabilidades contratuais.

Assim, em todas as decisões que eu tive acesso até hoje versando sobre essa matéria, o Magistrado determina que a operadora de plano de saúde pague o reembolso integral caso não encontre em sua rede, clínicas aptas a fornecer o tratamento ao paciente.

Os problemas causados pelo retardo do tratamento

Por ser o TEA um transtorno do neurodesenvolvimento que se manifesta nos primeiros anos de vida por comportamentos que acarretam dificuldades na interação social e comunicação, bem como a presença de comportamentos repetitivos e interesses restritos, logo, o diagnóstico ou o tratamento tardio pode trazer consequências irreversíveis para o portador dessa doença.

Se o autista tem dificuldades em socializar-se com as pessoas ao seu redor, o retardo no tratamento pode agravar o quadro da doença, trazendo consequências como: o agravo de seus comportamentos, a agressividade com terceiros, a autolesão, o risco do fracasso em desenvolver relacionamento com seu pares e a falta de tentativa espontânea de compartilhar prazer, interesses ou realizações com outras pessoas.

É pacífico o entendimento da comunidade científica que o autista não tem medo do perigo, o que pode gerar graves acidentes, ademais, sua agressividade pode trazer transtorno na vida escolar e dentro de casa, bem como, a hipersensibilidade sensorial marcante na síndrome causa dor no autista com o tempo, podendo a irritação gerar crises nervosas pelo incômodo sonoro se as terapias não se iniciarem assim que o diagnóstico for fechado.

A importância da liminar

A liminar nada mais é do que um instrumento processual utilizado para antecipar um resultado que só viria ao final do processo, ou seja, o juiz profere uma decisão provisória e, ao final do processo confirma ou não essa decisão na sentença, mas este é um ponto muito teórico envolvendo o tema, do qual toda preocupação recai sobre o advogado que precisa orientar seu cliente sobre as provas que devem ser reunidas a evidenciar que seu cliente tem direito a uma decisão liminar.

Na prática o que acontece é que, demonstrados os requisitos que autorizam a concessão da liminar, o Juiz defere o pedido e determina o início imediato do tratamento sob pena de multa diária.

Quais são então esses requisitos? A probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.

Conclusão

Pretendemos com este trabalho abordar os principais e mais relevantes aspectos jurídicos que circundam o tema, uma vez que, pensamos existir um conflito de interesses, especialmente econômicos que fazem com que as empresas de planos de saúde tentem embaraçar, obstaculizar o início do tratamento do autista.

Muito embora exista um conjunto claro de normas que garantem o atendimento irrestrito daqueles que foram acometidos pelo TEA, ainda assim o interesse econômico faz nascer a negativa do tratamento por parte das operadoras de planos de saúde e o início de uma árdua jornada para os pais e familiares do paciente.

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Tribunal de Justiça de São Paulo TJ-SP - Apelação Cível: AC 1005607-35.2021.8.26.0068 SP 1005607-35.2021.8.26.0068

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro TJ-RJ - APELAÇÃO: APL 0330219-51.2019.8.19.0001

Tribunal Regional Federal da 3ª Região TRF-3 - RECURSO INOMINADO CÍVEL: 0000215-02.2020.4.03.6322 SP

https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/02032023-Cobertura-para-transtorno-do-espectro-autista-e-ingresso-de-amicus-curiae-sao-temas-da-Pesquisa-Pronta.aspx

Tribunal de Justiça de São Paulo TJ-SP - Apelação Cível: AC 1035383-39.2021.8.26.0114 SP 1035383-39.2021.8.26.0114

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul TJ-RS - Apelação Cível: AC 0311630-09.2019.8.21.7000 RS

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul TJ-RS - Agravo de Instrumento: AI 50713147620218217000 RS

Leandro Xavier

VIP Leandro Xavier

Advogado, pós graduando na PUC-MG em direito médico e bioética.

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