Cannabis além das propriedades medicinais
Uma abordagem sobre tecnologias que envolvem o uso não terapêutico ou recreativo da planta.
quinta-feira, 20 de julho de 2023
Atualizado às 09:02
Quando ouvimos falar sobre o cânhamo (Cannabis sativa L), é inevitável pensar em narcótico ou em sua boa reputação para uso na medicina, como fitoterápico ou fitofármaco. O cânhamo é uma subespécie da Cannabis Sativa L. que normalmente tem até 0,3% de THC (tetrahidrocanabidiol), principal componente da Cannabis e responsável por possíveis efeitos alucinógenos. Alguns países aceitam um índice de THC maior ou menor. O cânhamo não tem o efeito psicotrópico que a maconha tem, sendo que a maconha vendida comercialmente normalmente tem uma concentração de THC que gira entre 15% e 25%, muito distante dos 0,3% do cânhamo. Entretanto, a verdade é que essa planta é incrivelmente versátil, podendo ser inclusive explorada além do campo médico.
O cânhamo está sendo usado na obtenção de produtos têxteis, cosméticos e alimentícios (principalmente forragem animal), sem contar a sua aplicação na fabricação de plásticos, papéis, biocombustíveis, resinas, cerveja, construção civil e recentemente utilizado como supercapacitadores e baterias.
Um dos principais uso do cânhamo está na produção têxtil. Sua textura é super-resistente e parecida com o linho e a fibra pode ser combinada a outros materiais como o algodão e a seda, por exemplo, diversificando ainda mais a sua utilização.
No âmbito da propriedade industrial, tomamos como exemplo, o pedido de patente brasileiro BR1020200119834, depositado em 16 de junho de 2020 no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e intitulado "Material composto à base de polímero termofixo epoxídico reforçado com tecido híbrido de fibras naturais de cânhamo e de juta, processo produtivo e uso em blindagem balística". As características deste material composto, tecnicamente conhecido como um compósito, são tais que o tornam tão resistente quanto economicamente vantajoso para utilização em blindagens balísticas em multicamadas visando proteção contra disparos de fuzil com munição de alto poder de impacto. Este compósito permite substituir materiais sintéticos muito mais custosos atualmente empregados nas forças armadas em todo o mundo, como os tecidos de fibras de aramida conhecidos comercialmente por Kevlar®. A indústria da moda atual, inclusive, tem apostado no cânhamo como alternativa ecológica.
Outro uso importante do cânhamo é na construção civil. Empresas na Irlanda, Holanda e China já utilizam produtos feitos à base de cânhamo para o isolamento térmico e acústico de casas e edifícios. Além disso, também existe uma variedade de materiais de construção, como um concreto - mais leve e resistente produzido a partir da substância. O concreto de cânhamo, ou hempcrete, é uma nova aposta da construção civil. Ele é feito com a parte interna do caule da planta cannabis (chamada de lascas de cânhamo) misturada com cal e água. Essa mistura origina um material de construção durável, ecológico, resistente, não-tóxico, isolante e leve, pesando cerca de um sétimo do peso do concreto, aproximadamente.
O pedido de patente Chinês CN216273815, depositado em 12 de abril de 2022, visa resolver o problema de que o material de isolamento térmico de parede convencional é pobre em retardamento de chama ou gera fumaça tóxica em um processo de combustão. A placa de isolamento e preservação de calor a base de cânhamo industrial compreende uma camada de remoção de formaldeído, uma camada de preservação de calor e uma camada de goma. A camada de remoção de formaldeído é conectada com a face da camada de preservação de calor, e a camada de preservação de calor é fornecida com uma camada de goma. O tecido tem as vantagens de boas funções à prova de fogo, resistente ao calor, permeável ao ar e permeável à umidade.
Assim como acontece com a maioria dos óleos vegetais, o óleo de cânhamo pode ser processado e convertido em biocombustível, cuja queima é menos poluente do que a queima dos combustíveis fósseis. Portanto, além da produção de biodiesel a partir do óleo presente nas sementes e no caule da planta, a parte fibrosa também pode ser empregada para a obtenção de versões quimicamente semelhantes à da gasolina convencional. Um exemplo é o pedido de patente ucraniano UA105013, depositado em 25 de fevereiro de 2016, onde descreve um processo para a preparação de biocombustível diesel de óleo de semente de cânhamo.
O cânhamo também pode ser utilizado na produção de bioplásticos. Alguns fabricantes de carros inclusive vêm substituindo painéis e outras peças que costumavam ser feitos de fibra de vidro por versões fabricadas com o cânhamo, e outros usos populares incluem embalagens, potes e utensílios domésticos. O pedido de patente chinês CN 202703699, depositado em 30 de janeiro de 2013, descreve componentes do painel interno do teto do carro que é composto por uma placa de base feita de materiais compósitos de fibra de cânhamo polimérico. O processo de produção de componentes interiores de automóveis por placas de fibra de material compósito de fibra de cânhamo de polímero é bastante simplificado e a eficiência de produção é melhorada. Além disso, a resistência composta de materiais de revestimento e as placas de fibra de material compósito de fibra de cânhamo de polímero é aprimorada e o desempenho ecológico é aprimorado ao mesmo tempo.
Talvez um dos usos mais surpreendentes do cânhamo seja como descontaminante. As plantas podem ser utilizadas para eliminar, estabilizar ou tornar inertes substâncias nocivas presentes no solo - como solventes, pesticidas, metais tóxicos e explosivos. Um exemplo famoso foi a iniciativa de plantar centenas de pés em uma área da Ucrânia afetada pelo desastre nuclear de Chernobyl para ajudar a minimizar os danos provocados pela radiação.
Ainda temos a fabricação de supercapacitadores e baterias com base nas fibras de cânhamo. Seu desempenho eletroquímico é superior às baterias comuns, porque os eletrodos passam a ter uma capacidade de armazenamento de energia superior.
Podemos ver invenções recentes também para a culinária canábica, como bebidas alcoólicas e temperos, extratos, azeites, sucos, dependendo da legalização em cada país. A cervejaria californiana Humboldt Brewing Co. possui uma cerveja preparada com sementes de cânhamo.
No Brasil, a Cannabis sativa permanece listada pela ANVISA como planta que não pode ser cultivada, colhida, explorada, importada, exportada, comercializada, extraída, manuseada ou utilizada no país, tendo que ser importada com receita médica, o que encarece substancialmente os preços.
De acordo com a projeção de estudo da Kaya Mind, empresa de inteligência de mercado para o setor, no relatório "Cânhamo no Brasil", divulgada em março de 2022, a legalização do cânhamo industrial no Brasil, planta pertencente à Cannabis sativa L, cujos insumos são usados na produção de alimentos, suplementos nutricionais, produtos industriais, óleos terapêuticos e cosméticos, poderia acarretar R$ 4,9 bilhões com a venda de seus derivados e R$ 330,1 milhões de impostos arrecadados para o Estado. Quando referente à Cannabis medicinal, esse valor seria de R$ 9,5 bilhões.
Considerando que existem vários outros usos comerciais da variação da planta, além dos medicinais, conforme vistos acima, já há projetos em tramitação no Congresso Nacional para retirar a proibição.
Afinal, é um novo mercado com diferentes oportunidades econômicas e potencial ecológico que pode impulsionar o desenvolvimento de uma indústria, não apenas firme como sustentável.
Alexandre Santos
Biomédico e especialista em Patentes no Di Blasi, Parente & Associados.