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Possibilidade jurídica de embutir no cálculo da pensão alimentícia o tempo investido pela mãe na criação dos filhos

A maternidade solo é uma realidade cada vez mais frequente. Monetizar o tempo investido pela mãe na educação dos filhos seria uma forma de obrigar o pai a exercer a paternidade responsável, fixando percentual de alimentos acima dos 30% praticados pela Justiça.

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Atualizado às 14:27

Pode não parecer, mas uma das maiores dificuldades da mãe separada é receber da Justiça pensão proporcional aos ganhos de ambos os genitores, e vou tentar explicar o motivo número 1 no ranking de motivos: ela não é parte do processo, portanto o que ela ganha pouco ou nada importa quando o assunto é observar o que diz a lei quanto a fixar alimentos na proporção das necessidades dos filhos e da capacidade contributiva de ambos os pais.

Explico: o STJ consolidou entendimento de que, por ser apenas a representante legal do filho, não se justifica considerar o valor dos rendimentos maternos, nem quebrar seu sigilo bancário, fiscal e de cartão de crédito a fim de avaliar a sua capacidade contributiva, nem olhar para o período de convivência dos filhos com cada genitor a fim de estimar o valor pecuniário do trabalho invisível de quem despende mais tempo se dedicando aos cuidados e à criação da prole.

Dessa forma, quando uma mãe busca na Justiça, em nome dos filhos, verdadeiros autores do processo, que o juiz fixe pensão alimentícia em percentual sobre os ganhos do genitor, tem de juntar provas das necessidades dos menores e da capacidade financeira paterna, rezando para que a Justiça reconheça os gastos dos filhos como base genuína de cálculo do valor dos alimentos devidos pelo pai, já que ignorará solenemente o importante papel materno na criação, educação e sustento dos filhos e não permitirá que se fixe percentual acima de 30% dos ganhos paternos.

Convenhamos, na separação a mãe passa a deter o referencial de lar dos filhos, que dependem dela para tudo, enquanto ao pai caberá pegá-las nos finais de semana alternados bem como uma quarta-feira sim, outra não, o que significa dizer que num mês o pai ficará com os menores exatos 6 dias completos, correspondendo a 144 horas com a criança, e à mãe caberá os demais 24-25 dias, ou 576-600 horas, isso se o pai exercer as visitas de forma assídua.

Em qualquer roda de conversa sobre esse arranjo familiar, ou nos autos de um processo ou em uma audiência, os genitores não hesitarão em sugerir à mãe "deixe a guarda comigo e pague a pensão", claramente sem pensar no bem-estar do filho que mantém com a mãe, desde o seu nascimento, ligação especial de afeto reconhecidamente necessária para a construção de sua personalidade.

Assim, após o litígio tomar conta da família, passa a imperar a disfuncionalidade, prejudicando e cortando importantes vínculos de afeto, obrigando a criança a lidar com a nova realidade a ela imposta de ter duas casas e a enfrentar interesses conflitantes e a angústia da separação que a atormenta quando um dos genitores está ausente. Sua maior ambição é voltar a conviver com ambos os pais, e não vislumbrar qualquer possibilidade mínima disso acontecer a machuca de forma inimaginável, deixando marcas indeléveis.

Importante lembrar que quando a separação se consolida, além de todo o desgaste natural de um rompimento, cada genitor também tem de se adaptar à nova realidade. Quem sai de casa percebe a necessidade de montar uma nova estrutura para receber os filhos. O pai passa a pegar as crianças na escola e a devolvê-las também na escola, decisão inteligente de quem sabe que entre a dor da separação e a aceitação é preciso tempo e distância máxima possível a fim de evitar o desgaste e a exposição dos filhos a qualquer tipo de constrangimento e sofrimento. A família inteira sofre com o desamor dos pais.

Apenas com o passar do tempo é que o par parental aprende a lidar com questões inevitáveis tais como quem busca, quem leva, machucados, consultas médicas, reuniões na escola, e quem paga o quê. Se o diálogo é possível, a família fica menos exposta a atritos e conflitos. Já quando o litígio se instala de forma irremediável, é preciso buscar ajuda para intermediar as conversas e decisões sobre temas envolvendo as crianças, e isso acaba sendo também o papel do advogado de família, funcionar como um negociador. Havendo intenção de se iniciar um processo judicial ou ações em curso, a intervenção amistosa dos advogados de família de cada parte passa a ser crucial para manter um mínimo de civilidade nos necessários contatos entre o par parental.

Confesso que maioria dos processos de guarda e alimentos é natural conversar com o advogado da parte adversa sobre qualquer assunto envolvendo o ex-casal e os filhos. Podemos começar o dia lembrando o advogado de pedir ao pai para pagar a pensão e no fim da noite receber mensagem lembrando de cobrar da mãe a meia listrada que não veio na mochila. É bem isso, e quem atua na área sabe que não estou inventando.

Pois bem. Enquanto toda essa situação se desenrola há uma pessoa que não para de fazer o que tem de ser feito, e por isso as coisas continuam funcionando: a mãe. As crianças continuam sendo assistidas, acompanhadas, ouvidas e acolhidas em todas as suas necessidades no dia a dia, constantemente cuidadas, observadas e assistidas.

Qualquer choro, encolhimento, dificuldade de aprendizagem ou atitude suspeita que sinalize início de depressão, ansiedade, medo e dúvida a mãe se inquieta,  atenta, e busca atender a criança, contratar psicólogo, neurologista, terapeuta, especialista em déficit de atenção, problema na fala, no ouvido, nos olhos, no corpo, na alma. 

"A mãe não deixa passar nada, é ela quem percebe, leva, busca, age: não espera, se levanta e busca imediatamente evitar a piora daquele sintoma que pode lhe tomar mais tempo e prejudicar ainda mais o filho, e por isso atua de forma preventiva na proteção de suas crias."

Quanto o pai chega, seja porque a mãe o chamou para acompanhar um exame, uma consulta, uma cirurgia, seja porque o filho pediu, é para que ele participe de um importante momento na vida do pequeno que, com a melhora, volta para casa. E a casa, no entender inconsciente da criança, é a materna.

Quanto o filho fala "vou para casa", está se referindo à casa materna. Quando vai para a casa paterna, declara: "estou indo pra casa do papai".

E é esse tempo, essa dedicação focada, essa força materna despendida na criação, no cuidado e na educação do filho que merece ser considerado um serviço invisível prestado pela mãe em prol de seus filhos, um capital precioso investido nos filhos que não pode ser ignorado. Sem esse trabalho materno imperceptível nenhum de nós estaria aqui agora, nem eu escrevendo essas singelas linhas nem você, leitor, disposto a compreender a profundidade do que tento explicar ansioso pelo final dessa história.

Um filho sem uma mãe zelosa a lhe proporcionar amor incondicional e investimento imaterial na construção de sua personalidade é um órfão despreparado para a vida adulta, privado da mais importante relação de afeto que é a pós-visceral, aquela que preenche todas as necessidades mais primitivas do ser humano, que o alimenta, cuida, protege, acalma, faz dormir, transmite segurança, abrigo e paz. A mãe dá vida, e é por isso que o Judiciário a trata como personagem vital para a sobrevivência psíquica da criança, garantindo que a guarda e o referencial de lar sejam sempre, prioritariamente, atribuídos a ela.

Porém, ao mesmo tempo em que trata o referencial de lar e a guarda com o devido respeito ao princípio soberano de proteção integral da criança, a Justiça, de forma totalmente contraditória e, podemos dizer, um tanto quanto imprudente, se deixa iludir quando o assunto é pensão alimentícia, interpretando a questão como sendo unicamente financeira e perpetuando a tese cultural machista de assegurar ao homem por trás do pai o direito de continuar a ostentar o arquétipo de provedor.

Complicado? Explico. O artigo 1.703 do Código Civil é claro ao determinar expressamente que ambos os genitores devem contribuir na proporção de seus recursos para a manutenção dos filhos.

A seu turno, o artigo 1.694, § 1º da mesma lei prevê que os alimentos em favor do filho menor devem ser fixados na proporção das necessidades do menor e dos recursos do genitor obrigado a provê-los. 

Já o artigo 22 do ECA é claro ao prelecionar que cabe aos pais o dever de sustento, guarda e educação dos filhos.

Quando uma ação de oferta, exoneração ou revisional de alimentos é ajuizada pelo genitor, a parte legítima para responder a demanda será a criança representada pela mãe. Já no caso de uma ação de pedido de alimentos, revisional de alimentos ou execução de pensão atrasada a parte legítima para figurar no polo ativo será a criança representada pela guardiã legal, a genitora.

Ou seja, a mãe, em nenhuma dessas ações, tem legitimidade para responder judicialmente às investidas jurídicas naturais das demandas, e não sendo parte do processo e não havendo previsão legal de atividade processual, não tem legitimidade para suscitar o reconhecimento judicial do tempo gasto na criação dos filhos como parte do cálculo da pensão alimentícia a ser fixada pela Justiça.

Logo, o trabalho imaterial da maternidade não pode ser invocado nos autos de um processo em que a mãe figura apenas como representante legal dos filhos, inviabilizando a valoração do tempo despendido com o cuidado da prole, impossibilitando ser merecedora de ser incluída no cálculo dos alimentos.

No entanto, ainda assim, entendo ser de imensa importância abrir uma preliminar ou prefacial final na petição de ingresso (inicial ou em sede de contestação) mostrando de forma detalhada a dedicação materna, o tempo despendido com os filhos, a desproporcionalidade injusta de tempo de convivência que afeta a vida da mãe e da família materna nas esferas temporal, emocional financeira, bem como a estrutura montada para satisfação de todas as necessidades dos filhos. Revela-se imprescindível para a mãe, mulher que conta com garantias do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero instituído pela Portaria CNJ n. 27 de 02/02/2021, mostrar o impacto em sua vida causado pela detenção do referencial de lar e de vida, segurança e força vital imprescindível dos filhos. Importante também, nesse contexto, mostrar, com gráficos coloridos chamando a atenção, o tempo de vida materna dedicada aos filhos e tempo de vida paterna despendida com a criação e educação da prole.

É que no ato de apreciar o processo é esperado que o magistrado se debruce sobre a narrativa dos fatos constante nas peças de ingresso e de defesa, ou que encaminhe à promotoria para a devida apreciação e manifestação. Ao fazer constar na petição essa realidade a mãe acaba levando a Justiça a ver, perceber, se sensibilizar e acolher, ainda que timidamente, esses sensatos relatos que servirão de base mental para a fixação dos alimentos, integrando o capital invisível à pensão estabelecida.

Por isso, a mãe não deve hesitar em falar sobre o tema, deixando clara a sua participação ativa imprescindível na formação da personalidade dos infantes.

Gosto de lembrar que quando se separa o genitor sai de casa e monta sua pequena estrutura, e geralmente não tem empregada, talvez no máximo uma diarista ou babá a lhe prestar serviços pontuais nos dias em que pega os filhos, enquanto a casa materna conta com um suporte extraordinário: empregada, babá, folguista, jardineiro, piscineiro, compras mensais de comida (tem de alimentar as crianças e as empregadas), ração dos pets, veterinário e hotel para deixá-los em viagens, dentre outros custos inadiáveis.

Logicamente, a estrutura materna obedece a condição social e financeira da mãe, que geralmente conta a colaboração generosa da família materna para a manutenção da prole. Isso é fato.

Não obstante, voltando ao assunto do machismo estrutural lá atrás iniciado, a Justiça mantém, ainda, o costume obsoleto e ultrapassado, porém consolidado, sem qualquer respaldo legal, de limitar a pensão alimentícia ao percentual injustificado de 30% da renda paterna declarada ainda que não atenda às necessidades da prole e onere a genitora de forma desequilibrada e desproporcional, favorecendo o enriquecimento sem causa do genitor, que deixa de contribuir para o sustento do filho na proporção de sua efetiva possibilidade financeira porque alguém lá em cima decidiu que o desconto não pode ultrapassar os 30% da renda paterna, garantindo a perpetuação do arquétipo do provedor que merece manter incólume 70% de seus rendimentos, entendimento que, sem explicação lógica, se tornou uma cultura jurisprudencial enraizada de dificílima desconstrução.

É como se ligassem um botão de "a mãe que se vire" em cada processo de alimentos em razão de uma proibição invisível de ultrapassar o percentual consolidado por uma cultura estrutural criada para manter o status masculino de provedor a qualquer custo (não dos filhos que reclamam alimentos, mas da vida paralela à da paternidade), estimulando a paternidade não-responsável ao expressar entendimento de que "o pai tem o direito de refazer a sua vida e para isso precisará dos 70% que lhe sobram".

Nesse meio tempo também declaram, em suas decisões, que não importa quanto a mãe ganhe, quanto a mãe desembolse para custear as despesas dos filhos, quanto invista de seu tempo nos cuidados, na criação e na educação dos infantes, nem quanto os filhos gastem, nem que os avós maternos paguem as contas, o aluguel, as despesas que deveriam ser pagas pelo genitor: "reduza os custos, o pai só pode dar 30%", essa é a mensagem.

Assim, serão a mãe, a avó materna, as mulheres da família que se multiplicarão para dar conta da criação dos filhos que não foram feitos sozinhos, o que, infelizmente, não recebe a valorização necessária do Poder Jurisdicional.

A Justiça, quando julga uma ação de alimentos, não olha para a capacidade contributiva de ambos os genitores como manda a lei nem para o tempo de cuidado e dedicação investido por cada genitor, preocupada que está em confirmar o percentual máximo por ela permitido há décadas a ser pago pelo pai que como homem deve ter garantida parte considerável de sua renda para a manutenção do perfil de provedor - não dos filhos que reclamam a justa colaboração paterna no rateio das despesas, mas de sua masculinidade.

Ao pai esse cuidado, à mãe o desprezo institucional pelo tempo que despende com os filhos, porque lá atrás foi ensinado que meninas brincam de boneca e de escolinha, e cuidam umas das outras, enquanto os meninos caçam passarinhos com seus estilingues e treinam para serem provedores quando crescerem, estereótipos que estão sendo revisitados e modificados com a evolução inevitável dos papéis de homens e mulheres na sociedade.

Assim, caso as despesas dos filhos apresentadas no processo avultem R$ 7.000,00 e o genitor tenha rendimentos declarados de R$ 10.000,00 mais alugueis na ordem de R$ 3.000,00, e a genitora receba salário de R$ 3.000,00, pode ter certeza de que, dependendo da quantidade de filhos, a Justiça pode vir a fixar alimentos na ordem de 20% a 30% da renda declarada, ou seja, entre R$ 2.000,00 e R$ 3.000,00, porque não lhe é permitido estabelecer alimentos em percentual além de 30%, e somente se houver mais de um filho. A conta não fecha e ao que parece ninguém se importa.

O ideal seria embutir no cálculo da pensão alimentícia a dedicação materna investida na criação dos filhos além de acabar de vez com a limitação de 30% da renda paterna para o desconto da pensão alimentícia quando o valor claramente não atende as necessidades da prole.

O que isso tem a ver com possibilitar a monetização do tempo materno investido na criação de um filho? Tudo.

Patricia Garrote

VIP Patricia Garrote

Advogada especialista em Direito de Família e Sucessões, Professora e Conselheira Seccional da OAB/DF.

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