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A insustentável leveza da partida

Não transformemos Elis em kitsch. Nem Belchior. Nem Kundera.

domingo, 30 de julho de 2023

Atualizado em 28 de julho de 2023 14:49

O que restou de Elis Regina? As gerações mais novas talvez não tenham conhecido a potência vocal de uma das maiores cantoras brasileiras dos últimos tempos. Talvez também não conheçam suas interpretações emocionantes e emocionadas. E talvez ainda não conheçam a sua história de vida, o quanto sofreu durante o regime militar brasileiro e as circunstâncias de sua morte. Mas alguns mais novos conhecem a moça criada pela inteligência artificial que canta na publicidade da nova kombi.

Já antecipo: aquela moça não é Elis.

A pergunta que abre esse artigo é uma referência a Milan Kundera, que, em "A insustentável leveza do ser" afirma: "[a]ntes de sermos esquecidos, seremos transformados em kitsch. O kitsch é a estação intermediária entre o ser e o esquecimento."1

Não queremos esquecer Elis. Nem Belchior. Nem os aspectos mais lúgubres da nossa história, inclusive recente. Mas não podemos transformá-los em kitsch. Nas palavras do escritor tcheco, "o kitsch exclui de seu campo visual tudo o que a existência humana tem de essencialmente inaceitável".2

Por que a morte parece tão socialmente inaceitável se é a única certeza da vida? Em uma população que supera 200 milhões de habitantes, foram lavrados apenas 33000 testamentos públicos no Brasil em 2022.3 Impossível saber quantos testamentos particulares foram realizados e não há registros do número de testamentos cerrados apresentados para registro nos tabeliães de notas do país. Mas ainda existe um consenso de que a sucessão prevalente no Brasil ainda é a sucessão ab intestado, ou seja, sem testamento.

Isso mostra que não gostamos de falar sobre a morte, nos sentimos desconfortáveis ao pensar no fim. Pensamos, talvez, que o pouco patrimônio não justifica um planejamento sucessório, tampouco a realização de um testamento. E muitas pessoas talvez nem imaginem que suas páginas em redes sociais, suas imagens, vozes e declarações se tornem uma questão sucessória. Elis poderia ter imaginado que os reflexos patrimoniais da cessão de sua voz e de sua imagem se tornariam sua herança. Mas imaginaria ela, nos idos de 1982, que reviveria em uma publicidade mais de 40 anos após a sua morte?

O planejamento sucessório não é mais apenas patrimonial. Robin Williams, morto em 2015, constou expressamente em seu testamento a restrição do uso de sua imagem pelos 25 anos seguintes à sua morte. Com isso, recriações virtuais estão proibidas até 20394. A cláusula testamentária representa um óbice à exploração econômica de seus aspectos individualizantes, mas, para além disso, Robin Williams restringiu o desenvolvimento de uma persona artificial alheia à sua essência, ao menos por um prazo determinado.

Em outra oportunidade, tratei a tutela póstuma dos direitos da personalidade como penso ser mais adequado: os aspectos existenciais de uma pessoa não compõem a sua herança, ou seja, não podem ser tratados como meros objetos economicamente apreciáveis.5 Podemos elaborar um testamento para dispor sobre seu destino6 não porque sejam herança, mas porque o testamento se presta a uma múltipla eficácia7 e pode se instrumentalizar à veiculação de manifestações existenciais.

E se não há testamento? Como determinar os limites e possibilidades das projeções humanas para além da morte?

Mais uma vez, me valho das reflexões de Kundera, invocando a passagem em que um filho, que nunca conviveu com o pai, é convocado para cuidar de seu funeral: "Encarregou-se do enterro. Na lápide, mandou gravar o nome do pai e a seguinte inscrição: 'Desejava o Reino de Deus na terra'. Bem sabia que o pai nunca teria empregado tais palavras. Mas estava certo de que a inscrição expressava exatamente o que o pai queria."8

Esse filho julgava saber mais sobre o pai do que o próprio pai e ousou empregar suas palavras para expressar o que entendia ser a mais fiel captação da vontade dele. Quantas vezes, assim como o personagem de Kundera, presumimos saber a vontade do outro, aquilo que lhe agradaria. Desde escolhas inocentes, como um presente, uma comida, uma viagem. Mas podemos confiar a obtenção de nossas preferências mais íntimas a outra pessoa? Em que medida nossas próprias preferências atravessam nossos olhares sobre a perspectiva do outro?

O caso evidencia que os interesses dos familiares compõem centro distinto ao do falecido. E é o centro de interesses projetado pelos aspectos perenes da personalidade do falecido que é protegido por meio da tutela póstuma da personalidade. Os interesses dos familiares não são ignorados, mas se voltam para a satisfação das próprias necessidades, inclusive existenciais.  Como não haveria razão para a identificação de um centro autônomo de interesses sem que fosse deferida a titularidade para sua defesa, a lei confere legitimidade aos familiares para procederem à tutela póstuma da personalidade.9

Tal legitimidade deve, entretanto, se restringir à função protetiva, ou seja, aos aspectos negativos da tutela. "Negativos" por representarem um não fazer, um não violar, uma proteção pautada na abstenção. Os familiares não teriam legitimidade, portanto, para atuar no núcleo afirmativo dos direitos da personalidade, ou seja, não se pode transferir o direito de desenvolver a própria personalidade a terceiros, familiares ou não. Nesse sentido, é nítido o caráter personalíssimo e intransmissível dos direitos da personalidade.10

Com a inteligência artificial, no entanto, o que se estaria fazendo, senão criando uma nova persona para Elis? Uma que canta, com um largo sorriso e com o vento em seu rosto, a música que sempre interpretou com dor, ao lado da filha adulta que não viu crescer. É inegável o sentimento de nostalgia que a imagem invoca e a saudade do talento de Elis, afinal, "não importa o desprezo que nos inspire, o kitsch faz parte da condição humana".11 Mas a Elis se foi. E por mais doloroso que seja, não é ela naquela publicidade.

Esse uso da inteligência artificial deixa evidente o que já podíamos ver em outros casos: a reconstrução artificial talvez amenize o peso da partida para aqueles que ficam.12 A morte dói e deixa saudades. Mas para aqueles que se vão, a partida pode ser etérea, mais leve que o ar.  Nos preocupamos em tentar reconstruir as vontades daqueles que se foram, quando não sabemos como seriam, como experienciariam a vida que não mais detém. Estão leves sem essas preocupações. E essa leveza é insustentável porque os queríamos no chão, no nosso convívio. A leveza da partida é insustentável para aqueles que buscam o peso da presença. Mesmo virtual.

Não transformemos Elis em kitsch. Nem Belchior. Nem Kundera.

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1 KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. Traduzido por Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 296. 

2 Op. Cit. p. 267.

3 BRASIL. Anoreg. Cartórios em números. 2 ed. 2022. Disponível em: Carto'rios-em-Nu'meros-Edic¸a~o-2022.pdf (anoreg.org.br). Acesso em 18 jul. 2023.

4 G1. Em testamento, Robin Williams pede restrição de uso de imagem até 2039. São Paulo, 01/04/2015. Disponível em: G1 - Em testamento, Robin Williams pede restrição de uso de imagem até 2039 - notícias em Cinema (globo.com). Acesso em 18 jul. 2023.

5 COLOMBO, Maici Barboza dos Santos. Tutela póstuma dos direitos da personalidade e herança digital. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; LEAL, Lívia Teixeira. Herança Digital: controvérsias e alternativas. Indaiatuba: Foco, 2022. p. 123-142.

6 CC, art. 1857, § 2º São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado.

7 NEVARES, Ana Luiza Maia. A função promocional do testamento: tendências do direito sucessório. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 250.

8 KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. Traduzido por Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 295.

9 CC, art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.

Em se tratando de direito à imagem: Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

10 CC, art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.

11 Op. Cit. p. 275.

12 LEAL, Livia Teixeira. Internet e morte do usuário: propostas para o tratamento jurídico post mortem do conteúdo inserido na internet. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2019.

Maici Colombo

VIP Maici Colombo

Advogada e professora de ensino superior. Doutoranda em Direito Civil (USP), Mestre em Direito Civil (UERJ).

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