Breves notas sobre auditoria e smart contracts: possibilidades de atuação notarial
Ambos os temas merecem aprofundamento doutrinário, sendo a proposta destas breves notas apenas levantar um primeiro debate sobre os dois temas.
segunda-feira, 31 de julho de 2023
Atualizado às 10:48
O notariado sempre demonstrou seu valor intrínseco frente aos novos desafios tecnológicos. A sua capacidade de renovação se dá pelo fato de que se trata de um corpo de indivíduos altamente qualificados e capacitados, com variadas habilidades. Alguns notários estudaram, além do direito, administração de empresas; outros são contabilistas de formação. Há engenheiros, inclusive aeronáuticos, nos quadros do notariado. Há uma imensa quantidade de notários poliglotas. E todos esses variados conhecimentos são extremamente úteis no dia a dia da profissão.
Atas notariais, por exemplo, requerem muitas vezes conhecimentos específicos. Hipotecas e alienações fiduciárias de navios ou aeronaves muitas vezes demandam conhecimentos técnicos. Alienação fiduciária de ativos financeiros infungíveis e fungíveis (cash colateral) em operações estruturadas demandam avançado conhecimento de finanças e fórmulas matemáticas (algoritmos). A aplicação e a interpretação de regimes de bens estrangeiros em partilhas, por sua vez, exigem por vezes conhecimento do inglês, francês, espanhol, e até do alemão. A concorrência existente entre os notários facilita a busca pelo notário mais preparado para cada ato, de acordo com o conhecimento específico exigido pelo usuário em cada situação.
Tudo isso já é uma realidade presente, mormente nos grandes centros urbanos e financeiros do país. Mas há outra realidade que se coloca mais recentemente, sobre a qual pretende-se debruçar nesse artigo. Trata-se da (i) possibilidade de participação do notário em auditorias contábeis e jurídicas realizadas por auditores independentes e (ii) da possibilidade de qualificação notarial dos chamados smart contracts. É o que será tratado a seguir:
Auditorias
É de conhecimento geral o episódio envolvendo a empresa de capital aberto Lojas Americanas S.A. Milhares de acionistas minoritários foram lesados pelo comportamento fraudulento de diretores que estiveram à frente da companhia no passado. Isso foi reconhecido em fato relevante divulgado pela própria empresa. Ocorre que a imprensa divulgou que a auditoria realizada pelos chamados auditores independentes tomou conhecimento por escrito (e-mail) das operações suspeitas que vinham sendo camufladas no balanço da empresa (risco sacado). Ocorre que esse fato relevante não foi levado ao relatório final dos auditores por motivos ainda obscuros.
Essas auditorias contábeis muitas vezes contam com apoio de advogados, mormente quando exsurgem questões jurídicas ou éticas. O trabalho dos auditores independentes, como o próprio nome diz, é guiado pela imparcialidade, devendo-se relatar problemas (ou inconsistências como se costuma usar na forma eufemística) nos balanços financeiros dessas companhias, ainda que isso contrarie o interesse daquele que contratou a auditoria. É dizer, não parece haver, salvo melhor juízo, qualquer motivo plausível para que as operações de risco sacado que foram noticiadas aos auditores não constassem do relatório final da empresa de auditoria.
Em um regime de concorrência aberto, no qual não há um número limitado de players, é muito difícil a efetividade na imparcialidade do agente econômico. Isso porque a realização de um trabalho que desagrade o contratante pode conduzir a uma não contratação para uma próxima auditoria. Contraria o interesse financeiro da empresa de auditoria - e a busca pelo lucro e bônus de seus executivos - que o trabalho seja feito por seu corpo de funcionários sem alguma espécie de ponderação de interesses. É dizer, o auditor deve ser sério, mas ao mesmo tempo flexível para não perder o cliente, duas características que parecem inconciliáveis nesse tema. Nessa toada, a ponderação feita pelo corpo de auditores do que deve ser levado ou não ao relatório normalmente acaba por levar em consideração mais os interesses da companhia (seus diretores e seus acionistas controladores) do que aqueles dos seus acionistas minoritários, prestadores de serviço, funcionários, enfim, todos aqueles que confiam nos relatórios para adquirir papéis da companhia ou com ela contratar. Essa problemática poderia ser sanada, ou pelo menos bastante mitigada, com a intervenção de um notário nos trabalhos de auditoria, como se verá a seguir.
Diferentemente dos auditores independentes, o notário não pode em nenhuma hipótese flexibilizar sua estrita imparcialidade sem severa punição pelos órgãos estatais correcionais. Há um regime de responsabilização civil e disciplinar extremamente rigoroso, que torna impossível a atuação do notário de forma enviesada. Por isso, ainda que em regime de concorrência, o número limitado e predefinido de notários, somado à precariedade da sua delegação (sujeita a perda) tornam improvável uma atuação contraria aos interesses de todos os envolvidos. É dizer, sendo a empresa um feixe de contratos, na conhecida definição de Ronald Coase, há interesse da coletividade de empregados, fornecedores, acionistas e clientes na máxima transparência possível. Quanto menor a assimetria de informações entre a gestão da companhia e aqueles com quem ela se relaciona, melhor para todos.
O que se sugere, portanto, é que as companhias, sobretudo aquelas inseridas no Novo Mercado, passem a prever em seus estatutos que no âmbito das suas auditorias deverão se valer obrigatoriamente de uma certificação notarial das comunicações havidas entre os auditores e a companhia, de sorte que tudo que for relevante ao conhecimento do público em geral seja publicizado em ata notarial que acompanhe o relatório dos auditores independentes. Aliás, há notários com conhecimento e experiência suficiente para compreender e enxergar o que é relevante ou não, isto é, o que merece publicidade e os dados que por algum motivo não comportam publicidade, seja porque se trata de segredo de negócio, seja porque envolvem direitos da personalidade. O acesso amplo por um notário aos e-mails trocados entre auditores e a companhia, no caso das Lojas Americanas, poderia ter evitado a catástrofe que se viu. É possível, aliás, que com uma intervenção notarial os acionistas controladores tivessem tomado conhecimento dos fatos perpetrados mais cedo, destituindo a diretoria e nomeando outros gestores, sem a geração de um rombo financeiro bilionário. E tudo isso a um custo extremamente baixo e tabelado.
Finalmente, cumpre consignar que notários estão preparados - e já fazem no mundo inteiro - auditorias jurídicas, sobretudo quando se há necessidade de uma total imparcialidade, isto é, quando não há uma pessoa física ou jurídica específica, assessorada por um advogado, interessada na aquisição da companhia (due diligence). Há situações em que compradores indeterminados dos produtos ou serviços de uma determinada companhia desejam uma certificação notarial do cumprimento de prazos e procedimentos, em conformidade com a legislação local, uma espécie de selo notarial que ateste a legalidade da conduta daquelas empresas. Como notários são agentes do Estado imparciais, essa certificação tem valor sensivelmente maior do que aquela emanada por um agente privado. Com isso, pode ser evitada a aquisição de bens de empresas que se valem de trabalho escravo, por exemplo, estando o notário plenamente capaz de avaliar in loco as condições de trabalho das pessoas envolvidas na produção, seus contratos, condições de trabalho dos fornecedores etc.
Disso se conclui que poderia ser ofertada, juntamente com a auditoria contábil, uma verdadeira auditoria jurídica notarial, com certificação expedida, repisa-se, por agente estatal desinteressado por essência, já que sujeito a pesadas sanções administrativas, cíveis e criminais, inclusive a perda da sua delegação no caso de desvios éticos.
Smart contracts
Diariamente são assinados milhões de contratos na internet para aquisição de bens ou serviços. A maioria das pessoas se recusa a ler o documento antes da assinatura, confiante de que não será necessário exercer nenhum direito com base nesses contratos. São contratos cuja leitura integral levaria dezenas de minutos, mas que acabam assinados em segundos. A doutrina jurídica tem apontado que grandes partes desses contratos contem cláusulas extremamente abusivas, algumas contrárias a texto expresso de lei (v.g. o Código de Defesa do Consumidor). O problema é ainda maior quando se trata de contratos com empresas situadas no exterior, regidos pelo direito internacional privado. Muitas vezes, a própria Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro acaba sendo esquecida ou afastada pelas partes. Anote-se que cada vez mais bens de valor relevante têm sido adquiridos por meio desse tipo de contratação, como veículos e até imóveis (tokenização, time-sharing etc).
Afora a questão da autenticação e legitimação dos signatários, que merece estudo aprofundado em outro artigo, exsurge o seguinte tema: se não há tempo hábil para ler esse contrato, quem poderia lê-lo pelo consumidor e afirmar de forma responsável e resumida que o contrato é confiável? Ora, um advogado sempre pode fazer isso. Ocorre que muitas vezes a contratação de um advogado para celebração de um smart contract não é viável por conta do custo do bem ou produto adquirido. Imagine-se, por exemplo, a contratação de um pacote de viagem com custo de dez mil reais para daqui dois anos. O custo da análise pelo advogado poderia ultrapassar o preço do próprio serviço vendido. Mas há inúmeros riscos nessa singela contratação. Por exemplo, o que acontece se o hotel ou a companhia aérea falirem até lá?! O dinheiro é devolvido ou é prestado um serviço similar por outro fornecedor? E quem define isso? O site que vendeu o pacote de viagens unilateralmente ou o consumidor precisa concordar com a troca? Esse é só um exemplo de como um smart contract pode gerar inúmeros litígios e muitas pessoas sequer param para lê-lo com cuidado.
Pois bem, o que se sugere aqui é a criação de uma espécie de SELO NOTARIAL. As empresas que vendem ou prestam serviços via internet, com celebração de smart contracts, poderiam contratar um notário que atestaria a legalidade das cláusulas contratuais por meio de uma detalhada ata notarial. É dizer, por ter o domínio do ordenamento jurídico, pode o notário atestar ao fim da citada ata que não há patentes abusividades ou ilegalidades naquele contrato, imprimindo uma conclusão sucinta, com fé pública e imparcialidade, que traria maior tranquilidade ao aderente. Poder-se-ia até cogitar de um selo notarial diferenciado que atestasse a inexistência sequer de cláusulas leoninas no contrato. Isso facilita a contratação pelo terceiro que pode: (i) confiar nesse SELO NOTARIAL e assinar sem ler, se assim desejar ou (ii) contratar advogado da sua confiança para ter uma opinião legal afinada com seus interesses e expectativas pessoais.
Finalmente, o selo notarial poderia ter ainda outra função relativamente aos smart contracts: remeter o usuário a um website seguro, mantido pelo notariado, que procedesse a uma verificação segura de que aquela página (URL) em que a compra está sendo realizada não é fraudulenta, o que colaboraria para redução de golpes cada vez mais comuns em nosso país - os chamados sites espelhos falsos.
Ambos os temas merecem aprofundamento doutrinário, sendo a proposta destas breves notas apenas levantar um primeiro debate sobre os dois temas.