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Dos delitos e das penas: Reflexões sobre justiça e punição

Beccaria pensou temas caros para o sistema penal através de uma ótica ponderada e racional que buscou uma análise que contemplasse a justiça para não ter que incorrer em velhos erros de sistemas penais de sociedades que antecederam o seu tempo.

segunda-feira, 31 de julho de 2023

Atualizado às 13:17

O livro de Cesare Beccaria cujo título Dos delitos e das penas já remete ao horizonte de reflexão proposto pelo autor, uma vez que o núcleo de análise que a obra se atém diz respeito à compreender de que forma um sistema penal injusto que mantém privilégios a uma casta de pessoas em detrimento da submissão de uma massa de indivíduos que recebe o excessivo rigor de uma lei punitivista. Beccaria indica que a lei deve ser um instrumento que contorne as iniquidades ao mesmo tempo em que assume como proposta pensar na distribuição equânime de direitos e deveres daqueles que integram uma sociedade. A tônica que Beccaria adota para criticar as leis antigas é no sentido de apontar suas fragilidades no que concerne à promoção do bem comum e da justiça tanto quanto projetar uma reformulação de leis que efetivamente implementem leis justas. Daí decorre que é necessário a elaboração racional de leis que estejam comprometidas com a justiça. 

Ao contrário do que se observou historicamente, em um estado de coisas no qual as leis foram produzidas por uma minoria motivada por pulsões que buscavam satisfazer suas necessidades privadas, a lei deveria ser resultado da convenção de homens livres e racionais dispostos a contemplar o bem comum. Doravante, Dos delitos e das penas é um livro que reúne uma série de reflexões, de princípios e de raciocínios, dentro de um campo da razoabilidade, que pensa sistematicamente acerca do discurso penal a fim de preconizar a aplicação de leis de forma racional, isenta e justa. 

Conforme apontamos alhures, a história está farta de eventos em que a lei foi utilizada como recurso passional que visou a garantia dos privilégios de uma elite, bem como, por consequência, gerou a perpetuação de iniquidades. Para não cairmos novamente na armadilha de elaborarmos leis ditadas pelas paixões humanas, Beccaria argumenta que a observação da história sob o ponto de vista racional poderia nos trazer lições fecundas quando a tarefa é pensar em uma sociedade justa norteada por leis apropriadas. Beccaria presume uma tese contratualista segundo a qual os homens abrem mão de parte de suas liberdades com o intuito de superar o estado de insegurança e de incerteza que pode levar continuamente à violência, à hostilidade e a morte agressiva, em um mundo anárquico sem leis, ou com leis aplicadas de maneira injusta. 

Portanto, é para fugir desse estado de selvageria, que a civilidade do espírito humano resolve fundar uma sociedade sob a égide das leis e das instituições que possam aplicá-las. Contudo, pouco valerá se as leis e as instituições forem corrompidas com vistas à manutenção de interesses particulares de alguns poucos, com potencial de tirania e, ademais, de injustiça. Em um contexto social, o fundamento do direito de punir está ligado à ideia racional de justiça que legitima as leis e a forma de aplicação delas, ao passo que o abuso e as paixões levam a uma sociedade que se naturaliza a injustiça e a barbárie. 

Coube ao legislador, pois, a função de elaborar as leis, que serão aplicadas a todos os membros da sociedade. Não obstante, o legislador elabora as leis, interpreta-as, porém, não as executa, institucionalmente, dado que este papel é do juiz. Portanto, o magistrado examina se um acusado particular violou ou não as regras penais. Essa divisão de quem legisla e de quem julga, defendeu Beccaria, é uma maneira para não concentrar o poder de punir em uma única figura, além de que evita que, se cada juiz interpreta as leis a seu bel prazer, caiamos em uma situação de instabilidade, de múltiplas interpretações inconstantes em que o mesmo delito seria punido de maneira diferente, a depender do ânimo, do temperamento, da visão de mundo, do magistrado. 

Outro ponto defendido por Beccaria, incisivamente, é o de que quanto mais os homens estiverem a par e conscientes das leis, mais razões terão para não as violar. Em outras palavras, a lei não deve estar coberta por ares misteriosos que dificultem o acesso do homem comum a letra delas, tampouco o homem comum deve estar submisso a um pequeno número de intérpretes das leis que lhes digam como agir. É preciso que o cidadão esteja consciente de suas ações e de suas consequências. Sobretudo, o espírito das leis deve ser permeado pela civilidade da humanidade, e jamais estimulada pelo ímpeto da vingança e do ressentimento, uma vez que tais sentimentos podem ofuscar a neutralidade racional de onde deve partir a interpretação e aplicação das leis. Beccaria apontou algumas contradições na forma como se se aplicou a leis em sociedades anteriores ao tempo em que ele viveu.

Para o autor, é contraditório e contrário à natureza esperar que os homens acusem a si próprios em um interrogatório, de modo que não se deve fazer perguntas diretas para os acusados, mas, antes, propor questionamentos indiretos a fim de captar a verdade do interrogado. Tão contraditório quanto o ato de esperar que os homens acusem a si mesmos é esperar que os acusados façam juramento de dizer a verdade, quando, por óbvio, o compromisso maior dos indivíduos é de não causar malefício a si próprio. Por essa razão, Beccaria afirmou que a prática do juramento, há tempos, realizada nos tribunais é absolutamente inútil.  

Um crime já cometido, portanto, que não se pode mais remediar, só terá a utilidade social de ser exemplarmente punido para que desencoraje outros homens de praticá-los. O que decerto move os homens a respeitar as leis é ou o temor da punição ou o compromisso com a virtude, mas em caso de um homem ser acusado de ter violado uma lei do pacto social, é justo submetê-lo à tortura, antes da conclusão do veredicto, a fim de estimular a confissão do seu eventual crime? Beccaria indicou que a técnica da tortura só poderia beneficiar o malfeitor e prejudicar o inocente, tentando lhe arrancar pela força da violência a confissão. A tortura para o culpado é favorável, visto que se aguentar o procedimento, terá uma pena mais branda, senão será inocentado. Já o inocente tem tudo a perder, ao ser forçado a assumir a responsabilidade por um delito que não é seu. Por conseguinte, a tortura é um meio infame realizado por frívolas instituições sociais que tratam o inocente e o criminoso da mesma forma. 

Os castigos penais têm por propósitos impedir que o culpado seja novamente nocivo à sociedade e dar razões através do exemplo aos concidadãos a não violar as leis. É pertinente optar pelas penas mais razoáveis que possam, simultaneamente, causar maior impacto na impressão do público e menos marcas cruéis no corpo do sentenciado. Beccaria dá ênfase à proporção, ao equilíbrio, entre delitos e penas para que a punição não seja injusta. O autor indicou que as sociedades precisam evitar que os suplícios cruéis se tornem espetáculos bárbaros sob o risco de haver a naturalização da barbárie e da crueldade. Assim, em vez de prevenir o crime, os suplícios em forma de espetáculos sanguinolentos, produzem o efeito de tornar as penas banais, supérfluas, sem, de fato, dissuadir os indivíduos a não ferir as regras sociais.

Beccaria afirmou que a experiência histórica revela que um espetáculo atroz, porém momentâneo, não surte efeito eficaz em comparação a uma pena frequente, com uma duração maior. Nesse sentido, seria preferível deixar o culpado privado de sua liberdade continuamente, como forma de punição, do que preparar uma cerimônia mórbida, efêmera, que espetaculariza a morte do culpado. Porquanto, uma pena extensa, contínua, é mais útil para trazer a impressão de justiça aos cidadãos, e afastar a ideia de impunidade, do que uma pena intensa, porém bastante fugaz, como a pena de morte. Além do mais, há um aspecto contraditório em um sistema de leis que prevê a pena de morte, uma vez que um dos crimes mais terríveis que a Justiça visa a combater é exatamente o homicídio, mas quando as instituições judiciárias tiram a vida de um homem, dão um recado de acordo com o qual a vida não é um bem inviolável. Assim, para além da contradição, Beccaria alega que um morticínio público, previsto pela pena de morte, é funesto para a sociedade, pois dá o exemplo da crueldade.

O rigor do suplício não implica a sociedade com mais segurança, o que acarreta uma sociedade mais segura e mais coesa é a certeza do castigo e a onipresença da lei manifestada por instituições vigilantes que aplicam leis moderadas. O legislador sábio tem em vista penas equilibradas e proporcionais aos delitos, posto que a distribuição desproporcional de penas aos delitos pode gerar a impunidade para crimes mais cruéis e aniquilar o sentimento moral dos homens. As leis precisam estar fixadas nos códigos de maneira clara e objetiva e os cidadãos devem ter a certeza de que, caso violá-las serão punidos exemplarmente, não obstante, Beccaria indicou que o legislador deveria pensar a elaboração das leis de tal modo que corroborasse com a situação de prevenir os delitos a ter que remediá-los. Para a sociedade é muito mais penoso ter que reparar um dano causado por um infrator. A prevenção do crime passa por deixar os homens mais livres e mais conscientes das regras simples e claras que devem nortear seus comportamentos. Ou seja, quanto mais leis, quanto mais regras, mais restrições ao comportamento dos cidadãos e mais chances de confusão, uma vez que com a amplitude das regras legais, mais crimes serão cometidos, já que tudo poderá ser visto como delito por um olhar flexível que observa leis confusas.

Portanto, Beccaria pensou temas caros para o sistema penal, como a prisão, o roubo, a pena de morte, o suicídio, a interpretação das leis, o legislador, através de uma ótica ponderada e racional que buscou uma análise que contemplasse a justiça para não ter que incorrer em velhos erros de sistemas penais de sociedades que antecederam o seu tempo.

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BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Edição eletrônica: Ed. Ridendo Castigat Moraes.

Bruno Emanuel S Learte

Bruno Emanuel S Learte

Perito em Computação Forense, Analista de Sistemas, Direito, Cibersegurança, Ciberdefesa, Especialista em Segurança Digital e Perícia Digital, Pesquisador, Acadêmico de Direito.

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