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Da persistente indefinição acerca da taxatividade, ou não, do Rol da ANS

André Massioreto Duarte e Guilherme Augusto Santos Oliveira

Estabilidade, integridade e coerência, vale lembrar, são aspectos fundamentais para o andamento na sociedade de um tema tão relevante que é a prestação de serviços em saúde.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Atualizado às 09:52

A discussão acerca da taxatividade, ou não, do rol de procedimentos e eventos em Saúde Suplementar da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) mesmo antiga, ainda ou mesmo assim parece estar longe de totalmente resolvida.

Como amplamente noticiado, a Segunda Seção do STJ (Superior Tribunal de Justiça), em junho de 2022, estabeleceu, no julgamento dos Embargos de Divergência 1.889.704-SP e 1886929-SP, que este rol é, em regra, taxativo. O julgamento foi naturalmente interpretado como uma vitória das operadoras de planos de saúde.

O resultado, porém, causou, além de comoção popular, reação legislativa imediata: no dia seguinte foi protocolado, na Câmara dos Deputados, projeto que, pouquíssimos meses depois, tornou-se a lei 14.454/22.  Na prática, a referida lei justamente esvazia a posição do STJ, de modo que o rol votou a ser meramente exemplificativo.

O seu texto, que altera a conhecida Lei nº 9.656/1998, determina que as operadoras cubram procedimentos alheios a este rol desde que, resumidamente, evidencie-se a comprovação científica de sua eficácia e, ou exista recomendação pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde) ou, ao menos, de um órgão de avaliação de renome internacional.

Ainda que o STF (Supremo Tribunal Federal), ao ser provocado a se manifestar acerca da lei 14.454/22, tenha mantido seu teor sem fazer qualquer retoque, parece mesmo inegável que a solução legislativa examinada trouxe consequências um tanto nebulosas e ainda não dirimidas completamente.

No ponto, há que se definir, dentre outros itens, se a lei 14.454/22 retroage e deve ser aplicada aos ditos casos antigos, qual é o efetivo conceito "caso antigo", e qual é o papel do decidido junto aos Embargos de Divergência 1.889.704-SP e 1886929-SP, diante, justamente, da lei 14.454/22.

Não é por outra razão que o Ministro Raul Araújo, de maneira sensível, propôs, na 2ª Seção do STJ, a instauração de Incidente de Assunção de Competência sobre o tema. Não obstante, o Colegiado, de forma não unânime, inicialmente rejeitou a proposta.

A razão central da rejeição da proposta de instauração deste incidente naquele momento, como bem destacado pelo Ministra Nancy Andrighi, reside, ao que parece, somente na ausência de suficiente amadurecimento das teses relacionadas ao influxo da lei 14.454/22 nas decisões da Segunda Seção, o que, supõe-se, deve ser resolvido com o tempo.

A própria egrégia Ministra Nancy, inclusive, chancelou a relevância da questão e até sugeriu, caso fosse admitida a instauração do incidente, a seguinte proposta de identificação daquela a ser submetida a julgamento, a saber: "hipóteses de aplicação das teses fixadas no julgamento do EREsp 1.886.929/SP e do EREsp 1.889.704/SP pela Segunda Seção e de incidência da lei 14.454/22 nos processos em que se discute a obrigação de cobertura, pela operadora de plano de saúde e de procedimentos e eventos no listados no rol da ANS".

Bem, o fato é que, enquanto não definitivamente enfrentada a questão no STJ, persiste um quadro de lacuna em um tema de alta relevância social e econômica. Tanto que o Ministro Raul Araújo, com precisão, indica que a instâncias ordinárias podem ficar em "(...) posição complicada: elas têm um precedente vinculante que aponta para a taxatividade do rol e uma lei posterior que diz que o mesmo é exemplificativo. Um deles precisará ser ignorado, e isso não acontecerá de maneira uniforme".

Na prática e, neste hiato, já se vê divergência na jurisprudência. Já há entendimentos a indicar que a lei 14.454/22 não retroage à vista de sua natureza material, sendo aplicável somente aos casos em que a negativa ocorrer a partir de sua entrada em vigor, isto é, somente a partir de 22/9/20221. 

Enfim, parece mesmo necessário que o STJ compatibilize e harmonize entendimento anterior à lei 14.454/22 o quanto antes, notadamente porque existe, de fato, um plexo de situações jurídicas que podem não se resolver com a simples aplicação da nova Lei, como sugerido pelo Ministro Raul Araújo.

O enfrentamento atende não só a necessidade de prestígio à estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência (uma das diretrizes mais relevantes do atual Código de Processo Civil), mas, ainda, à necessidade de prioritária escolta aos relevantíssimos bens jurídicos subjacentes à discussão. Estabilidade, integridade e coerência, vale lembrar, são aspectos fundamentais para o andamento na sociedade de um tema tão relevante que é a prestação de serviços em saúde.

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1 APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. PLANO DE SAÚDE. EQUIPAMENTO DE ÓRTESE NÃO LIGADO A ATO CIRÚRGICO. ?THERATOGS?. LEI Nº 9.656/1998. RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 465/2021 DA ANS. ROL TAXATIVO. AUSÊNCIA DE PREVISÃO. LEI Nº 14.454/2022. IRRETROATIVIDADE. EXCLUSÃO DE COBERTURA. AUSÊNCIA DE EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. SENTENÇA MANTIDA. 1. O contrato de plano de saúde não operado por entidade de autogestão está sujeito às regras do Código de Defesa do Consumidor, conforme a Súmula 608 do Superior Tribunal de Justiça. 2. A Lei nº 14.454/2022 estabeleceu critérios para cobertura de tratamento de saúde que não estão incluídos no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS. Trata-se de lei material e, portanto, irretroativa, sendo aplicável somente aos casos em que a negativa ocorrer a partir de sua entrada em vigor, em 22/9/2022. 3. A Lei nº 9.656/98, ao tratar sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, ao estabelecer o plano-referência prevê a competência da Agência Nacional de Saúde Suplementar para definir a amplitude das coberturas (art. 10, § 4º). 3.1. Assim, a Agência Nacional de Saúde Suplementar editou a Resolução Normativa nº 465/2021, que estabelece o rol de procedimentos mínimos obrigatórios a serem observados. 4. O art. 10, VII da Lei nº 9.656/1998 expressamente exclui a obrigatoriedade de cobertura de fornecimento de próteses, órteses e seus acessórios não ligados a ato cirúrgico. No mesmo sentido dispõe a Resolução Normativa nº 465/2021 da Agência Nacional de Saúde Suplementar. 5. Ante a exclusão expressa da cobertura de equipamentos de órtese não ligados a ato cirúrgico pelo art. 10, VII da Lei nº 9.656/1998 e pelo art. 17, parágrafo único, VII da Resolução Normativa nº 465/2021 da ANS, e a ausência de evidências científicas aptas a justificar a aplicação de exceção à taxatividade, é necessário concluir pela inexistência de obrigação de cobertura do equipamento pela operadora de plano de saúde 6. Recurso conhecido e não provido. Sentença mantida. (TJ-DF 07113828120228070009 1709528, Relator: ROMULO DE ARAUJO MENDES, Data de Julgamento: 07/06/2023, 1ª Turma Cível, Data de Publicação: 13/06/2023)

André Massioreto Duarte

André Massioreto Duarte

Advogado especialista em Direito Processual Civil pela FGV, é sócio do escritório Gaido & Massioreto Sociedade de Advogados - MagLaw.

Guilherme Augusto Santos Oliveira

Guilherme Augusto Santos Oliveira

Advogado especialista em Direito Processual Civil pela FGV, integra o escritório MagLaw.

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