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A revolução da arbitragem pelo blockchain e sua aplicação nos litígios imobiliários

O modelo da plataforma Kleros e a possibilidade de atuação de notários e registradores.

terça-feira, 8 de agosto de 2023

Atualizado em 11 de agosto de 2023 11:23

Introdução: A plataforma Kleros

Já existem inúmeros estudos nacionais e internacionais que tratam da chamada Resolução Online de Disputas (Online Dispute Resolution - ODR). Assim, não se pretende especificar as técnicas processuais de julgamento a partir de uma inteligência coletiva ou artificial. O imaginário sociotécnico gerado pela informática conduz uma determinada comunidade a desenvolver esse tipo de ferramenta de justiça (uma espécie de vigilante), o que gera fascínio inicial pela facilidade e simplicidade, sendo necessário, contudo, analisar-se de forma objetiva o seu impacto jurídico revolucionário, com sua possível aplicabilidade nos litígios imobiliários.

O trabalho é empiricamente justificado pela notória capacidade de geração de litígios em negócios relacionados à venda de futuros terrenos ou unidades imobiliárias (i.e., loteamento e incorporação imobiliária)1. De fato, a construção tem sido descrita há mais de duas décadas como um problema socioeconômico por excelência, sendo a construção de edifícios de apartamentos na forma de incorporação imobiliária a mais frequente solução dos problemas habitacionais (WALD, 1998). Como se não bastasse a venda de algo que não existe no momento presente, o financiamento bancário para a construção agrega mais uma dificuldade à equação.

A arbitragem, por sua vez, é um processo de solução de conflitos extrajudicial por um terceiro imparcial. A Constituição Brasileira de 1824 já previa que desacordos jurídicos cíveis fossem decididos por árbitros, chegando a ser obrigatório em temas do direito comercial entre 1850 e 1866 (MARINHO; RIBEIRO, 2017). É um método alternativo de solução de disputas que pode ser usado para resolver muitos tipos de conflitos, de questões patrimoniais familiares até problemas comerciais complexos envolvendo o direito internacional.2

A arbitragem pode ser uma solução mais rápida, mais econômica e menos estressante que um julgamento por um tribunal convencional3, embora também possa ser uma experiência difícil e confusa, se as partes não estiverem familiarizadas com o processo. É importante que as pessoas compreendam os desafios e riscos que podem enfrentar, o que no direito é materializado pelo "[...] equilíbrio dos direitos e obrigações, controlado pela regra da boa-fé objetiva".

A plataforma Kleros foi criada por uma comunidade de programadores, sem fins lucrativos, com o objetivo de solucionar justamente os problemas de acesso, custo, complexidade e eficiência existentes nas soluções de resolução de conflitos tradicionais, com a promessa de liberar os tribunais convencionais dessa tarefa (DYLAG; SMITH, 2021) 

2. Da estrutura da Kleros

A estrutura jurídica da plataforma pode ser traduzida em uma espécie de cooperativa, nem pública nem privada (SOARES, 2020). Em síntese, a plataforma não possui um dono ou controlador, mas pertence a toda e qualquer pessoa que desejar ingressar, por meio da aquisição de um stake do patrimônio em criptomoeda. Os árbitros são recompensados pelos casos que julgam por meio de valores pagos pelos usuários à plataforma com a criptomoeda nativa da Kleros ("PNK"). 

A plataforma se vale também da teoria dos jogos: a remuneração do árbitro está atrelada à qualidade do seu voto, que é medida pelo fato de o voto ser vencedor ou perdedor dentro do grupo de árbitros. Nenhum árbitro conhece de forma previa o voto do seu colega, sendo que os julgadores são selecionados aleatoriamente, a partir de um grupo inscrito na plataforma, que possuí os requisitos necessários para julgar o caso. (KLEROS..., 2022c).

Há outros casos já estudados de plataformas de resolução de conflitos, como a do Ebay, da Wikipedia, da cidade de Nova Iorque, e até do Mercado Livre (ARBIX, 2015). A Modria, outra plataforma semelhante, foi criada por Colin Rule, depois do sucesso obtido por ele no ebay, e possui viés nitidamente comercial, ou seja, não se caracteriza como uma espécie de movimento social descentralizado - caso da Kleros.4

O diferencial da Kleros está no fato de ser uma plataforma de uso livre, descentralizada, para litígios que não decorrem do próprio serviço público ou privado prestado pelo fornecedor da plataforma. A ferramenta permite até que os litigantes e árbitros votem em questões que os afetam, inclusive aquelas relacionadas ao funcionamento da plataforma, dando-lhes o poder de influenciar as regras postas pela equipe de programadores (KLEROS..., 2022c).

Kleros é uma instituição supranacional, o que também a legitima para dirimir conflitos imobiliários envolvendo nações e povos distintos. O recente episódio em Sheikh Jarrah, no qual colonos israelenses obtiveram junto a um Tribunal Israelense uma ordem de despejo das famílias palestinas ali instaladas há décadas, demonstra a importância de existirem ODRs supranacionais formadas para dirimir pequenas disputas imobiliárias, o que poderia ter evitado até mesmo uma guerra. Afinal, a legitimidade de um Tribunal Israelense para deliberar sobre questões palestinas iria, segundo parte da comunidade internacional, contra a própria ideia de Justiça5.

Não existe hierarquia entre árbitros que compõem a plataforma Kleros, algo que poderia militar contra a sua imparcialidade, até porque optou-se pelo anonimato destes tanto entre si, quanto em relação aos litigantes. É dizer, qualquer arbitro poderá ingressar diretamente na chamada Corte de Apelação ou nas Cortes especializadas nas mais variadas matérias. Aqui cumpre esclarecer que não há um processo seletivo dos árbitros de acordo com suas capacidades técnicas. A qualidade do voto será controlada apenas a posteriori e com base no critério objetivo deste integrar a maioria vencedora ou não. Entretanto, o custo para aquisição do stake pago em bitcoins para garantir a operação é maior de acordo com a hierarquia e importância da Corte (espécie e valor do litígio julgado), o que torna a aderência pelo árbitro um investimento de risco para pessoas não especializadas naquela matéria

Anote-se que é possível recorrer de forma ilimitada das decisões proferidas por um painel. Entretanto, o custo das taxas cobradas pela Kleros do recorrente aumenta significativamente a cada recurso interposto, uma vez que o número de árbitros selecionados para o caso dobra, o que acaba por desestimular sua interposição.

A plataforma surgiu, portanto, como alternativa à arbitragem convencional, posto que o modelo tradicional está sujeito a muitos desafios: (i) manter a imparcialidade, lidar com conflitos de interesse e garantir a igualdade de tratamento para todas as partes, sobretudo quando uma das partes é econômica ou juridicamente mais poderosa que a outra; (ii) atentar a todo tempo aos sinais de fraude ou outras atividades ilícitas e, por vezes, resistir à pressão para tomar decisões que favoreçam uma das partes envolvidas; (iii) garantir que o corpo de árbitros se mantenha atualizado com as normas relevantes para o caso em questão; e (iv) dar transparência e publicidade das regras aplicáveis ao procedimento.

A manutenção da confidencialidade e gerenciamento do tempo de forma eficiente são outros desafios que envolvem a arbitragem convencional. Os árbitros devem ser capazes de organizar o tempo de forma que seja suficiente para ouvir todas as partes e chegar a uma decisão justa sem, contudo, envolver ajudantes e terceiros que podem comprometer a confidencialidade.

O custo da arbitragem convencional - somado à falta de imediata efetividade das decisões proferidas - é outro desafio posto, sobretudo quando se trata de conflitos advindos das relações de consumo. Todos esses pontos a Kleros se propõe a solucionar, seja por meio de algoritmos, seja com base na teoria dos jogos.

  • Confira aqui a íntegra do artigo.
Lucas Furlan Sabbag

Lucas Furlan Sabbag

Notário titular no Estado de São Paulo. Mestre em Direito Civil e Direitos Humanos, foi professor em cursos de pós-graduação em Direito notarial e registral. Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP, Seccional Osasco.

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