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Ações afirmativas de combate ao racismo em contratações públicas

Maís Moreno e Leonardo Mariz

Além de a promoção da equidade racial ser uma exigência ética, há imposição legal para o poder público agir neste sentido.

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Atualizado em 17 de agosto de 2023 12:32

Recentemente, tratamos da análise de riscos contratuais a partir da equidade de gênero. Ainda no escopo de responsabilidade social da iniciativa privada e estatal, resta focar o alcance das ações afirmativas de equidade racial nas contratações públicas.   

Pioneiro, o decreto 4.228/02 buscou efetivar os mandamentos constitucionais por meio de ações afirmativas raciais. Entre outras ações, o programa nacional de ações afirmativas, ainda em vigor, determinou que nas licitações de órgãos da administração pública Federal se observasse pontuação adicional em licitações para empresas com políticas inclusivas (art. 2º, III). Impõe também metas de participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas com deficiência nas contratações de empresas prestadoras de serviços, bem como de técnicos e consultores no âmbito de projetos desenvolvidos em parceria com organismos internacionais (art. 2º, IV).   

Em 2003, assistimos à fundação da Secretaria Especial de Promoção de Políticas da Igualdade Racial, primeiro órgão com status de ministério voltado para a temática da questão racial no Brasil (lei 10.678/03). Ela representou um divisor de águas. Desde então, criaram-se mais normas destinadas a promover a equidade e a proteção de grupos raciais e étnicos. Hoje, formam um quadro normativo robusto, que não deixa dúvidas sobre o dever de a Administração Pública direta e indireta combater, no exercício de suas competências, o racismo.  

Com o objetivo de abordar o racismo em políticas públicas nas áreas de saúde, educação, segurança, trabalho e direitos humanos, o decreto 4.886/03 instituiu a política nacional de promoção da igualdade racial. Ela ressalta a importância da inclusão de pessoas negras no mercado de trabalho e estabelece que o Estado deve implementar ações para promover a igualdade racial.  

Anos mais tarde, o Planapir - Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial foi aprovado pelo decreto 6.872/09 com o objetivo de combater o racismo, garantindo oportunidades equânimes de trabalho, educação e desenvolvimento para pessoas negras nas instituições públicas e privadas. O Planapir destaca a promoção da igualdade racial em programas de infraestrutura, exigindo do poder público a observância dessas disposições ao financiar e planejar projetos de habitação social.  

Em julho, a lei 12.288/10, conhecida como EIR - Estatuto da Igualdade Racial, completou 13 anos de vigência. Importante ferramenta de combate ao racismo, o EIR traz normas fundamentais para compreender a extensão do dever do Estado no combate ao racismo, inclusive nas relações contratuais que trava com a iniciativa privada.  

No art. 4º, por exemplo, o EIR estabelece que a igualdade de oportunidades deve ser promovida por meio de políticas de ação afirmativa, inclusão nas políticas públicas de desenvolvimento econômico e social e mudanças nas estruturas institucionais do Estado. Também determina que as políticas públicas devem reparar as desigualdades sociais e práticas discriminatórias nas esferas pública e privada.    

O art. 39 do EIR traz mais uma regra chave para compreender o papel das ações afirmativas. Menciona explicitamente que o poder público deve promover a igualdade de oportunidades nas contratações públicas e incentivar medidas semelhantes nas empresas e organizações privadas. Ou seja, é dever do Estado agir para combater o racismo mesmo na esfera privada.   

Recentemente, o Congresso Nacional aprovou a Convenção Interamericana contra o Racismo com status de emenda constitucional (ratificada pelo decreto 10.932/22). A Convenção estabelece que os Estados devem adotar ações afirmativas para promover a igualdade de oportunidades para pessoas negras. 

Portanto, além de a promoção da equidade racial ser uma exigência ética, há imposição legal para o poder público agir neste sentido.  

O BNDES, por exemplo, em seminário histórico sobre "empoderamento negro para transformação da economia", realizado em maio deste ano, sinalizou que incorporará diretrizes relacionadas à equidade racial em suas atividades de maneira transversal. Note-se que já vige no banco a resolução 1.952/10, que prevê o encerramento antecipado de contratos de financiamento em casos de discriminação racial ou de gênero, assédio moral ou sexual e trabalho escravo. Pretende-se ir além.  

Há, ainda, diversos projetos de lei em andamento sobre o tema, a exemplo do PL 2067/21, que propõe a exigência de um percentual mínimo de mão de obra e a reserva de vagas para pessoas negras na lei 14.133/21, a nova lei de licitações.

Traduzido para o universo das relações público-privadas, o EIR e as demais normas mencionadas autorizam, ou determinam, que o Estado 1) privilegie, nas compras públicas, fornecedores que demonstrem alinhamento com o combate ao racismo, 2) balize os critérios de financiamento nos bancos estatais baseados em ações afirmativas raciais, 3) componha regras de licitação observando ações afirmativas, 4) forneça diretrizes para estruturação e execução de projetos públicos - incluindo o mapeamento de riscos e indicadores de desempenho - que considerem o combate ao racismo, em diversas dimensões. Mesmo na regulação de serviços públicos, há espaço para considerar essa dimensão social. Há exemplos de países e instituições que optaram por esse caminho e transformaram suas realidades.  

As normas, como vimos, estão em vigor há décadas. Contudo, o atento leitor constata que muitas não são observadas. Eventualmente, sequer são conhecidas por operadores do direito. Porém, é hora de correção de rota. A crescente pressão social, somada às recentes sinalizações de importantes órgãos estatais e o irrefreável movimento da iniciativa privada por ambientes mais diversos apontam para uma nova realidade. Ela é mais inclusiva e está amparada pelo quadro normativo brasileiro.  

Não à toa, muitas empresas já executam programas multirraciais. Nesse contexto, é responsabilidade das lideranças e conselheiros considerar a promoção da igualdade racial por meio da implementação de mecanismos pró diversidade, equidade e inclusão. Além disso, devem mapear os riscos decorrentes de práticas discriminatórias por parte de funcionários ou terceiros contratados, pois isso pode afetar de maneira definitiva a reputação da empresa, a confiança em seus serviços, a obtenção de financiamentos e contratações, inclusive com o Poder Público.   

É tempo de incorporar essa agenda. A toda sorte, as consequências da inércia são prejudiciais. Afinal, condições justas de trabalho e respeito aos direitos humanos são um bom negócio. A iniciativa privada mais atenta já percebeu. A administração pública também.  

Maís Moreno

Maís Moreno

Advogada da banca Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados e atua em Direito Administrativo e Regulatório.

Leonardo Mariz

Leonardo Mariz

Advogado do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados.

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