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A Política Nacional de Educação Digital e o combate à desinformação no Brasil

O fenômeno da desinformação é complexo e alguns acontecimentos recentes parecem ter motivado o Congresso Nacional a se debruçar com maior afinco sobre Fake News e desinformação.

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Atualizado às 08:33

A lei 14.533 de 2023 instituiu no Brasil a Política Nacional de Educação Digital, conhecida pela sigla PNED. A partir dela, objetiva-se promover políticas públicas relacionadas ao ambiente digital e seus recursos, ferramentas e práticas. Para isso, a política foi estruturada nos eixos da inclusão digital, da educação digital escolar, da capacitação e especialização digital e, por fim, da pesquisa e desenvolvimento em Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs)1.

O presente texto analisa se e como a PNED pode auxiliar no problema de desinformação que ocorre no Brasil. Sabe-se que, apesar da desinformação ser uma questão antiga, tem se tornado mais poderosa com a difusão da Internet e das redes sociais nos últimos anos. Acredita-se que o fenômeno da desinformação é amplo, mas faz parte dele a difusão de notícias falsas também conhecidas como fake news, materiais intencionalmente manipulados, descontextualizados ou falsificados, ou seja, produzidos e compartilhados para confundir o leitor2.

Alguns indicadores já demonstram o grande número de notícias deliberadamente falsas que circulam entre os cidadãos brasileiros. Em pesquisa publicada pelo Poynter Institute em 2022, demonstrou-se que 44% da população afirma receber fake news diariamente3. Essa problemática torna-se ainda mais prejudicial quando nos referimos a públicos em situação de analfabetismo, exclusão digital e pessoas idosas.

Além do público que consome a informação, há também uma nova categoria de internauta que pode corroborar com a proliferação da desinformação. São os prosumers, que produzem em escala informações que geram grandes repercussões em redes sociais, blogs, websites e outros4.

O fenômeno da desinformação é complexo e global, possuindo causas ainda não totalmente compreendidas. O seu enfrentamento também é difícil, e normalmente considera-se que para a sua solução é necessária atuação multissetorial, ou seja, que integre os Estados, as empresas e a sociedade civil, de maneira ampla. 

Uma das causas da desinformação parece ser que, no ambiente online, há grande número de informações disponíveis em diferentes fontes (jornais, revistas, blogs e redes sociais, por exemplo). Para identificar esse fenômeno, a Organização Mundial da Saúde (OMS) desenvolveu o termo "infodemia"5 que significa que vivemos em um mundo no qual há muita informação disponível aos indivíduos. Nesse contexto, há também muitas informações equivocadas, incluindo aquelas falsas ou fora de contexto, por exemplo.

O fenômeno da infodemia e da desinformação, em sentido mais amplo, pode causar problemas para a saúde pública, como tornou-se explícito durante o período da pandemia do coronavírus, da vacinação e do estado de calamidade pública. Casos de violência e assassinato contra pessoas falsamente acusadas de crimes também foram registrados, como o de Fabiane em 2014, no Guarujá6, o que evidencia que os impactos da desinformação podem atingir diferentes contextos e setores.

Seus efeitos foram evidentes nas eleições, em que as fake news ganharam maiores proporções no contexto em que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) adotou uma série de medidas específicas para mitigar riscos da desinformação contra o sistema eleitoral, candidatos e partidos, inclusive, com participação e auxílio das plataformas digitais7.

Problemas democráticos também são registrados, como nos casos da invasão do Capitólio em 2021, nos Estados Unidos, e de prédios públicos em Brasília, em 8 de janeiro de 2023. Os dois acontecimentos foram motivados, ao menos em parte, por desinformações sobre supostas fraudes nos processos eleitorais, significando um ataque às instituições democráticas e ao Estado brasileiro. Esses fatores parecem ter motivado o Congresso Nacional a se debruçar com maior afinco sobre o chamado PL das Fake News (PL 2.630/2020) em 20238.

Apesar da complexidade do problema, acredita-se que o PNED pode auxiliar no combate à desinformação no Brasil. O letramento digital e informacional é um dos objetivos da Política Nacional e essencial no enfrentamento desse desafio. O letramento digital pode ser compreendido como a capacidade de leitura e de compreensão de textos nos ambientes digitais, a exemplo das redes sociais. Engloba também a busca de informações online, encontrando textos e avaliando sua pertinência e credibilidade9.

Um dos exemplos da previsão sobre o letramento digital ocorre com a alteração, imposta pela PNED, sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB (Lei n. 9.394/1996). Com ela, prevê-se a educação digital no artigo 4º, XII como um dos deveres do Estado, a qual engloba o "desenvolvimento de competências voltadas ao letramento digital de jovens e adultos".

O eixo da educação digital escolar (artigo 3º) também estabelece sobre o letramento digital. O inciso III é o que se relaciona mais com a temática da desinformação, esclarecendo que a educação digital engloba a cultura digital e a participação consciente e democrática por meio das tecnologias digitais, incluindo uma "atitude crítica, ética e responsável em relação à multiplicidade de ofertas midiáticas e digitais".

O eixo da PNED sobre a inclusão digital é instituído no artigo 2º. Ele estipula, por exemplo, que deverão ser promovidas competências digitais, midiáticas e informacionais dos brasileiros. Nesse sentido, o treinamento para utilização dessas competências deve ser promovido. Assim, um dos objetivos deste eixo é a "atuação responsável na sociedade conectada e nos ambientes digitais" (art. 3º, §1º, I).

Sustenta-se que a educação digital da população é um dos caminhos inevitáveis para o enfrentamento da desinformação, ainda que os resultados sejam obtidos a longo prazo. Como discutido, a atualidade vivencia os problemas típicos da multiplicidade informacional ou infodemia. Um dos modos de enfrentamento desse desafio deve ocorrer desde a educação básica, nas escolas10.

Um dos exemplos concretos da importância do letramento e da capacidade crítica dos indivíduos é a identificação de quais informações são verdadeiras e quais são falsas. Tal capacidade exige, por exemplo, que sejam identificadas as fontes das informações, ou seja, se aquela informação tem origem em sites lícitos e confiáveis. Outro exemplo seria a necessidade de avaliar se a mesma notícia é corroborada por outras fontes.

É importante ressaltar que o letramento digital, apesar de análogo ao letramento no sentido tradicional, não necessariamente implica em sua ausência ou em sua má aplicação. As dificuldades que a falta de letramento digital traz não advém da ausência de compreensão do conteúdo, mas sim dos contextos relacionados a esse conteúdo que podem distorcê-lo e manipulá-lo para transmitir uma mensagem deturpada.

A capacidade do usuário de tratar criticamente de conteúdos em meios digitais, buscando suas fontes, contextos, especificidades, é fundamental para o uso responsável e produtivo dos meios e ambientes digitais. Mas não é o suficiente para lidar com vasto volume de informações disseminadas, em especial as que exijam um trabalho de verificação mais dedicado.

Diante da impossibilidade do usuário de exercer o papel de verificador de todo tipo de conteúdo, uma maneira importante por meio da qual a educação midiática pode atuar contra a desinformação é a informação sobre as agências de checagem de fatos ou fact-checking. Como dito, é relevante que os cidadãos consigam realizar pesquisas autônomas sobre a credibilidade das informações. A título exemplificativo, verificar se aquele dado realmente consta nos registros oficiais do Estado.

Em casos mais complexos a atuação das agências de fact-checking é ainda mais relevante. Essas agências realizam trabalho investigativo, verificando a compatibilidade e confrontando o conteúdo divulgado com dados, fotos e vídeos presentes nos registros disponíveis. Existem, no Brasil, inúmeras agências que realizam esse trabalho de checagem de fatos. Cita-se, como exemplo: Agência Lupa; Aos Fatos e Fato ou Fake.

Saber realizar a checagem de fatos de maneira autônoma, bem como realizar a consulta nas agências em casos mais complexos são competências digitais, informacionais e midiáticas relevantes no mundo atual e que podem ser melhor desenvolvidas com a concretização dos objetivos estabelecidos pelo PNED.

A educação digital e midiática, de maneira geral, é essencial para que os cidadãos tenham autonomia de compreender e avaliar se aquela informação é verdadeira e deve ser repassada aos amigos e familiares. Trata-se de ferramenta essencial para evitar o compartilhamento em massa das fake news.

Como dito, o problema é complexo e necessita de atuações por diferentes atores sociais e com ações a curto, médio e longo prazo. No entanto, acredita-se que a concretização dos objetivos estipulados pela PNED auxiliará na educação digital, midiática e no letramento digital, o que é um dos caminhos inevitáveis para o combate à desinformação. Os cidadãos devem ser instruídos para conseguirem acessar as informações de maneira livre e avaliar sobre o seu conteúdo de maneira autônoma.

____________

1 BORELLI, Alessandra; FRANÇA NETTO, Milton Pereira de; PIAIA, Thami Covatti Piaia. A necessidade premente de capacitação dos professores na PNED. Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/389782/a-necessidade-premente-de-capacitacao-dos-professores-na-pned. Acesso em: 12 jul. 2023.

2 KEYES, Ralph. A era da pós verdade: desonestidade e enganação na vida contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 165.

3 MANNARA, Barbara. 44% dos brasileiros dizem receber fake news diariamente; veja pesquisa. 13 ago. 2022. Tech Tudo. Disponível em: https://www.techtudo.com.br/noticias/2022/08/44percent-dos-brasileiros-dizem-receber-fake-news-diariamente-veja-pesquisa.ghtml. Acesso em: 12 jun. 2023.

4 BÓRIO, Pamela Monique Cardoso. Prosumer: o novo protagonista da comunicação.  João Pessoa, 2014. Dissertação (mestrado) - UFPB/CCTA. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/tede/4490/1/arquivototal.pdf. Acesso em 15 jun. 2023.

5 WORDL HEALTH ORGANIZATION. Infodemic. Disponível em: https://www.who.int/health-topics/infodemic#tab=tab_1. Acesso em: 12 jun. 2023.

6 ROSSI, Mariane. Mulher espancada após boatos em rede social morre em Guarujá, SP. 05 maio 2014. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2014/05/mulher-espancada-apos-boatos-em-rede-social-morre-em-guaruja-sp.html. Aceso em: 12 jun. 2023.

7 SCHIEBERT, Ani Karini Muniz; CAVALCANTE, Francisco; GUEDES, Jéssica. Fake news, news e contra-fake: perspectivas do estado da regulação. 25 abr. 2023. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-abr-25/direito-digital-fake-news-news-fake-perspectivas-estado-regulacao. Acesso em: 15 jun. 2023.

8 SANTOS, Jéssica Guedes;, LUCENA, Marina Giovanetti Lili. Repassando a limpo o conteúdo do chamado PL das Fake News. 10 jul. 2023,  Conjur. Disponível em:  https://www.conjur.com.br/2023-jul-10/santos-lucena-repassando-limpo-pl-fake-news. Acesso em: 11 jul. 2023.

9 RIBEIRO, Ana Eisa; COSCARELLI, Carla Viana. Letramento Digital. In: Glossário Ceale: Termos de Alfabetização, Leitura e Escrita para educadores. Disponível em: https://www.ceale.fae.ufmg.br/glossarioceale/verbetes/letramento-digital. Acesso em: 13 jun. 2023.

10 CALDAS, Ana Lúcia. Educação midiática é caminho contra desinformação, dizem especialistas. 28 mar. 2023. Agência Brasil. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2023-03/educacao-midiatica-e-caminho-contra-desinformacao-dizem-especialistas. Acesso em: 13 jun. 2023.

Marina Giovanetti Lili Lucena

Marina Giovanetti Lili Lucena

Pesquisadora no Legal Grounds Institute. Doutoranda em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre e graduada em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pesquisadora no grupo Empresa, Desenvolvimento e Responsabilidade (EDResp, UFJF).

Karla Susiane dos Santos Pereira

Karla Susiane dos Santos Pereira

Pesquisadora da PlacaMãe.Org_. Doutoranda em Informática. Mestra em Informática. Especialista em Gerenciamento de Projetos. Pesquisadora colaboradora do Grupo Tecnologias Emergentes e Segurança de Sistemas do Instituto de Computação da UFAM. Cofundadora e Diretora de Gestão Estratégica da startup de educação GEN+. Educadora maker. Confundadora do Fab Lab Manaus. É integrante da rede de Alumni da Embaixada e Consulados dos EUA no Brasil.

Francisco Cavalcante

Francisco Cavalcante

Gestor Executivo do Legal Grounds Institute. Graduado em Direito na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Pesquisador e coordenador do Observatório do Direito à Educação na Universidade de São Paulo (ObsEdu-USP), membro-pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direitos Humanos, Desenvolvimento e Cotidiano (DHDC-UERN) e pesquisador do IDP Privacy Lab do Centro de Direito, Internet e Sociedade do IDP (CEDIS).

João Paulo Borba Maranhão

João Paulo Borba Maranhão

Pesquisador da PlacaMãe.Org_ Pós-graduando no LLM em Direito Digital da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

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