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Como caracterizar corretamente a violência obstétrica durante o parto e evitar vulgarizar o termo em processos de suposto erro médico

Dentre as principais causas de violência obstétrica institucional podemos destacar as mais corriqueiras, como a exclusão do direito de escolha da mulher durante o parto, o uso intempestivo de medicamentos desnecessários durante o parto, o tratamento desumano ou a falta de acolhimento da gestante durante a internação, dentre outras.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Atualizado às 07:52

A violência obstétrica é definida como a imposição de sofrimento e dor evitáveis, sendo consequência de uma ação do médico ou da enfermeira assistente durante a gestação, o parto e o puerpério.

Nestes casos, é característico o atendimento desumanizado da gestante, contendo diversas ações intervencionistas não necessárias durante a condução do parto. Este termo também inclui qualquer tipo de violência física, psíquica ou sexual que possa advir da equipe médica assistente durante a gestação, o parto e o puerpério.

No âmbito jurídico dispomos de apenas algumas leis nacionais recentes que abordam tangencialmente o assunto com o objetivo de garantir os direitos da mulher, bem como minimizar a chance da gestante sofrer violência obstétrica. Dentre as leis, destaca-se principalmente a lei 11.108/05 que prevê, em seu art. 19-J, que a parturiente indique um acompanhante durante todo o trabalho de parto, parto e pós-parto. Nas esferas estadual e municipal, a maioria dos estados e alguns municípios dispõe de leis que abordam mais objetivamente o tema, como a lei 7.191/16 que prevê o direito ao parto humanizado na rede do SUS no estado do Rio de Janeiro e a lei 6.898/21 que estabelece a implantação de medidas de informação à gestante e parturiente sobre a política nacional de atenção obstétrica e neonatal na cidade do Rio de Janeiro, de forma a protegê-las contra a violência obstétrica.

A fim de contextualização, vale pontuar que violência obstétrica interpessoal advém de pessoas do ciclo intra-familiar ou extra-familiar, já a violência obstétrica institucional advém de profissionais de saúde.

Dentre as principais causas de violência obstétrica institucional podemos destacar as mais corriqueiras, como a exclusão do direito de escolha da mulher durante o parto, o uso intempestivo de medicamentos desnecessários durante o parto, o tratamento desumano ou a falta de acolhimento da gestante durante a internação, dentre outras.

Muitas dessas causas, além de serem violência obstétrica, também podem ser caracterizadas como erro médico, como é o caso da manobra de Kristeller para abreviação do período expulsivo do parto normal, o uso de ocitocina em paciente com evolução normal do parto, a amniotomia (romper a bolsa) desnecessária com intuito de abreviar o trabalho de parto, a realização de episiotomia (corte na vagina) em pacientes que não tenham indicação médica clara para o procedimento, entre outras.

Entretanto, é importante pontuar que o contexto por trás de muitos dos procedimentos realizados na obstetrícia é que definirá se a conduta foi adequada para o caso em questão, ou se pode ser caracterizada como violência obstétrica, ou até mesmo como erro médico.

Este ponto é muito importante e o médico perito judicial especialista é o profissional ideal para avaliar o contexto em que se deu a suposta violência obstétrica. A análise do especialista sobre o assunto evita que se vulgarize o termo, pois chamar toda e qualquer intervenção no parto de violência obstétrica é um equívoco e muitas das vezes aquela intervenção chamada pelo leigo de violência obstétrica pode ter sido corretamente aplicada, evitando um desfecho desfavorável para mãe ou para o feto durante o trabalho de parto.

Por fim, para fins de reflexão, queria deixar dois exemplos corriqueiros e emblemáticos sobre o tema. Primeiro sobre o uso de ocitocina (medicação para aumentar as contrações) durante o parto, se o contexto é o de uma paciente que está evoluindo normalmente o parto normal e foi iniciado o uso de ocitocina apenas para acelerar o processo, está caracterizada a violência obstétrica e, caso haja complicações no parto causadas pelo uso da ocitocina, haverá também o erro médico. Porém, se o contexto for o de uma paciente em trabalho de parto arrastado e sem contrações efetivas, a conduta está correta e baseada em evidências científicas para o caso em questão, não configurando violência obstétrica ou erro médico. Segundo sobre a realização de episiotomia, caso ela for realizada de maneira sistemática para aumentar o canal do parto e facilitar o desprendimento do feto, configura-se violência obstétrica pois nem toda gestante em trabalho de parto necessita de episiotomia, na verdade é a minoria das gestantes que tem uma indicação formal para a realização da episiotomia. Porém, em algumas gestantes que possuem o períneo rígido, a episiotomia pode ser corretamente indicada, principalmente quando houver um período expulsivo prolongado (dificuldade na extração fetal) associado ao sofrimento fetal agudo, deste modo não caracterizando violência obstétrica ou erro médico.

Kauê Torres

Kauê Torres

Médico formado pela FAMECA em 2016. Ginecologista e Obstetra formado pela FAMERP em 2021. Especializado em perícias médicas judiciais e assistência técnica judicial na área de suposto erro médico.

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