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Crise no reembolso médico: o colapso do sistema extrajudicial frente às arbitrariedades das seguradoras

Esse sistema não consegue atender às necessidades dos pacientes, falhando em prover uma resolução justa e tempestiva das disputas. A falta de poder coercitivo e a limitada capacidade de impor sanções às seguradoras contribuem para a ineficiência desse sistema, permitindo que as práticas abusivas continuem sem penalidades significativas.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Atualizado às 14:33

Nos últimos anos, o cenário de reembolso médico no Brasil tem enfrentado desafios crescentes, com implicações profundas tanto para pacientes quanto para profissionais da saúde. Um dos aspectos mais críticos dessa questão é a frequente negativa indevida de reembolso pelas seguradoras, uma prática que tem levado a uma série de consequências negativas. Pacientes, muitas vezes já vulneráveis pela sua própria condição de saúde, se veem em meio a uma batalha financeira e burocrática, lutando por um direito essencial: o reembolso de despesas médicas. Para os profissionais da saúde, essa realidade representa um obstáculo adicional, impactando não apenas a dinâmica financeira de suas práticas, mas também a relação de confiança estabelecida com seus pacientes.

Travou-se uma verdadeira guerra.

Todo o protocolo que até então estava estabelecido, visando o processo de solicitação, análise e pagamento do reembolso, atualmente não é o suficiente para a garantia do recebimento dos valores pagos pelas despesas médicas, que comprovadamente aconteceram. Sem contar a intempestividade ou ausência de clareza por parte das seguradoras na comunicação do parecer com a negativa do reembolso aos pacientes.

Nesse contexto, se torna evidente a progressiva falência do sistema extrajudicial destinado a combater as arbitrariedades das seguradoras em relação aos reembolsos.

Apesar de serem criadas instâncias e mecanismos visando facilitar e mediar estas questões fora do âmbito judicial, a eficácia destas medidas tem sido questionável. As negativas de reembolso, frequentemente baseadas em argumentos pouco consistentes ou transparentes, continuam a ocorrer, levando à inevitável conclusão de que o sistema atual é incapaz de proteger adequadamente os direitos dos pacientes e apoiar os profissionais da saúde.

No centro dos conflitos de reembolso médico entre seguradoras e beneficiários, aquelas recorrem frequentemente à alegações de fraudes para justificar a negativa de reembolsos que, embora possam ter fundamento em casos isolados, são frequentemente utilizadas de maneira generalizada, prejudicando beneficiários legítimos que dependem de reembolsos para acessar tratamentos e serviços médicos necessários. Esta análise busca entender até que ponto estas alegações refletem problemas reais e em que medida são utilizadas para justificar práticas abusivas que visam reduzir custos às custas dos direitos dos pacientes.

Exame das consequências das práticas das seguradoras para pacientes e profissionais da saúde

Consequências para os pacientes:

As negativas de reembolso pelas seguradoras geram múltiplas dificuldades para os pacientes, restringindo seu acesso a tratamentos de qualidade e impondo escolhas difíceis entre serviços reconhecidamente inferiores ou a luta sem precedentes para que se cumpra o seu contrato. Além disso, a recusa em reembolsar tratamentos gera estresse financeiro e emocional significativo, exacerbando a ansiedade e a incerteza em um momento de vulnerabilidade devido à doença. Tais práticas também resultam em atrasos prejudiciais no início ou continuidade dos tratamentos necessários.

Consequências para os profissionais da saúde:

Os profissionais da saúde enfrentam pressões significativas devido às dificuldades que seus pacientes encontram em receber os reembolsos, sendo muitas vezes compelidos a aderir às redes credenciadas das seguradoras, o que pode resultar em condições de trabalho menos favoráveis e maior controle sobre suas práticas médicas. Além disso, a incerteza em relação ao reembolso afeta a relação de confiança entre pacientes e profissionais, com os pacientes frequentemente projetando suas frustrações nos prestadores de serviços, prejudicando a dinâmica do atendimento médico. Não raras vezes, as seguradoras, sem o menor acato, imputam condutas difamatórias e, até mesmo caluniosas ao profissional não credenciado, impactando severamente na relação médico-paciente.

Razões econômicas e estratégicas das negativas de reembolso

As negativas de reembolso no setor de seguros de saúde podem ser vistas sob diferentes óticas, incluindo aspectos econômicos e estratégicos. Uma possível interpretação dessas práticas pode ser a busca por uma maior concentração de mercado. Hipoteticamente, ao limitar o reembolso para serviços fora da rede credenciada, as seguradoras poderiam, em tese, incentivar pacientes e profissionais da saúde a optarem por permanecer dentro de suas redes. Isso poderia reduzir a competição no mercado de saúde, potencialmente impactando os preços e as condições dos serviços oferecidos.

Sem sombra de dúvidas, o impacto na livre iniciativa e na própria concorrência, teria consequências nefastas tanto para os profissionais liberais quanto para a população, que deixa de ter um mercado competitivo.

Para os profissionais liberais, como médicos, enfermeiros, terapeutas, entre outros, a livre iniciativa e um ambiente de mercado competitivo são fundamentais. Estes profissionais dependem da capacidade de oferecer seus serviços de maneira autônoma se adaptando às necessidades e preferências dos pacientes. Um mercado com concorrência reduzida pode limitar a autonomia desses profissionais, restringindo suas opções de prática e potencialmente conduzindo a uma padronização que não necessariamente atende às melhores práticas ou às necessidades individuais dos pacientes.

Para a população, a concorrência no setor de saúde é igualmente crucial. Ela não apenas assegura a disponibilidade de uma variedade de opções de tratamento e prestadores de serviço, mas também contribui para manter a qualidade e acessibilidade dos cuidados à saúde. A concorrência estimula a inovação, a melhoria contínua dos serviços e ajuda a manter os custos sob controle. Sem um mercado competitivo, os pacientes podem se deparar com menos opções de tratamento, custos mais elevados e uma possível diminuição na qualidade dos cuidados de saúde.

Além disso, um mercado de saúde menos competitivo pode resultar em uma concentração de poder em um número reduzido de grandes prestadores de serviços ou seguradoras. Isso pode levar a uma dinâmica de mercado onde as escolhas dos pacientes são limitadas e os prestadores de serviços têm menos incentivo para inovar ou melhorar a qualidade de seus serviços.

Outro aspecto que pode ser considerado, em termos hipotéticos, é a influência nas escolhas de tratamento dos pacientes. Se o reembolso para determinados tratamentos ou profissionais é mais complexo, isso poderia levar a uma preferência indireta por opções mais econômicas, que podem ou não se alinhar com as melhores práticas médicas.

É importante ressaltar que, embora essas considerações sejam teóricas, a realidade do mercado de seguros de saúde é complexa e envolve diversas variáveis. As práticas de reembolso podem ser influenciadas por uma série de fatores, incluindo preocupações legítimas com a prevenção de fraudes e o controle de custos. O desafio para o setor é buscar um equilíbrio que atenda às necessidades econômicas das seguradoras, ao mesmo tempo que garanta a qualidade e acessibilidade do atendimento médico para os segurados, com o pleno cumprimento contratual que foi pactuado entre as seguradoras e seus segurados.

Avaliação da eficácia do sistema extrajudicial atual

O sistema extrajudicial, criado para oferecer uma resolução mais rápida e menos onerosa para disputas de reembolso médico, enfrenta questionamentos significativos quanto à sua eficácia.

Em muitos casos, observa-se que esse sistema não consegue atender às necessidades dos pacientes, falhando em prover uma resolução justa e tempestiva das disputas. A falta de poder coercitivo e a limitada capacidade de impor sanções às seguradoras, contribuem para a ineficiência desse sistema, permitindo que as práticas abusivas continuem sem penalidades significativas.

A demora na resolução de disputas e a frequente necessidade de intervenção judicial após processos extrajudiciais ineficazes são indicativos claros da falência do sistema. Pacientes e profissionais da saúde frequentemente se veem em um labirinto burocrático ao tentar resolver disputas de reembolso extrajudicialmente, enfrentando processos lentos e falta de transparência. A ausência de um órgão regulador forte e imparcial no sistema extrajudicial, muitas vezes, resulta em decisões que favorecem as seguradoras, deixando os pacientes e profissionais da saúde em desvantagem.

A complexidade e os custos associados à navegação nesse sistema, juntamente com a falta de informação adequada, representam barreiras significativas, especialmente para pacientes que já estão enfrentando desafios relacionados à saúde e finanças.

O sistema extrajudicial atual, embora tenha a intenção de ser uma alternativa mais acessível, célere e eficiente à judicialização, demonstra falhas expressivas em sua execução. Estas falhas não apenas perpetuam injustiças, mas também agravam a vulnerabilidade de pacientes e profissionais da saúde, que frequentemente não encontram alternativas, além de recorrer ao já sobrecarregado sistema judicial.

Portanto, há uma necessidade premente de revisar e fortalecer este sistema, garantindo que ele sirva efetivamente aos interesses da justiça e da equidade no setor de saúde.

Judicialização como única saída? 

Nos últimos anos, tem-se observado um aumento significativo na judicialização dos conflitos entre pacientes, profissionais da saúde e seguradoras. Esse fenômeno é frequentemente visto como um reflexo direto das falhas do sistema extrajudicial. Enquanto muitos beneficiários recorrem à justiça como último recurso para garantir seus direitos, a judicialização em massa revela uma falha sistêmica mais profunda no tratamento de disputas sobre o reembolso médico.

Curiosamente, a tendência de judicialização pode, de certa forma, beneficiar as seguradoras. O processo judicial prolongado permite que elas retenham fundos por mais tempo, o que, considerando suas vultosas aplicações bancárias, resulta em ganhos financeiros adicionais.

Esse atraso é estratégico na resolução de disputas, visto que cria um desincentivo para a mudança, já que as seguradoras ganham tempo e recursos financeiros enquanto os casos se arrastam nos tribunais.

Para os beneficiários, a judicialização muitas vezes se traduz em um processo longo, desgastante e com custo adicional para além dos valores pagos pela mensalidade do seguro e despesas médicas. O tempo prolongado para a resolução de disputas pode agravar dificuldades financeiras e de saúde, especialmente em casos em que o reembolso é essencial para o tratamento contínuo. A necessidade de assistência jurídica e os custos associados podem ser proibitivos para muitos, criando uma barreira de acesso à justiça.

Além disso, o sistema judiciário, que já está sobrecarregado, pode ser ainda mais pressionado, levando a uma lentidão ainda maior na resolução de casos. Enquanto a judicialização pode parecer a única saída para muitos beneficiários, é fundamental reconhecer que essa tendência tem implicações complexas e muitas vezes prejudiciais.

Embora possa garantir direitos em casos individuais, a judicialização em massa indica a necessidade urgente de reformas no sistema extrajudicial e em práticas mais justas por parte das seguradoras. Isso requer uma abordagem multifacetada que considere os interesses e direitos de todas as partes envolvidas, visando um sistema de saúde mais justo e eficiente.

Conclusão:

Diante desse panorama, surge uma questão crucial: "Será a judicialização a única solução ou ainda há espaço para a revisão e fortalecimento do sistema extrajudicial?" A resposta a essa pergunta não é simples e exige uma reflexão profunda sobre como podemos equilibrar os direitos e necessidades dos beneficiários com as operações das seguradoras.

Encerramos este artigo com um convite à reflexão e ação. É imperativo que profissionais da saúde, operadores do direito, legisladores e reguladores do setor se engajem ativamente na busca por soluções. Precisamos de uma abordagem colaborativa para reformar o sistema extrajudicial, garantindo que ele sirva efetivamente aos interesses da justiça e da equidade. Isso pode incluir a implementação de políticas mais rigorosas para seguradoras, o fortalecimento de órgãos reguladores, a promoção de maior transparência e responsabilidade em todo o processo de reembolso, inclusive com uma maior e melhor normatização do tema.

A saúde é um direito fundamental e garantir que o sistema de reembolso médico funcione, de maneira justa e eficiente, é crucial para a manutenção desse direito. É passada a hora de transformar as adversidades em oportunidades para um sistema de saúde mais justo e acessível para todos.

Renata Pinheiro Amador Villela

VIP Renata Pinheiro Amador Villela

Advogada formada há 18 anos pela Faculdade de Direito Milton Campos. Especialista em Direito da Saúde. Pós Graduada em Ciências Penais pela PUC Minas.

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