MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Defesa muda não é ampla. É inconstitucional

Defesa muda não é ampla. É inconstitucional

Castro Neves explora a origem do advogado, destacando o papel de representação e defesa por terceiros em debates antigos. Demóstenes é apontado como um precursor por sua habilidade legal e oratória, sendo considerado por muitos historiadores o primeiro advogado.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Atualizado em 1 de dezembro de 2023 15:07

Castro Neves nos leva a imaginar um passado longínquo, no qual duas pessoas discutiam - e não se digladiavam - acerca de certo tema, cada uma buscando a prevalência de seu ponto. Um dos contendedores, contudo, percebeu, por algum motivo, que outra pessoa, e não ele próprio, teria mais facilidade de apresentar seus argumentos. Isso poderia justificar-se porque esse terceiro sabia falar melhor, porque era mais respeitado na comunidade ou por quem julgaria o caso, porque não se encontrava envolvido emocionalmente com o problema... Pouco importa. Um terceiro passava a defender os interesses de alguém numa discussão. Nascia, assim, o advogado, alguém que fala pelo outro, que o representa num litígio, que age em sua defesa.1

Para muitos historiadores, Demóstenes (384-322 a. C.) é considerado o primeiro advogado, pois fora precursor no estudo das leis e reconhecidamente um grande orador2.

Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) teve na oratória e tenacidade, o vigor para vencer Hortênsio (135-55 a.C) no famoso julgamento de Caio Verres (120-43 a.C), conquistando enorme reconhecimento como o maior orador romano de sua época.3 Naquele tempo, tamanho o poder da oratória, Cícero foi um dos poucos homens que ousou divergir publicamente de César e, por isso, mereceu a alcunha de "Voz da República".4

Saltando no tempo para o Brasil da primeira República, em 1914 Ruy Barbosa, no STF sustentava oralmente no Habeas Corpus nº 3536, a fim de ver publicado no jornal "O Imparcial" o discurso por ele proferido no Senado Federal. Para Ruy, o impedimento das publicações representava uma "verdadeira muralha entre o mandante e o seu mandatário, entre a nação e o seu representante".

Chama a atenção o início da sustentação oral de Ruy Barbosa, no qual faz menção ao prazo de quinze minutos concedido para sua sustentação, ao mesmo tempo em que critica a "lei interna" do Tribunal, que reduz os direitos da Defesa Oral:

Felizmente, essa mesquinha dieta do tempo, a que a lei interna desta Casa reduz os direitos da defesa oral, não era a que cabia nesta oportunidade. A cega estreiteza dessa disposição, generosa com as causas de leve monta e avara com as grandes. (...) não imita, decerto, a praxe dos grandes modelos judiciários, onde os fundadores deste regimen nos propusemos buscar as normas da justiça republicana.5

Sobral Pinto, cuja coragem e devoção à advocacia e ao direito de defesa ninguém pode questionar, no ano de 1977, ao sustentar oralmente na apelação 41.301, no antigo Supremo Tribunal Militar - STM denunciava da Tribuna, em alto e bom tom a ocorrência de tortura, durante o período de ditadura militar. Esses áudios vieram à público após a descoberta e empenho do advogado Fernando Fernandes.

Não faltam menções ao uso da palavra por grandes oradores na história jurídica do mundo e do Brasil, e é sob esta escola que continuam a se formar grandes advogados. É justo dizer que a oratória, a exposição das razões orais perante os juízos ou tribunais é necessária, e inseparável do exercício da advocacia, e que a advocacia não se resume à escrita.

Quem frequenta os Tribunais sabe que as razões orais integram a ampla defesa garantida constitucionalmente à todas as pessoas no artigo 5º LV da Constituição da República. Foram inúmeras as vezes em que a atuação dos advogados ao sustentarem oralmente resultou na alteração de votos e mudança no rumo de julgamentos. O destaque, a clareza na exposição e a atenção a detalhes que só seriam perceptíveis através da voz da advocacia passariam facilmente invisíveis na frieza das páginas, ou pior ainda, da tela de um computador.

Por outro lado, o recente desprezo que se tem dado a sustentação oral pelos tribunais empobrecem a discussão das causas e colabora para a realização de injustiças. Não é apenas inconformismo que se verbaliza através da tribuna, tampouco simples repetição de razões do recurso. É através das palavras do advogado, transmitidas por sua fala na tribuna durante a sessão de julgamento, que se alcança, sem intermediários, os ouvidos dos julgadores. Nesses tempos tecnológicos é esta, muitas vezes, a única possibilidade de contato humano, e a única forma que dispõe o advogado - e consequentemente o cidadão - de ser ouvido.

É claro que há lamentáveis episódios em que a técnica foi abandonada, e o propósito da realização da sustentação oral foi desvirtuado, mas não é através dessas desagradáveis exceções que se pode suprimir, como vem sendo suprimido, o direito do advogado falar da tribuna em nome do cidadão, e ser ouvido, para expor as razões de seus pedidos.

Não há dúvida que a "monocratização" dos Tribunais Superiores tem contribuído para essa resistência ao direito do advogado falar, afinal, até nas questões de liberdade, tratadas através de Habeas Corpus ou Recurso Ordinário há a possibilidade de decisão monocrática, que é atacável através de Agravo Regimental, recurso este que de acordo com a interpretação que os tribunais têm feito de seus próprios regimentos, não há a possibilidade de sustentação oral. Ou seja, a "monocratização" faz com que os Ministros julguem individualmente e sem necessidade de sessão os habeas corpus, e uma vez denegada a ordem, caso a defesa pretenda que a questão seja julgada pelo colegiado, deve valer-se de um Agravo Regimental, que não admite sustentação oral. Na prática, suprime-se a possibilidade de sustentação oral em Habeas Corpus, calando-se a defesa e impedindo-a de ser exercida com amplitude.

O ex-Ministro Marco Aurélio não julgava Habeas Corpus monocraticamente, posicionamento individual que fazia muita diferença ao garantir que a advocacia seria ouvida.

A questão poderia se resolver facilmente garantindo-se a possibilidade de sustentação oral em Agravo Regimental manejado pela defesa quando a decisão monocrática foi denegatória da ordem, ou ainda, de forma mais radical, para admissão de julgamento monocrático de Habeas Corpus apenas nas hipóteses de jurisprudência sedimentada no sentido da concessão da ordem. O que não pode prevalecer é a mordaça regimental na advocacia.

A explicação dos tribunais é de que com o passar dos anos e o acúmulo de processos, o número exagerado de recursos a serem julgados e pautados na mesma data torna humanamente impossível que sejam realizadas sustentações orais em todos os recursos. Ora, mas nunca houve pedido de inscrição para realização de sustentação oral em todos os recursos nos tribunais. Esse argumento é por sí só, falacioso. Evidente que a transmissão das sessões dos tribunais seja por canais de televisão seja pela internet através de plataformas, aumentaram substancialmente o interesse na realização de sustentações orais, às vezes sob o pálio da vaidade, e não do melhor interesse processual.

Ocorre que não é às custas da ampla defesa que a justiça se torna eficiente. Nem sempre celeridade quer dizer eficiência, e o custo da injustiça é muito maior do que qualquer benefício advindo da celeridade encontrada em calar a advocacia.

Kramer e Sprenger, em 1484 em seu Malleus Maleficarum foram criteriosos em limitar as possibilidades do exercício do Direito de Defesa alertando aos advogados que:

(...) Primeiro, seu comportamento deverá ser reservado e desprovido de prolixidade e de oratória pretensiosa. Segundo, deverá ser fiel a verdade, evitando trazer à baila quaisquer argumentos ou raciocínios falaciosos, ou chamando falsas testemunhas, ou apresentando sofismas e evasivas legais se for advogado habilidoso, ou trazendo contra-acusações; especialmente nos casos dessa espécie, que hão de ser conduzidos da forma mais simples e mais sumária possível (...) Pois lhe é vedado, seja de que forma for, conduzir a defesa e impedir a condução simples e sumária do caso, pois assim estará procedendo se introduzir quaisquer complicações ou apelos dessa natureza; todas são atitudes terminantemente proibidas.6

Nada mais apropriado para ilustrar que, passados quase quinhentos e cinquenta anos, continua viva a intenção de calar a "oratória pretensiosa" dos advogados, sob o argumento da celeridade.

A busca por um mecanismo racional para garantia do direito à realização de sustentação oral nos tribunais superiores, assim como nos tribunais de justiça em recursos e ações que digam respeito à Liberdade da pessoa (alguns Tribunais ainda não admitem sustentação oral em Agravo em Execução) ou a questões de mérito do processo não impedem um funcionamento eficiente do tribunal.

A título de comparação, hodiernamente a leitura de votos ocupam dias de um julgamento do plenário da Suprema Corte, questão que poderia muito bem ser resolvida com a leitura parcial do voto do relator e de eventuais votos divergentes, com aqueles que acompanham um ou outro voto simplesmente manifestando-se neste sentido, ou fazendo as ressalvas pertinentes, sem necessidade de tamanha aliteração gratuita.

As alterações trazidas pela lei 14.365/22 não deixam dúvidas de que é possível a realização de sustentação oral em vários dos recursos em que os Tribunais tem negado a sua realização. Recentemente ao negar o direito a uma sustentação oral em Agravo Regimental em Habeas Corpus no STF, o Ministro Alexandre de Moraes afirmou que o Regimento Interno do Tribunal seria norma específica, e que prevaleceria sob o estatuto da OAB, o que soou muito mal a todos que laboram nas ciências jurídicas, porque ela é uma afirmação incorreta, seja por onde se pretenda buscar a solução do suposto conflito aparente de normas. Ou seja, nega-se o direito à sustentação, pouco importando o fundamento, e se ele é verdadeiro ou não! Não é o que se espera da Suprema Corte, notadamente na missão de salvaguardar a Constituição, que contempla em cláusula pétrea o direito à Ampla Defesa.

A questão é muito simples: Defesa muda é defesa subserviente, suprimida, tolhida, limitada, jamais ampla, e defesa que não é ampla é inconstitucional.

Aquele julgador que não quer ouvir as razões orais de um recurso opta por um modelo de juízo potestativo ao invés de cognitivo, o que nas palavras de Ferrajoli "tem uma intrínseca natureza autoritária".7

Quando os juízes não precisarem mais ouvir os advogados para decidirem, a sociedade tampouco precisará dos juízes. Os robôs, tão elogiados e valorizados pelas administrações das cortes superiores são capazes de produzir julgamentos frios, matemáticos e repetitivos, em linha de produção,  sem a inconveniência de terem que ouvir as partes e analisar os detalhes específicos de casa caso, e custam muito menos à sociedade. Infelizmente, não serão capazes de fazer justiça, já que essa qualidade, como assentado no celebrado Digesto, de Justiniano, é inerente a alguns seres humanos, os juristas, que poderiam ser chamados de "sacerdotes do direito".8

-------------------------------------

1 CASTRO NEVES, José Roberto. Como os Advogados Salvaram o Mundo. Nova Fronteira: 2018. P.31

2 LANGARO, Luiz Lima. Curso de Deontologia Jurídica. Ed. 2. São Paulo: Editora Saraiva, 1996

3 SALGADO, Carlos Joaquim. O humanismo de Cícero: a unidade da filosofia e da vida política e jurídica. Revista Brasileira de Estudos Políticos | Série "Estudos Sociais e Políticos" Edição Comemorativa dos 120 anos da Faculdade de Direito da UFMG (1892 - 2012) | n. 40 | pp. 157 - 176 | 2012

4 CASTRO NEVES, José Roberto. Como os Advogados Salvaram o Mundo. Nova Fronteira: 2018. P.39

5 Obras Completas de Rui Barbosa. Pág. 16. Biblioteca Digital do STF. Disponível em: https://www.stf.jus.br/bibliotecadigital/RuiBarbosa/113714/pdf/113714.pdf

6 KRAMER, Heinrich. SPRENGER, Jameas. Malleus Maleficarum. O Martelo das Feiticeiras. Tradução de Rose Marie Muraro. Rosa dos Tempos: 2020. P. 542-543

7 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. 4º Ed. RT: 2013. P.47

8 CASTRO NEVES, José Roberto. Como os Advogados Salvaram o Mundo. Nova Fronteira: 2018. P.42

Tiago Martinho

Tiago Martinho

Advogado, especialista em Ciências Penais, Presidente da 2° Subseção da OAB de Três Lagoas/MS, Secretário Geral da ABRACRIM/MS, associado IBCCRIM, Sócio do "Tiago Martinho Advocacia".

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca