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Precisamos falar sobre o cânhamo: os entraves legais para o desenvolvimento do mercado da Cannabis industrial no Brasil

Carla Saboia

O mercado da cannabis medicinal no Brasil cresce rapidamente, abrangendo não só a produção e consumo de medicamentos, mas também clínicas especializadas, plataformas de telemedicina, entre outros serviços. Projeções indicam um aumento de 92% em 2023, apontando para um potencial de ultrapassar R$ 1 bilhão em 2024.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Atualizado às 14:13

O mercado legal da cannabis vem florescendo no Brasil, especialmente por conta do crescimento do acesso à cannabis medicinal. Para além da produção, importação e consumo de medicamentos para tratamento de um sem-número de condições médicas, o ecossistema da cannabis medicinal compreende atividades tão variadas quanto clínicas especializadas, plataformas de telemedicina, assessoria para importação de medicamentos, marketplaces, veículos de comunicação, agências de emprego e cursos direcionados a profissionais de saúde e de marketing, para citar alguns exemplos. Fundos de investimento e aceleradoras de startups vêm focando nesse mercado, indicando um potencial de crescimento ainda maior nos próximos anos. A consultoria Kaya Mind, em seu "Anuário da Cannabis Medicinal 2023: Os Avanços Legislativos e o Impacto da Regulamentação no Mercado de Saúde e no Brasil"1, informa que, em 2023, o mercado da cannabis medicinal teve um aumento de 92% em relação ao ano anterior, projetando que possa ultrapassar a marca de R$ 1 bilhão em 2024.

Enquanto testemunhamos esse caminho auspicioso - espera-se que sem volta - da cannabis para uso medicinal, as demais potencialidades dessa matéria-prima permanecem virtualmente ignoradas pela legislação do país. Estima-se que o cânhamo2 sirva de matéria-prima para mais de 5 mil produtos, em 21 diferentes setores da economia,3 constituindo, assim, um mercado substancialmente maior do que o medicinal. A partir dele, são produzidos itens tão variados quanto alimentos veganos com alto índice proteico para consumo humano e animal, bioplástico, biocombustível, papel, tecido, cosméticos, material de construção e milhares de outros produtos. Todas as partes da planta são aproveitáveis: sementes (consideradas um superalimento), flores, folhas e caule. Seu cultivo consome pouca água, purifica o solo e dispensa ou reduz sensivelmente a necessidade de uso de agrotóxicos. O tecido de cânhamo é mais durável do que o de algodão, enquanto o hempcrete (o "concreto" de cânhamo) é mais resistente, sustentável e confere melhor isolamento térmico do que o concreto convencional, além de ser resistente ao fogo e a pragas. O cânhamo é um material biodegradável que, no seu cultivo, sequestra carbono e nutre e renova o solo.4 Por todas essas propriedades, é uma matéria-prima com potencial para desempenhar importante função na implementação de uma economia circular, alinhar-se aos princípios de ESG5 e apta a contribuir para o atendimento a oito dos 17 dos objetivos de desenvolvimento do sustentável da ONU.6

Quanto ao potencial econômico dessa indústria, em relatório intitulado "Cânhamo no Brasil: Os possíveis impactos econômicos e sociais de um insumo sustentável em um país com grande capacidade agrícola,"7a Kaya Mind estima que, em apenas quatro anos após sua regulamentação, o mercado do cânhamo industrial possa vir a movimentar R$ 4,9 bilhões e levar à arrecadação de mais de R$ 330 milhões em impostos. Estudo da Universidade Federal de Viçosa - UFV, em parceria com a ADWA Cannabis, aponta que 80% das terras cultiváveis do Brasil (ou 6% de todo o território nacional) são aptas ao cultivo de cannabis para fins industriais e medicinais.8

Ocorre que, alheia a tudo isso, a legislação brasileira contém importantes entraves ao desenvolvimento da indústria do cânhamo industrial no país. Em um breve resumo dessa intrincada legislação, temos que a lei de Drogas (lei 11.343/06) veda "o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas", exceto "para fins medicinais ou científicos" e "uso estritamente ritualístico-religioso", tudo conforme venha a ser regulamentado pela União Federal.9 Drogas, por sua vez, são definidas pela mesma lei como "as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência",10 tomando emprestada a lei, ainda, o conceito de "substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial" listadas na Portaria SVS/MS 344/98, da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde.11 Essa Portaria atualmente inclui o canabidiol - CBD, antes proscrito, dentre as substâncias sujeitas controle especial (Lista C1)12 e o THC, dentre as substâncias psicotrópicas (Lista F2).13

A lei coíbe, assim, atividades com vegetais e substâncias a partir dos quais se possa produzir drogas, entorpecentes, psicotrópicos, salvo pelas exceções previstas em lei - notadamente, usos medicinal, ritualístico-religioso e para pesquisa científica.

Não se pode, no entanto, classificar toda e qualquer variedade da Cannabis sativa L. como vegetal capaz de produzir drogas, uma vez que há variedades nas quais a baixa concentração de THC - seu elemento psicoativo - torna a planta imprestável para esse fim. É justamente o que se convencionou chamar de cânhamo industrial: como já visto brevemente,14 as diversas legislações internacionais costumam diferenciar o cânhamo das demais variedades da cannabis pelo seu teor máximo de THC (independentemente das demais diferenças existentes entre essas diversas variedades), sendo o valor mais comum 0,3% de seu peso seco.

Dito de outra forma, se o cânhamo, de baixo teor de THC, não é um vegetal do qual "possam ser extraídas ou produzidas drogas", ele não está incluído na vedação constante do art. 2º da lei de Drogas. O equívoco da regulamentação brasileira está, portanto, em não diferenciar entre as diversas variedades da cannabis e apenas permitir atividades (de forma restrita e altamente regulada) envolvendo seus usos medicinal ou para pesquisa científica, abstendo-se de regulamentar o uso de variedades incapazes de produzir entorpecentes.

No âmbito de competência da Anvisa, além de drogas, medicamentos de uso humano, insumos farmacêuticos e correlatos, está a regulamentação e fiscalização de produtos tais como de higiene, para a saúde, cosméticos e alimentos.15 A RDC 327/19, da Diretoria Colegiada da Anvisa, que trata da concessão de autorização sanitária para o exercício de certas atividades relacionadas a produtos de cannabis, expressamente exclui os cosméticos, produtos para a saúde e alimentos de tal regulamentação, que compreende tão somente produtos de cannabis destinados à finalidade medicinal.16

No que nos interessa, assim, produtos tais como cosméticos e alimentos à base de cânhamo não são permitidos no Brasil, uma vez que sua matéria-prima é considerada como pertencente ao gênero cannabis e não contemplada por qualquer norma emitida pela Anvisa, que detém a autoridade para regulamentá-los. Tais produtos não podem ser importados, fabricados ou comercializados no país, apesar de não serem entorpecentes nem terem qualquer potencial para tanto, dado o baixo nível de THC de sua matéria-prima principal.

Quanto a todos os demais produtos de cânhamo cuja regulamentação não se encontra sob a competência da Anvisa, existe um vácuo legal que traz insegurança jurídica e, para dizer o mínimo, desencoraja sua exploração. É esse o caso de tecidos, papel, fibras, combustível, bioplástico, material de construção e tantos outros produtos. Se, por um lado, não há impedimento legal a sua comercialização e outras atividades no país, por outro lado, a falta de clareza do arcabouço jurídico, pelo fato de utilizarem matéria-prima associada (ainda que erroneamente) à produção de drogas, impede o desenvolvimento dessa indústria, em especial o cultivo e a criação de toda uma cadeia produtiva a partir daí - desde maquinário especializado até logística e cadeias de produção e distribuição.17

O PL 399/15, de iniciativa do então Deputado Federal Fábio Mitidieri (PSD/SE) (na versão do Substitutivo de 2021 adotado pela Comissão Especial), e o recém-apresentado PL 5.511/23, de iniciativa da Senadora Mara Gabrilli (PSD/SP), procuram corrigir essa distorção.18 Não sendo nosso objetivo nos alongarmos na análise dessas duas proposições ou detalharmos as distinções existentes entre elas, podemos resumi-las como tendo, ambas, o objetivo de atualizar o ordenamento jurídico referente à cannabis, compreendendo tanto disposições sobre a cannabis medicinal para uso humano, quanto sobre seu uso medicinal veterinário e sobre o cânhamo industrial, em suas diversas aplicações (cosméticos, produtos de higiene, alimentos, suplementos alimentares, celulose, fibras e outros) - que passariam, assim, a ser expressamente legalizados e regulamentados no país.

Ambos os PLs passam a autorizar o cultivo da cannabis e, na esteira da legislação internacional predominante, estipulam um limite máximo de 0,3% de THC para caracterizar o cânhamo industrial.19 Submetem-no às normas legais aplicáveis às atividades agrícola e agroindustrial20 e outorgam competência ao órgão agrícola federal para concessão de autorização para cultivo, disciplina e fiscalização do cânhamo industrial e seus produtos.21 Produtos ou gêneros alimentícios e suplementos alimentares têm limites específicos de THC e de canabinoides totais fixados por ambos os PLs.22 Finalmente, ambos excluem do alcance da Lei de Drogas as atividades neles previstas, declarando-as expressamente lícitas, "não caracterizando os tipos penais e nem ensejando a aplicação das penas previstas" na referida lei - conferindo, assim, segurança jurídica àqueles que se disponham a exercer essas atividades.23

Na Justificação do PL 5.511/23, a Senadora Mara Gabrilli, além de reiterar as já tão reconhecidas propriedades do uso medicinal da cannabis, chama a atenção para o estágio de desenvolvimento do agronegócio brasileiro, para a expertise da Embrapa e para o potencial da exploração econômica do cânhamo, destacando que "a regulação da cadeia produtiva da Cannabis para fins medicinais, industriais e científicos, em nosso País, trará inúmeros benefícios aos brasileiros, tanto aos pacientes, no que se refere ao acesso, ao custo e à qualidade dos produtos terapêuticos dela derivados, quanto ao impacto favorável, oportunidades e avanços para o setor industrial".

O Brasil perde em receita, desenvolvimento industrial e econômico e geração de empregos ao não regulamentar o setor do cânhamo industrial. É necessário avançar nessa pauta e dar condições à nossa indústria de recuperar o tempo perdido e se aproximar dos demais players internacionais, tornando o Brasil um país produtor e exportador, beneficiado que é, inclusive, pela extensão de seu território e pelo clima e solo propícios ao cultivo dessa versátil matéria-prima.

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1 Disponível para download em https://kayamind.com/anuario-da-cannabis-medicinal-no-brasil-2023/.

2 Vamos nos referir aqui à cannabis para uso industrial, com baixo teor de THC (tetrahidrocanabidiol, o elemento psicoativo da planta), como cânhamo, distinguindo-a da planta para os usos medicinal e adulto. Todas pertencem à espécie Cannabis sativa, embora de variedades ou cultivares distintos. Diferentes legislações internacionais determinam o percentual máximo de THC presente na planta para que seja classificada como cânhamo (mais comumente, até 0,3%), incapaz de originar substância entorpecente.

3 Revista Exame, "A nova onda do mercado de Cannabis no Brasil: a legalização está próxima?", disponível em https://exame.com/invest/onde-investir/a-nova-onda-do-mercado-de-cannabis-no-brasil-a-legalizacao-esta-proxima_red-01/ (acesso em 11 de novembro de 2023).

4 A versatilidade da cannabis sativa e suas propriedades são ilustradas no Boletim Técnico SIF Número 3 - Volume 01, de maio de 2021, intitulado "Potencial de uso de cânhamo industrial (Cannabis sativa L.) para a produção de celulose fibra longa", de Henrique Silva Araújo Freire et al., publicado pela Sociedade de Investigações Florestais - SIF da Universidade Federal de Viçosa e disponível em https://sif.org.br/wp-content/uploads/2021/07/Boletim-03.pdf (acesso em 11 de novembro de 2023).

5 Sigla em inglês do termo environmental, social and governance, referindo-se às boas práticas ambientais, sociais e de governança das empresas e governos.

6 Sechat, "Planta do futuro: conheça as tecnologias do cânhamo", disponível em https://civi-co.com/planta-do-futuro-conheca-as-tecnologias-do-canhamo/#:~:text=No%20Objetivo%20de%20Desenvolvimento%20Sustent%C3%A1vel,em%20clima%20de%20altas%20temperaturas (acesso em 11 de novembro de 2023).

7 Disponível para download em https://kayamind.com/relatorio-canhamo-no-brasil/.

8 Globo Rural, "Pesquisas com maconha no Brasil se inspiram na soja e miram mercado bilionário", disponível em https://globorural.globo.com/Noticias/Pesquisa-e-Tecnologia/noticia/2020/11/pesquisas-com-maconha-no-brasil-se-inspiram-na-soja-e-miram-mercado-bilionario.html (acesso em 11 de novembro de 2023).

9 Lei nº 11.343/2006, art. 2º, caput e parágrafo único.

10 Lei nº 11.343/2006, art. 1º, parágrafo único.

11 Lei nº 11.343/2006, art. 66.

12 Vide Resolução - RDC nº 784/2023, da Diretoria Colegiada da Anvisa.

13 Tanto entorpecentes quanto psicotrópicos são definidos pela Portaria SVS/MS nº 344/1998 como "substância que pode determinar dependência física ou psíquica". 

14 Vide Nota de Rodapé 2.

15 Vide Lei nº 6.630/1976, que "Dispõe sobre a Vigilância Sanitária a que ficam sujeitos os Medicamentos, as Drogas, os Insumos Farmacêuticos e Correlatos, Cosméticos, Saneantes e Outros Produtos, e dá outras Providências", e Lei nº 9.782/1999, que "Define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e dá outras providências".

16 RDC nº 327/2019, arts. 1º, 3º, IX e 10, §5º.

17 Indústria essa, diga-se, que se adapta de forma criativa (mas fica longe de atingir todo o seu potencial), desenvolvendo produtos tais como alimentos terpenados, com aroma e sabor que lembram aqueles encontrados na cannabis (chocolates, café e bebidas alcoólicas são alguns exemplos), e cosméticos com propriedades semelhantes às do CBD, capazes de ativar o sistema endocanabinoide, mas utilizando-se de outros vegetais como matéria-prima.

18 Dentre os Projetos de Lei sobre o tema em tramitação nas duas casas legislativas, escolhemos esses pelo fato de o primeiro estar em estágio mais avançado e o segundo, por ser a mais recente iniciativa legislativa apresentada compreendendo as matérias aqui cobertas.

19 Art. 2º, III do e art. 1º, §1º, IV do PL 5.511/2023.

20 Art. 12 do PL 5.511/2023.

21 Art. 7º, caput e §1º do PL 399/2015 e arts. 4º e 12 do PL 5.511/2023.

22 Art. 23, §1º do PL 399/2015 e art. 12, §2º do PL 5.511/2023.

23 Art. 28 do PL 399/2015 e art. 15 do PL 5.511/2023.

Carla Saboia

Carla Saboia

Advogada especializada em direito societário, investimentos e em negócios de cannabis. LL.M. pela Columbia Law School. Sócia de BRZ Advogados.

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