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Coração de fiador

Thiago Magalhães

O Superior Tribunal de Justiça vem decidindo reiteradamente que o fiador, quando não anuiu à prorrogação do contrato de locação que afiançava, pode ser exonerado da fiança, não respondendo pelos débitos do locatário havidos a partir da prorrogação contratual com a qual não concordou explicitamente.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Atualizado em 28 de maio de 2007 16:08


Coração de fiador

Thiago Magalhães*

O Superior Tribunal de Justiça vem decidindo reiteradamente que o fiador, quando não anuiu à prorrogação do contrato de locação que afiançava, pode ser exonerado da fiança, não respondendo pelos débitos do locatário havidos a partir da prorrogação contratual com a qual não concordou explicitamente.

Quando Chico Buarque valeu-se, em sua composição "Samba do grande amor", da expressão "coração de fiador", em alusão à incondicionalidade com que o eu lírico cantante entrega a alma e seu último quinhão à amada, encontrou nela excelente metáfora para referir-se ao amante inconseqüente que, revelando-se até o fim um amador, atira-se do alto de um trampolim na esperança de poder mergulhar a fundo para banhar-se nas águas do amor da musa cantada, sem se preocupar em momento algum se são suficientemente profundas a ponto de não comprometer-lhe o salto.

"E eu botava a mão no fogo então com meu coração de fiador", canta o eu lírico chico-buarquiano que protagoniza o samba em referência. De fato, botar a mão no fogo e assinar um contrato de fiança são iniciativas que guardam estreita conexão: ambas representam amostras apoteóticas de devoção e confiança a um amigo, parente ou, nas palavras do próprio Chico Buarque, a um grande amor.

Isto não obstante, abandonando-se por alguns minutos o plano etéreo da poesia, em que a aprazível figura do "coração de fiador" é considerada na canção, para adentrar-se o espectro da áspera realidade - onde todas as indigestas implicações jurídicas da garantia fidejussória ao fiador são necessariamente levadas em conta - é de se perguntar se, tomando conhecimento dessas implicações e tendo de optar entre botar a mão no fogo e assinar um contrato de fiança, o amante apaixonado prefira apenas arriscar-se na primeira empreitada, desistindo de enfrentar os perigos inerentes à segunda.

Na prática, o signatário de uma garantia fidejussória costuma não saber ao certo a extensão das conseqüências da fiança quando assina o contrato. Acaba por descobri-las, no mais das vezes, anos após ter-se comprometido com a obrigação, quando lhe poderá ser revelado, por exemplo, o significado preciso de ter aceitado assumir solidariamente a dívida do afiançado e que abriu mão do direito de exonerar-se da condição de fiador, o que vale dizer que aceitou afiançar o contrato enquanto o mesmo perdurar, ainda que isto signifique afiançá-lo indefinidamente.

Em se tratando especificamente dos contratos de locação de imóveis, as cláusulas que dispõem sobre a fiança estipulam ao fiador tanto que responda solidariamente pelas eventuais dívidas do afiançado - pela qual abre mão do benefício de ordem de que trata o art. 827 do Código Civil (clique aqui), como que renuncie ao seu direito de requerer a exoneração da fiança, previsto no art. 835 também do Código Civil, enquanto perdurar o contrato de locação.

O que se passa no dia-a-dia da rotina das locações de imóveis é que as partes contratantes, incluindo o fiador, em geral assinam o contrato de locação desaconselhadas das orientações de um profissional do ramo jurídico, o qual lhes poderia precisar as conseqüências futuras do quanto firmaram contratualmente.

Suponhamos, entretanto, uma situação em que as partes acima mencionadas, seja por conta de seu aguçado tirocínio para os negócios ou em razão de terem sido advertidas por um advogado, estivessem cientes de todas as conseqüências possíveis que pudessem advir de uma eventual inadimplência do locatário. Suponhamos ainda que, nessas condições, o fiador houvesse por bem não abrir mão do benefício de ordem, apresentando-se como eventual devedor subsidiário (e não solidário), e, ademais, não renunciasse ao seu direito de pedir exoneração da fiança. O contrato de locação seria levado a cabo ?

Como se sabe, a maioria dos contratos de locação de imóveis são firmados com o intermédio de imobiliárias, que se responsabilizam pela administração do imóvel posto em locação.

Por evidente, para aumentarem as chances de obtenção de êxito em caso de eventual execução do contrato de locação, as imobiliárias inserem, nesses contratos, uma série de cláusulas-padrão, tais como as que tratam da solidariedade do fiador para com as dívidas do afiançado e de sua obrigatoriedade de assegurar a garantia até a efetiva entrega das chaves do locatário ao locador. Desnecessário dizer que a primeira delas traduz-se na abdicação do benefício de ordem por parte do fiador, e a segunda na renuncia de seu direito de exonerar-se da fiança.

Voltando à questão levantada acima, na qual se pintou um cenário deveras atípico - imaginando-se que locador, locatário e fiador fossem plenamente cônscios das conseqüências jurídicas possivelmente decorrentes do contrato de locação que firmaram - a resposta, ao que nos parece, é que o fiador pensaria duas vezes antes de aceitar subscrever um contrato naquelas condições. Sabe-se que as imobiliárias, agindo no interesse do locador e no seu próprio, raramente aceitam negociar as cláusulas de solidariedade da fiança e substituí-la pela sua modalidade subsidiária, bem como admitir que seja reconhecido contratualmente ao fiador o que a lei prevê de forma clara e patente, isto é, o seu direito a exonerar-se da fiança.

Ora, mas se, isto não obstante, contratos de locação são firmados aos montes diariamente, a conclusão que se segue deste fato é inescapável: o sucesso desses contratos depende do desconhecimento jurídico dos contratantes (especialmente, no caso em discussão, do desconhecimento do fiador) acerca das prováveis conseqüências que podem advir do inadimplemento do locatário; depende da bondade supra-humana do fiador, que o firma, dando amostras de boa-fé inenarrável, mediante a abdicação de direitos importantes, o que acaba por prejudicar-lhe quando da necessidade de eventual defesa judicial na hipótese de haver uma ação de execução movida contra ele; ou, por fim, o sucesso desses contratos depende de ambas as situações aqui descritas .

Esse desconhecimento pode ser explicado sobretudo em razão da terminologia utilizada nos contratos de locação, onde se lança mão de vocabulário jurídico cuja compreensão envolve conhecimento técnico de que o fiador, via de regra, não dispõe quando da assinatura do contrato.

Ademais, é passível de comprovação empírica o fato de que as imobiliárias, que intermedeiam os contratos de locação, dificilmente aceitam negociar as cláusulas relativas à fiança, mitigando-a de modo a fazer com que a eventual inadimplência do locatário torne-se menos penosa ao fiador. Ou o fiador as aceita nos termos que interessam à imobiliária, tendo de assinar um contrato com cláusulas-padrão, ou o locatário em potencial deverá buscar por quem aceite o desafio.

Uma vez mais, o que se pode concluir é que a estabilidade mesma do mercado imobiliário, no que tange à locação de imóveis, depende do desconhecimento do fiador sobre os seus próprios direitos. A fiança ainda é a principal forma de garantia escolhida pelos que almejam alugar um imóvel (sobretudo nas cidades interioranas, em que os elos de confiança entre os habitantes, dada a maior proximidade com que relações sociais ali se estabelecem, são muito mais estreitos), nada obstante o mercado de locação de imóveis venha ultimamente percebendo um acréscimo no número das pessoas que optam por outras formas de garantia oferecidas aos contratos de locação, mais adequadas ao modus vivendis do homem da cidade grande.

Neste contexto, é possível entender o sentido das incontáveis decisões que vêm sendo proferidas em Tribunais por todo o país, as quais têm afastado a eficácia das cláusulas que, nos contratos de locação, desfavorecem substancialmente o fiador, sobretudo a que estipula a obrigatoriedade da vigência da fiança até a entrega das chaves do locatário ao locador. No Superior Tribunal de Justiça, é majoritária a jurisprudência que dita que as cláusulas contratuais que dispõem neste sentido afrontam não apenas os princípios que devem nortear a garantia fidejussória, mas também a essência do Novo Código Civil.

Os argumentos dos quais lançam mão os juristas que defendem a ineficácia dessas cláusulas fundam-se na tese de que as mesmas ferem diversos artigos do Diploma Civil, sendo, portanto, ilegais. Os contratos de locação são firmados, em sua maioria, com prazo determinado de trinta meses. Contudo, esses contratos acabam por se prorrogar automaticamente, o que se dá com a permanência do locatário por mais de trinta dias no imóvel, sem que locador tenha-a obstado - fato que encontra previsão legal no art. 46, § 1º da Lei de Locações de Imóveis Urbanos (clique aqui).

E aqui surge o impasse: as famigeradas cláusulas segundo as quais o fiador deve garantir a obrigação "até a entrega das chaves" por parte do locatário ao locador, aliadas ao teor do art. 46, § 1º da Lei de Locações de Imóveis Urbanos, resultam, na prática, na prorrogação da garantia fidejussória, que pode se estender no tempo indefinidamente, sem que o fiador tenha anuído à prorrogação. Dá-se que, quando da assinatura do contrato, é natural que este detalhe possa escapar à atenção até de um contratante atento, visto que sabê-lo dependeria de que tivesse ou razoável conhecimento jurídico, ou fosse orientado por alguém que detivesse esse conhecimento, razão pela qual na maioria das vezes assina o contrato acreditando que o limite de tempo por qual se prolongará a fiança não ultrapassará o prazo originariamente contratado, isto é, os trinta meses.

Muitos juízes têm, ainda, abraçado a idéia de que essas cláusulas seriam potestativas, argüindo que as mesmas sujeitam o fiador ao arbítrio do locador e do locatário, maculando assim o art. 122 do Código Civil. Outros acatam a todos estes argumentos, assimilando-os à luz dos princípios que, sem sombra de dúvidas, norteiam o Novo Código Civil, isto é, o princípio da boa-fé e o da função social dos contratos. Com efeito, a fiança é essencial à estabilidade do mercado de locação de imóveis, revestindo-se de notória importância social - sem mencionar o fato de que se trata de um contrato benéfico. Por tais motivos e nessas condições, os Tribunais têm concedido a exoneração judicial dos fiadores, eximindo-os da responsabilidade de responderem pelas dívidas dos locatários surgidas após a prorrogação do contrato de locação, com a qual não anuíram explicitamente.

Mas a querela, longe de ser simples, encontra do outro lado da arena argumentos que também têm sido acatados pelos nossos Tribunais.

O art. 39 da Lei de Locações de Imóveis Urbanos diz que todas as espécies de garantias do contrato de locação perduram até a efetiva devolução do imóvel, salvo disposição contratual em contrário. Sendo a Lei de Locações de Imóveis Urbanos mais específica que o Código Civil, recomenda a maioria dos hermeneutas que, nos casos de confronto entre ambas, deve-se dar prevalência à lei especial, em detrimento da mais geral. Eis aqui o cerne da argumentação deste segmento das decisões proferidas a respeito do caso em exposição, estas se alicerçando na sobreposição da liberdade contratual a qualquer outro princípio que se possa trazer à baila no intuito de oferecer soluções alternativas para o dissídio, ainda que estes princípios sejam os que deram nova alma ao Código Civil vigente em relação ao texto legal que o antecedeu, isto é, o princípio da boa-fé e o da função social dos contratos. Com base nisto, tais decisões têm rejeitado a possibilidade de que o fiador se exonere da garantia fidejussória prestada, tendo em vista que, contratualmente, aceitou mantê-la até a devolução do imóvel.

Do ponto de vista jurídico, ambas as vertentes são baseadas em teses sólidas e bem fundamentadas, e já foram abordadas inúmeras vezes em artigos especializados. Entretanto, a abordagem que os especialistas do Direito dão à questão é quase sempre por demais dogmática, dispensando pouca ou nenhuma atenção ao seu aspecto sociológico, à luz do qual o embate ganha novas cores e cresce sobremaneira em dimensão. E é apenas neste campo mais amplo que se faz possível refleti-lo sob a ótica do alcance da ingerência do Estado, através do Poder Judiciário, nos contratos realizados entre entes privados.

Analisado neste outro plano, a querela em que se contrapõem as duas espécies de decisões judiciais em debate, isto é, as que decretam a exoneração do fiador e as que lhe negam esta pretensão, transforma-se no confronto dialético entre duas vertentes nitidamente opostas tanto na Economia como na Sociologia, estando de um lado os que defendem uma maior interferência do Estado nas relações contratuais celebradas entre os agentes privados, e, do outro, os que se opõem a esta interferência, defendendo que essas relações dêem-se da forma mais livre quanto possível.

Não seria exagero dizer que se está, aqui, a tratar da oposição entre os adeptos do Estado Liberal (ou do livre capitalismo), e dos defensores da Social-Democracia, também conhecida sob a alcunha de "walfare-state" - o Estado de Bem-Estar Social. Embora essa oposição mostre-se embebida de um certo maniqueísmo e de alto teor de ideologia, não é recomendável desconsiderá-la, em vista do fato de que inúmeras decisões tomadas nas três esferas do poder estatal - seja um ato da administração, uma lei elaborada pelo parlamento ou uma decisão judicial - trazem, por detrás de seu verniz tecnicista, motivos ideológicos.

Muitos sentidos são atribuídos ao termo liberalismo. Diversos deles, quando não são incorretos, são propositadamente distorcidos. Para o que nos interessa à discussão, pode-se afirmar que um liberal, dentre outras coisas, defende o direito de os indivíduos celebrarem contratos livremente, à observância de uma legislação que valorize acima de tudo que as relações contratuais estabelecidas entre os agentes privados fluam sob a responsabilidade individual de cada cidadão, que deve arcar com as conseqüências da manifestação das suas vontades. Essa legislação seria, pois, majoritariamente de cunho formal ou "negativa".

Já os advogados de um Estado mais atuante e interventor na economia, a exemplo dos social-democratas, pugnam pela necessidade de uma ingerência mais incisiva do ente estatal nos contratos firmados entre os agentes privados, sobretudo quando constatado algum tipo de "desvantagem" por parte de um dos contratantes em relação ao outro. Aqui, a responsabilidade individual é mitigada, estipulando-se a ingerência do Estado num sem número de situações em que, embora tenha havido livre manifestação das partes contratantes, uma delas, ao menos sob a ótica dos social-democratas, estava desprovida de instrumentos adequados que lhe possibilitasse avaliar a exata dimensão das conseqüências do contrato que estava assinando. Nesses casos, defendem que o Estado deve atuar prevenindo ou remediando a manifestação de vontade enviesada do indivíduo contratante, que, caso estivesse verdadeiramente ciente acerca dos termos contratuais, teria agido de outra forma. Por óbvio, apenas uma legislação de cunho "positiva" e prescritiva é capaz de dar vazão ao projeto de um Estado nestes moldes.

O exemplo da fiança nos contratos de locação de imóveis, estudado através das divergentes decisões que têm proferido o Poder Judiciário acerca da possibilidade de o fiador exonerar-se da garantia fidejussória no caso sob debate neste artigo, é magistralmente ilustrativo da oposição entre as teses defendidas por liberais e social-democratas.

Um liberal, valorizando a supremacia da liberdade individual para contratar, obviamente argumentará, do ponto de vista sociológico, que o fiador, quando assinou o contrato, estava ciente de todas as suas cláusulas. Se tinha dúvidas em relação ao teor delas, poderia ter consultado um advogado antes de subscrever o instrumento contratual. A aposição de sua assinatura ao final do contrato significou a concordância livre e desembargada acerca dos termos acordados, devendo o fiador, portanto, arcar com as responsabilidades provenientes de sua livre manifestação de vontade. Como já se expôs, essa tese encontra amparo jurídico sólido na legislação brasileira.

Inversamente, um social-democrata, tendo em mente como pano de fundo a crença de que o fiador encontrava-se em desvantagem em relação às demais partes do contrato, na medida em não tinha elementos para avaliar todas as conseqüências do que estava contratando (e levando em conta que o contrato de fiança é benéfico), poderá argumentar que a cláusula que determina a permanência da garantia fidejussória enquanto perdurar o contrato de locação, mesmo após ter sido prorrogado sem a anuência do fiador, é potestativa, submetendo-o ao arbítrio de locador e locatário; poderá, ademais, alegar que tal cláusula fere diversos artigos do Código Civil, tais como os que cuidam da função social dos contratos e o que permite ao fiador que exonere-se da garantia fidejussória prestada. O Estado, neste caso, deve ser chamado a prelo para remediar a situação.

Como se viu, ambas as teses encontram amparo jurídico que se sustenta em sólidos alicerces. Do ponto de vista sociológico (e ideológico), não é diferente - o que explica a divergência do Poder Judiciário acerca do tema.

Por fim, não é demais lembrar que o termo "fiança" tem origem no latim fidere, que significa "confiar". A expressão "coração de fiador', cunhado com perspicácia por Chico Buarque, guarda estreita aproximação com o significado original da palavra, não destoando também do sentido mais atual que formata esse instituto contratual. Ademais, não chega a macular a aura benéfica que reveste a fiança o fato de o fiador ter aceitado prestar a garantia fidejussória sem saber com exatidão os riscos que lhe eram ínsitos. Quem se oferece a afiançar outrem, fá-lo em prova de confiança, amizade e profundo afeto, sendo também capaz de, em nome desse mesmo afeto, "passar o verão a água e pão e dar o seu quinhão a um grande amor".

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*Quinto-anista da Faculdade de Direito da Universidade São Paulo - Largo São Francisco.






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