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Caso Choquei: O potencial destrutivo da voz no ambiente

Um ponto de vista sobre a sociedade atual, as medidas jurídicas cabíveis e o que pode ser cogitado para o futuro.

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Atualizado às 09:49

A voz tem poder para criar, mas também para destruir. A voz é o que nos separa dos animais. A capacidade de expor nossos pensamentos de maneira lógica e organizada.

Contudo, a sociedade atual parece não saber lidar com sua voz, na realidade, me pergunto se conseguem distinguir entre o que é bom e mau em meio as tantas vozes existentes no contexto social.

Basta um texto persuasivo, com uma copy bem feita, e pronto, as pessoas acabam deixando se levar pelo lado destrutivo da voz: espalham ódio, mentiras, falácias, espalham morte, como aconteceu com a Jéssica, na última semana.

Jéssica foi vítima das vozes. Da voz conferida a um veículo irresponsável e um administrador irresponsável. Da voz replicada por pessoas sem crivo do que é lícito e do quão danosas são as suas cordas vocais, ou melhor dizendo, suas teclas.

A participação ativa da sociedade no ambiente online, fez com que a população passasse a ter voz ativa, trouxe voz para eleger políticos, acabar com movimentos autoritários, denunciar corrupções, protestar em prol do bem comum, mas também foi capaz de reunir pessoas para ceifar a vida de uma jovem, tudo por conta de uma fake news. "Liberdade de expressão não é sinônimo de afirmação irresponsável".

Frase dita por Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald. Essa expressão não teria melhor lugar senão diante desta fatalidade. Afinal, o que mais temos nas redes hoje são afirmações irresponsáveis.

Obviamente, as consequências dessas manifestações são trágicas: causam depressão, ansiedade, síndromes psicológicas, causam morte.

A cultura do hype

Recentemente, tive a oportunidade de auxiliar o empresário do Whindersson Nunes a remover e desindexar notícias falsas espalhadas nos buscadores a seu respeito, que, apesar de não corresponderem a quem de fato ele era, as referidas notícias tiravam o seu sono, afinal, tinham o único intuito de prejudicá-lo.

Em outra oportunidade, um dos meus clientes foi chamado de nazista em um público de mais de 140 mil pessoas, mais uma vez, em uma tentativa de desmoralizar e acabar com a reputação da pessoa. Obviamente, retiramos essas postagens do ar também, mas foram dias de muita angústia para meu cliente.

Nos dois casos eu senti o desespero dos meus clientes de estarem de mãos atadas diante da força da opinião pública que vinha em seu desfavor e pude ver, de perto, quão angustiante era essa sensação.

Ja no caso da Jéssica, não consigo imaginar o quão pior foram os seus sentimentos. Uma menina, que não fez nada de errado, que, apesar de não ser ela nas conversas, ali também não havia nada de ilícito. E, mesmo assim, foi massacrada, humilhada, debochada.

Até onde iremos com essa distribuição gratuita de ódio em troca de hype? Em troca do comentário com mais curtidas? Ter visualizações e seguidores vale mais que uma vida?

A cultura do hype estabelece que não importa as condições, o que importa é que o nome do autor seja dito pelo maior número de pessoas possíveis, e que a publicação esteja nas trends.

A Choquei, alvo de todo repúdio, se preocupa tanto com o hype que, mesmo sendo a propagadora de todo o caos inicial, quando houve a notícia do falecimento da Jéssica, realizou uma postagem noticiando como se não tivesse sido a catalisadora de toda angústia na vida da vítima. Mas, para todo ato, existem consequências.

Medidas jurídicas cabíveis

O Direito, hoje, possui algumas ferramentas que podem ser utilizadas para resolução deste problema. O Marco Civil da Internet detém ferramentas para localização dos indivíduos que criaram a fake news e divulgaram para a Choquei, no intuito de difamar a Jéssica. Isto porque, seus endereços de IP ficam guardados com o Instagram no prazo de seis meses. Assim, é possível encontrar quem deu início à tragédia.

Na esfera Penal, existe a possibilidade (repito, possibilidade) de enquadrar a atitude do administrador da Choquei na modalidade de instigação ao suicídio (Jéssica já tinha pensamentos suicidas) em razão de sua omissão. Isto porque, após o apelo da mãe da vítima, o administrador da página não excluiu a postagem e sequer se manifestou a respeito da circunstância, deixando para realizar a exclusão apenas após a confirmação da morte.

Diante isto, além da pena base, se for possível a penalização, entendo que possam ser cabíveis causas de aumento como: motivo egoístico, torpe ou fútil (§ 3º, I); conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social (§ 4º); agente é líder ou coordenador de grupo ou de rede virtual (§ 5º).

São medidas suficientes? Não, são apenas um primeiro passo.

O que pode ser feito

O ideal, agora, é a mobilização do máximo de pessoas em prol da elaboração de leis que estabeleçam responsabilidades maiores, civis e penais, para os administradores de portais como o da Choquei, que ostenta 30 milhões de seguidores apenas no Instagram.

Para lidar com adventos tecnológicos e mudanças relacionadas com a evolução das tecnologias de informação, precisamos de leis valorativas, que permitam uma ampla interpretação, afinal, a tecnologia que temos hoje, amanhã já se tornará obsoleta. O processo evolutivo tecnológico é veloz, enquanto o do Direito é lento em razão das tantas burocracias existentes.

É necessário, acima de tudo, que se tenha responsabilidade pelo que é dito, responsabilidade pela voz, ainda mais se o poder de influência for demasiadamente desproporcional, como no caso da Choquei.

Seus administradores, hoje, ostentam dinheiro manchado de sangue proveniente de suas manifestações desonrosas, sem uma gota sequer de responsabilidade. A população também tem sua culpa, inclusive os que disseminaram a informação e atacaram diretamente a vítima. 

Mas isso muito se dá por falta de informação e desconhecimento. Ainda se acredita que a Internet é uma terra sem lei, e não é. Não será. Por este motivo, sou defensor da Educação Digital. Precisamos entender mais detalhadamente o ambiente digital, nossos direitos, deveres e responsabilidades como cidadãos. O ambiente online não mais se distingue do ambiente físico. Não existe uma vida online e offline: ambas são A VIDA, e percebemos isso, de forma trágica, com este caso.

Penalidade aos responsáveis. Educação a população. Cuidado com a voz.

Erike Purcino

Erike Purcino

Advogado. Professor Universitário nas matérias de Direito Digital e Direito Civil pela FADIP. Especialista em Privacidade e Proteção de Dados, Segurança na Internet e Reputação Online. Palestrante.

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