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Piso da enfermagem: a obrigação do financiamento pelo Ministério da Saúde das instituições credenciadas

A quem cabe a obrigação de financiar o piso nacional da enfermagem de instituições privadas com fins lucrativos credenciadas pelo SUS e/ou gestores dos entes federativos e que atendem pelo menos 60% dos pacientes pelo SUS?

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Atualizado às 14:38

No início de 2024, o Ministério da Saúde lançou a Cartilha sobre o Piso Nacional da Enfermagem - veja como funciona o pagamento, em sua 3ª edição. Nessa cartilha, apesar de conter informações bastante esclarecedoras, também contém informações que podem levar a interpretação dúbia e contraditória.

A questão que talvez seja mais contraditória e a quem cabe a obrigação de financiar os valores do piso salarial de enfermagem dos profissionais vinculados a pessoas jurídicas de direito privado com fins lucrativos, mas que atendam 60% ou mais de pacientes pelo SUS.

Nesse tocante ao assunto, a Cartilha é afirmativa no sentido de que é obrigação do Ministério da Saúde transferir recursos aos entes federados para que esses efetuem o pagamento direto. Essa informação está nas respostas às Perguntas 6, 7 e 15 da Cartilha sobre o Piso Nacional da Enfermagem.

Como fundamentação para a resposta, é invocado o § 1º, do Art. 99, da CF, que prevê que "As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos".

Contudo, na Observação 'b' da Pergunta 16, contêm a seguinte informação: "Os contratados via credenciamento não fazem jus à assistência financeira complementar, por não serem contratualizados ou agentes das entidades de que trata o art. 198, § 14 da Constituição Federal."

Para entender essa questão, primeiramente, por regra de interpretação, cabe observar que a resposta à Pergunta 16 faz menção as instituições privadas com fins lucrativos na forma do Anexo 2, do Anexo XXIV da Portaria de Consolidação GM/MS n. 2/2017. Esse dispositivo normativo é exclusivo para tratar da Política Nacional de Atenção Hospitalar. 

Desta forma, fazendo a interpretação de que a cada pergunta, as observações ali contidas são relacionadas com o conteúdo da resposta, a observação 'b' da Pergunta 16 faz referência a sua resposta e não haveria o financiamento do piso nacional da enfermagem somente e tão somente para as Unidades Hospitalares, não afetando clínicas e outras unidades não hospitalares. Por regras de hermenêutica, não é possível aplicar uma resposta a uma pergunta específica, que trata especificamente de Unidades Hospitalares (no tocante às instituições privadas com fins lucrativos) e replicar para todo e qualquer Instituição, generalizando a matéria.

Desta forma, quando a observação 'b', da Pergunta 16 (acima transcrita) diz que os contratos via credenciamento não fazem jus à assistência financeira, deve se limitar às entidades que são mencionadas na pergunta, ou seja, às Entidades Hospitalares. Não se pode aplicar observação de uma pergunta para entidade não relacionada na resposta.

Entretanto, outro ponto de debate é a questão do credenciamento em si mesmo. Segundo Orlando Gomes (2009, p. 4), o contrato é uma categoria geral e abstrata que engloba todo negócio jurídico válido. Ou seja, todas as relações que geram obrigações e direitos para as partes que estão ali envolvidas. Se se existem partes capazes, se o objeto é lícito, possível, determinado ou determinável e, havendo forma prevista em norma legal, esta foi observada, e, por fim, foi pactuado obrigações e direitos, estamos diante de um contrato válido.

Especificamente sobre o credenciamento, o Ministério da Saúde publicou o "Manual de Orientações para Contratação de Serviços de Saúde", através da Secretaria de Atenção à Saúde, em 2017, que explica o credenciamento não é o contrato em si mesmo, mas uma forma de dispensa de licitação, por razões de interesse público, e os prestadores de serviço ou beneficiários firmarão, no futuro, contrato com o ente público.

Ou seja, os credenciamentos não só são válidos e corroborados pelo TCU, como não são um si mesmo, mas sim uma forma de convocação de prestadores de serviço interessados em contratar com o ente público. Uma vez realizado o credenciamento, o contrato de prestação de serviço é firmado entre as partes. 

Analisando o tema, o Ministério Público do Maranhão emitiu Nota Técnica (2020) afirmando que:

[...] Tal entendimento é corroborado tanto pela doutrina, quanto pelos Tribunais de Contas, em especial, o da União, os quais admitem o instituto do credenciamento para a contratação de pessoas físicas e/ou jurídicas para a prestação de serviços técnicos profissionais na área de saúde, desde que atendidos os seus requisitos, e ainda, que seja realizado em caráter suplementar, de modo que tais contratações não violem as regras do concurso público, bem como sejam respeitados os princípios da Lei de licitações, no que couber, e, obviamente, os princípios constitucionais da administração pública;

O credenciamento é, assim,  válido e um instrumento para a contratação de pessoas físicas e jurídicas. Do credenciamento resulta um contrato, uma relação jurídica válida que gera direitos e obrigações para as partes ali vinculadas.

Desta forma, com base em tudo o quanto analisado, principalmente no tocante às instituições privadas com fins lucrativos contratadas mediante credenciamento para o exercício de serviço de saúde, que atendam pelo menos 60% dos pacientes pelo SUS, não há outra conclusão a chegar que firmam sim contrato/contratualização com o gestor estadual, municipal e/ou do Distrito Federal.

Se há o preenchimento dos requisitos legais, estipulados em lei e/ou no julgamento da ADI n. 7.222, é obrigação da União, através do Ministério da Saúde efetuar o financiamento complementar dos valores para o pagamento do piso nacional da enfermagem. O repasse dos valores deve ocorrer através dos gestores estaduais, municipais e/ou Distrito Federal, sendo totalmente ilegal qualquer atitude em sentido contrário.

_______________

GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Anexo 2, do Anexo XXIV da Portaria de Consolidação GM/MS n. 2/2017. Disponível em: . Acesso em: 07 fev. 2024.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Manual de orientações para contratação de serviços de saúde [recursos eletrônico]. Brasília: Ministério da Saúde, 2017.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Piso Nacional da Enfermagem: veja como funciona o pagamento. 3. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2024.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria GM/MS Nº 1.135, de 16 de agosto de 2023. Disponível em: . Acesso em: 07 fev. 2024.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO MARANHÃO. NTC-CAOP-PROAD-12020. Disponível em: . Acesso em: 08 fev. 2024.

Nadialice Francischini

VIP Nadialice Francischini

Advogada desde 2005 ; Sócia do Francischini de Souza Advogados Associados; Doutora e Mestre em Direito; Especialista em Direito Empresarial, Consumidor, Governança, Compliance e LPGD.

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