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Contrato de coworking: locação, prestação de serviços ou hospedagem?

Reina confusão na doutrina e na jurisprudência acerca dos elementos e da natureza jurídica do contrato de coworking, fato que gera dúvidas e instabilidade neste novo e importante mercado de espaços compartilhados.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Atualizado às 16:09

O mercado de coworking vem crescendo de forma exponencial no Brasil e no mundo. Em solo nacional, houve um aumento de mais de 500% na quantidade de espaços entre 2015 e 20191. Entre 2019 e 2023, a despeito da pandemia, a expansão foi de 63%, totalizando 2.243 coworkings2

Não obstante o tamanho do mercado (que globalmente representa mais de US$ 19 bilhões3), a natureza da relação jurídica entre as partes do contrato de coworking ainda não foi pacificada. Em decorrência, merece ser melhor estudada pela doutrina e analisada pelos tribunais porquanto, a depender desta natureza, exsurgirão importantes efeitos na esfera contratual, processual, tributária, consumerista e até condominial. Vale notar, por relevante, que não há legislação específica (ao menos na esfera federal) a regular o tema e os julgados existentes são conflitantes. 

Seria o contrato de coworking uma locação ou sublocação (regida pela lei 8.245/91), prestação de serviços (regulada pelo CCB/02) ou, ainda, um contrato complexo atípico misto? Há quem realce, inclusive, as similaridades entre o contrato de coworking e o de hospedagem.

O contrato de coworking é aquele pelo qual uma sociedade ("Administrador") se obriga a ceder o uso de espaços, instalações e determinados equipamentos ("Espaço Cedido"), bem como prestar serviços de suporte ("Serviços") a terceiros ("Coworkers"), por prazo determinado ou não, em imóvel comercial compartilhado e neutro ("Espaço de Coworking"), mediante retribuição.

A vasta maioria das pessoas não distingue o contrato de locação de imóveis comerciais do contrato de coworking. Não raro, utilizam expressões como "aluguel" (ao se referir à retribuição do contrato), "área locada" (para retratar o Espaço Cedido) e "valor de locação por metro quadrado" (para descrever a contrapartida devida ao Administrador).   

O equívoco se explica pelas semelhanças existentes entre estes contatos. São inúmeros os julgados, inclusive, que não diferenciam entre um e outro4. A prevalecer este entendimento, os Coworkers tornar-se-iam beneficiários das diversas prerrogativas garantidas ao inquilino pela Lei de Locações, tais como: a ação renovatória (prevista nos arts. 71-75 da lei 8.245/91), ação revisional (arts. 68-70 da lei 8.245/91), vedação da cobrança antecipada de alugueres para locações garantidas (art. 43, III, lei 8.245/91) e direito de preferência (arts. 27 a 34 da lei 8.245/91), o que certamente inviabilizaria o mercado de coworking. 

Ocorre que, não obstante o paralelismo entre os contratos, há inúmeras diferenças que acabam por descaracterizar a locação na relação do Administrador com o Coworker.  

Com efeito, no contrato de locação, via de regra, o locador transfere ao locatário a posse direta e irrestrita do imóvel, de modo que não há impedimento quanto ao acesso e circulação às diversas partes do imóvel (ou limitações de horários para a entrada e saída de suas dependências).

No contrato de coworking, ao contrário, o Espaço Cedido não é disponibilizado de forma irrestrita. Há certas áreas do Espaço de Coworking que o Coworker simplesmente não pode adentrar (e.g. áreas técnicas e salas de outros Coworkers). Até mesmo o acesso às salas de reunião (ou auditórios) normalmente está sujeito à reserva prévia. 

Aliás, diversos Espaços de Coworking possuem horários de funcionamento prefixados (e.g. horário comercial) ou limitam os dias e horários de entrada de certos usuários, a depender do plano contratado. São comuns também restrições quanto à introdução de modificações (e.g. decoração) no Espaço Cedido, ao ingresso de visitantes e de animais de estimação, demarcação de áreas específicas para o consumo de alimentos, etc.

Ademais, o Administrador poderá adentrar às posições de trabalho sem aviso prévio, ainda que situadas em salas privativas, para limpeza e manutenção do Espaço Cedido, assim como ocorre nas acomodações em hotéis. Esta faculdade é evidentemente incompatível com as locações tradicionais que exigem agendamento prévio de dia e hora para vistoria do imóvel pelo locador ou seu mandatário (art. 23, IX, da lei 8.245/91). 

Outra flagrante diferença entre os institutos é a concomitante cessão de uso de espaços, instalações e, por vezes, equipamentos, com a prestação de Serviços - ambos (bens e serviços) inerentes ao contrato de coworking - e a singela cessão de uso de coisa(s) não fungível(eis) que caracteriza a locação. Relevante notar que a prestação de serviços não constitui elemento secundário ou acessório ao contrato de coworking, sendo certo que, no mais das vezes, os Serviços estão umbilicalmente associados com a cessão do Espaço de Coworking. A ausência do Espaço Cedido ou dos Serviços descaracterizará o contrato (exceto no caso dos escritórios virtuais).

Há quem sustente que haveria uma relação de sublocação entre o Administrador e o Coworker nas hipóteses em que o Administrador é locatário do imóvel. 

Sucede que a Lei de Locações veda caráter especulativo à sublocação: 

Art. 21. O aluguel da sublocação não poderá exceder o da locação; nas habitações coletivas multifamiliares, a soma dos aluguéis não poderá ser superior ao dobro do valor da locação". (grifos nossos). 

Se a relação entre Administrador e Coworker fosse de sublocação, este modelo de negócios que, com frequência, visa locar imóveis para posteriormente neles ceder espaços (e concomitantemente prestar Serviços a terceiros), por valor agregado superior ao valor da locação, seria inviável. 

Destarte, não é exigido o consentimento prévio do locador para que o Administrador celebre contratos de coworking com os seus clientes (art. 13 da lei 8.245/91). Mas, com vistas a desencorajar futuras perlengas, é recomendável que haja expressa estipulação no contrato de locação quanto a destinação que é facultada ao Administrador dar ao imóvel. 

Cabe registrar que há julgados que respaldam a inaplicabilidade da Lei de Locações ao coworking5

Diante da evidente dificuldade em caracterizar o contrato de coworking como uma locação, há aqueles que argumentam que o mesmo equivaleria a um contrato de prestação de serviços (acompanhada da cessão de direito de uso de instalações). Existem julgados a sustentar este entendimento.6  

O raciocínio acima é mais que compreensível, já que, à primeira vista, a prestação de serviços parece ser o principal objeto do contrato de coworking. 

Ocorre que, de regra, a prestação de serviços envolve somente uma obrigação de fazer, enquanto que o contrato de coworking é multifacetado: abrange, além dos Serviços, a disponibilização do Espaço Cedido: obrigação de fazer conjugada com obrigação de dar, ambas igualmente relevantes e umbilicalmente conjugadas. 

Esta duplicidade de objeto acaba por descaracterizar o contrato de coworking como uma singular prestação de serviços (tal qual tipificado pelo CCB/02). Como se não bastasse, a caracterização do contrato de coworking como uma mera prestação de serviços com cessão de direito de uso de instalações daria importância secundária ao Espaço Cedido que, conforme visto, não é menos importante do que os Serviços lá prestados. 

A duplicidade de objeto é o que provoca as comparações entre coworking e hospedagem. A hospedagem profissional é contrato multifacetado de objeto complexo que envolve a cessão de uso de espaços/instalações (obrigação de dar) conjugada com a prestação de serviços (obrigação de fazer). Ademais, o fornecimento de alimento (comum na hospedagem) também é usual nos coworkings, em especial naqueles de grande porte que, por vezes, possuem cafés e até restaurantes em seu interior. A venda de alimentos, por meio de máquinas de autoatendimento, é igualmente corriqueira em ambos. 

O contrato de hospedagem (segundo corrente majoritária) é classificado como atípico misto. Atípico porque carece de regulação estatal e misto porque compreende elementos de diferentes contratos: locação de coisas, prestação de serviços, venda e depósito. 

Assim como ocorre na hospedagem, o coworking igualmente mescla elementos de diferentes contratos. Inclusive, as prestações envolvidas em cada qual, embora distintas, apresentam certa similaridade: uma das partes se obriga com uma pluralidade de prestações (em especial a disponibilização de espaço, prestação de serviços e fornecimento de alimentos), enquanto a outra se obriga com contraprestação única (pagamento). 

Inobstante as semelhanças, é evidente que estes institutos também têm notáveis diferenças decorrentes de seus distintos objetos: enquanto um possui como finalidade principal a disponibilização de abrigo/alojamento temporário (normalmente para indivíduos em trânsito), o outro busca oferecer espaços para o desenvolvimento de atividades profissionais (no mais das vezes para indivíduos que habitam nas redondezas ou pessoas jurídicas interessadas em se sediar na região), cada qual com serviços correlatos característicos à atividade. 

Embora minoritária e esparsa, há jurisprudência que, sem se socorrer desta analogia, reconhece o caráter atípico e misto do contrato de coworking7.

Em suma, o exercício de atividades profissionais em espaços de coworking é fenômeno que vem apresentando crescimento vertiginoso em todo o mundo. Esta nova realidade social e econômica tem merecido até o momento reduzida atenção dos estudiosos do Direito, não obstante as naturais e crescentes dúvidas de cunho jurídico que cercam estes espaços. Ademais, os tribunais têm, alternadamente, designado os contratos de coworking como contratos típicos de locação/sublocação ou de prestação de serviços e, ainda, minoritariamente, como contratos atípicos mistos. 

Quer nos parecer que esta corrente minoritária é a que melhor identificou os elementos e a natureza jurídica do contrato de coworking, uma vez que o contrato de coworking, apesar de apresentar semelhanças com os contratos típicos de locação e prestação de serviços, bem como com o contrato atípico de hospedagem, não pode ser tratado sob a rubrica de nenhum deles, dado suas características diferenciadoras próprias. Em verdade, apesar do contrato de coworking conter em seu bojo elementos de cada um dos citados contratos, ele forma uma nova espécie "sui generis" complexa, atípica mista. 

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1 COWORKING BRASIL ORG. Censo Coworking Brasil 2019. Disponível em: https://coworkingbrasil.org/censo/2019/. Último acesso em 15.08.2022.

2 WOBA. Censo Coworking by Woba. Último acesso em 14.02.2024.

3 THE BUSINESS RESEARCH COMPANY. Coworking Space Global Market Report, 2022. ID: 5546266. Disponível em: https://www.researchandmarkets.com/reports/5546266/coworking-space-global-market-report-2022-by#product--toc. Último acesso em 14.02.2024.

4 AGRAVO DE INSTRUMENTO. LOCAC¸A~O DE SALAS E ESPAC¸OS COMERCIAIS (COWORKING). Tutela de urgência para a revisão do contrato. Descabimento. Inexiste^ncia de elementos concretos a justificar a alegada relação de causalidade com a pandemia do COVID-19 RECURSO DESPROVIDO. (TJ-SP - Agravo de Instrumento n. º 2087125-74.2020.8.26.0000 - 26ª Câmara de Direito Privado - RELATOR: ANTONIO NASCIMENTO. Data de Julgamento: 30/06/2021). (grifos nossos); e

LOCAÇÃO NÃO RESIDENCIAL. COWORKING. "AÇÃO DE CONHECIMENTO PARA RESTITUIÇÃO DE CAUÇÃO LOCATI'CIA". Sentençade parcial procedência. Responsabilidade da locatária pelas obrigaçõess decorrentes da locação que persiste até a data da entrega das chaves. Itens perdidos ou avariados (chaves e gaveteiros). Descontos devidos. Pintura do imóvel a ser suportada pela locatária, no caso, pois a necessidade não decorre do uso normal. Multa contratual por rescisão antecipada. Descabimento, na hipótese. Sentenc¸a reformada, quanto a este ponto. RECURSO PROVIDO, EM PARTE. (TJ-SP - Apel. n. º 1111331-68.2017.8.26.0100 - 27ª Câmara de Direito Privado - RELATOR: CAIO MARCELO MENDES DE OLIVEIRA. Data de Julgamento: 28/06/2019). (grifos nossos).

5 COMPETÊNCIA - Contrato de locação de equipamento customizado e espaço - "Coworking" - Ac¸a~o de reparação de danos materiais proposta pelo locatário - Ajuizamento no foro do domicilio do autor - Decisão de primeiro grau que reconhece que o contrato é regido pela Lei no 8.245/91 e que o Código de Defesa do Consumidor não se aplica ao caso concreto e acolhe alegação de incompetência fundada em cláusula de eleição de foro - Agravo interposto pelo autor - Relação de consumo caracterizada e não sujeita às regras da Lei n.º 8.245/91 - Opção pelo foro mais conveniente ao autor - Abusividade da cláusula contratual de eleição de foro - Decisão reformada - Recurso provido (TJ-SP - Agravo de Instrumento. n. º 2145603-75.2020.8.26.0000 - 29ª Câmara de Direito Privado - RELATOR: CARLOS HENRIQUE MIGUEL TREVISAN. Data de Julgamento: 14/07/2020). (grifos nossos); e APELAÇÃO NÃO. CONTRATO ATÍPICO DE LOCAÇÃO DE ESPAÇO E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. COWORKING. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. (...) Não se está diante de um contrato típico de locação de imóvel urbano, regido pela Lei n.º 8.245/1991, portanto. Cuida-se, na realidade, de contratação mista atípica, envolvendo simultaneamente a autorização de uso de espaço físico e de equipamentos em regime compartilhado e a prestação de diversos serviçoss pela apelada (manutenção e limpeza, reprografia, telefonia, recepção, fax e intermediação de serviços de terceiros), a` qual se aplicam as disposições dos arts. 565 a 578 e art. 593 do Código Civil. (TJ-SP - Apel. n. º 1020542-45.2020.8.26.0576 - 31ª  Câmara de Direito Privado - RELATOR: ROSANGELA TELLES. Data de Julgamento: 21/07/2020). (grifos nossos).

6 EXAME DE COMPETÊNCIA. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS E CESSÃO DO USO DE ESPAÇO. CAUSA PETENDI RESPALDADA NA INADIMPLÊNCIA DE MULTA CONTRATUAL. EMPRESA AUTORA QUE PRESTA SERVIÇOS DE COWORKING. NATUREZA JURÍDICA DA AVENÇA QUE DIZ RESPEITO A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. INTELIGÊNCIA DO ART. 90, INCISO V, ALÍNEA V, DO REGIMENTO INTERNO DESTE TRIBUNAL. Compete as Câmaras relativas a prestação de serviços o processamento e julgamentos dos recursos que versem a respeito de contrato de coworking, visto que a relação jurídica estabelecida se refere a cessão de uso do espaço associado diretamente com a prestação de diversos serviços. (TJ-PR - Apel. 0003801-10.2017.8.16.0194 - 11ª C.Cível - RELATOR.: COIMBRA DE MOURA - Data de Julgamento 16/05/2019). (grifos nossos).

7 Preservada a convicc¸a~o do MM. Juiz de primeiro grau, o inconformismo comporta acolhimento, na~o se aplicando a` relac¸a~o entre as partes as regras da Lei n.º 8.245/91 uma vez que a locac¸a~o prevista no contrato na~o tem por objeto propriamente um imo'vel urbano (artigo 1º). As partes celebraram contrato ati'pico, de natureza mista (locac¸a~o de espac¸o e de equipamentos e prestac¸a~o de servic¸os), ao qual se aplicam os artigos 565 a 578 e 593 e seguintes do Co'digo Civil, e no qual o autor fica autorizado a usar, em regime de compartilhamento, o espac¸o fi'sico e os equipamentos disponibilizados pela re'. Na~o se esta' diante de ti'pica locac¸a~o de imo'vel. (TJ-SP - Agravo de Instrumento. n.º 2145603-75.2020.8.26.0000 -29ª Ca^mara de Direito Privado - RELATOR: CARLOS HENRIQUE MIGUEL TREVISAN. Data de Julgamento: 14/07/2020). (grifos nossos); 

A presente relação jurídica não pode ser considerada de consumo, por se tratar de contrato denominado coworking, um misto de locação e prestação de serviços, em que o contratante utiliza os espaços compartilhados e os serviços neles oferecidos como insumo para o exercício de suas atividades lucrativas. Desse modo, falta-lhe as características que caracterizam a relação de consumo, conforme definição dos arts. 2º e 3º do CDC (teoria finalista). (TJ-DF - Agravo de Instrumento. n.º 07230362920218070000 - 8ª Turma Cível - RELATOR: ROBSON TEIXEIRA DE FREITAS - Data de Publicação: 23/07/2021). (grifos nossos). 

Leo Benjamin Fischer

VIP Leo Benjamin Fischer

Bacharel e mestre em Direito pela PUC-SP, especialista em Direito Imobiliário, autor da obra "Aspectos Jurídicos do Coworking" e assessor jurídico da Associação Nacional de Coworkings

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