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Em sede de juízo sumário e prefacial não cabe a palavra "lobby"

Justiça suspende resolução da Anvisa sobre prazo de estoques de alimentos. Decisão questiona a idoneidade do processo, mas Anvisa defende sua competência técnica e científica.

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Atualizado às 15:56

Em "decisão precária", sob o argumento da fumaça do bom direito, o perigo na demora e o risco ao resultado útil do processo, a Justiça Federal de São Paulo determinou, em sede de ação civil pública, a suspensão dos efeitos da Resolução de Diretoria Colegiada - RDC  819/23 da Anvisa, a qual prorrogava o esgotamento, até 09 de outubro de 2024, do estoque de embalagens e rótulos de alimentos adquiridos até 08 de outubro de 2023, a pedido do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, respeitabilíssimo instituto.

Mas, não se limitou a isso.

Obrigou, ainda, que a Anvisa se abstenha de adotar medidas que, direta ou indiretamente, autorizem o descumprimento dos prazos de implementação da RDC 420/20 e da IN 75/22, determinando que as empresas fabricantes de alimentos processados PUP, que estejam se valendo da autorização de esgotamento de embalagens e rótulos antigos, com fundamento na RDC 819/23, num prazo máximo de 60 (sessenta) dias, adotem etiquetas adesivas complementares com a (i) nova tabela de informação nutricional; e (ii) a lupa frontal "ALTO EM" em todos os rótulos e embalagens que estejam em desconformidade com a RDC 429/20 e a IN 75/20.

Aqui a discussão é sobre a "lupa" que passou a constar nos rótulos dos alimentos, com alertas de "alto em açúcar, sódio e/ou gordura saturada". Vejam:

Em (muita) apertada síntese, e "antes mesmo de adentrar na controvérsia", o douto juízo federal teceu considerações sobre o que pensa ser importante para o desenvolvimento de qualquer país, desde uma economia robusta até a aliança entre agentes econômicos, o governo e as leis, a fim de garantir o funcionamento de instituições e a "fixação de mercados sólidos em que bens, riquezas e serviços circulem em grande monta" - os grifos são originais.

Naturalmente, amparou sua forma de pensar em vastas publicações de doutrinas e revistas jurídicas e econômicas, assim como citou a sua própria tese desenvolvida no doutorado da tradicional USP. Ou seja, fundamentou sua razão de pensar como manda a academia científica: fazendo uso de referências bibliográficas.

Porém, na sequência, adentrou em dois aspectos fundamentais que são caros - aliás, caríssimos! -, especialmente, para a Anvisa: o consumidor e a saúde. Teceu longas considerações sobre a "assimetria de informação" existente e o papel essencial da regulação de neutralizar isso. Afirmou, ainda, que cabe à regulação estipular normas relativas à segurança e qualidade dos bens e produtos postos em mercado.

Nada de novidade, nada novo, realmente, para a Anvisa. Afinal, a sua missão institucional é clara e se encontra expressa na lei  9.782/99: "promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária".

Ocorre que, ao abordar o assunto, pareceu ressaltar a existência - exclusivamente para ele e o postulante - de uma preocupação que inexiste, por outro lado, para o órgão regulador. Dizer que a norma editada pela Anvisa não foi introduzida inopinadamente, assim como ela (a norma) busca permitir que o consumidor faça escolhas mais conscientes ao adquirir um alimento, por meio da diminuição da assimetria de informações, é ressaltar o trabalho que a própria Anvisa realizou, visto que isso foi a que motivou a editar o ato e nada além disso.

Agora, o que não é fácil aceitar - em sede de "juízo sumário e prefacial", tal como ressaltado na própria decisão - é qualquer questionamento relacionado à idoneidade do processo que culminou em uma prorrogação de prazo pontual (com objeto e data certa), apontando a necessidade de "resistir ao lobby de agentes econômicos que tentam compensar a própria incapacidade por meio de um protecionismo estatal que prejudica a coletividade" - agora os destaques e grifos não são originais.

Veja, poderia o r. juízo federal ter se circunscrito a eventual desconforto em torno da ausência de uma consulta pública (embora tenha havido respeito às Boas Práticas Regulatórias, uma vez que houve a devida abertura de Processo Administrativo de Regulação1, e a dispensa de Análise de Impacto Regulatório - AIR, de Consulta Pública - CP e de Avaliação do Resultado Regulatório - ARR foi realizada sob justificativa, em razão da urgência - motivo previsto no decreto 10.411/20 e demais legislações aplicáveis); ou, até mesmo, ao potencial risco de confusão ao consumidor (o que não se verifica, dado ao fato de que a própria RDC 429/20 já possibilitava a coexistência de produtos nas prateleiras "com e sem lupa", por um período de transição - havendo um risco minimamente calculado).

Porém, não poderia ter declarado a necessidade de resistência ao lobby, muito menos que "é indispensável que autoridades regulatórias compreendam, de uma vez por todas" - frisa-se, de uma vez por todas - que "não há desenvolvimento da sociedade que não esteja ancorado num quadro institucional baseado em regra estáveis e legítimas, que propiciem segurança jurídica e recebam aceitabilidade social" (citando Gilson Wessler Michels).

Se tivesse a Anvisa, por meio da sua Diretoria Colegiada, concedido caso-a-caso as 57 excepcionalidades solicitadas, teria ela sido acusada de violar, só para começar, a isonomia e a impessoalidade. Se tivesse tratado por meio de "excepcionalidades", inclusive, teriam dito que ela violou a própria legalidade. Ao avaliar e ponderar princípios, vê-se que a Agência Reguladora tomou uma decisão, no mínimo, isonômica, impessoal, eficiente e razoável.

O voto condutor dessa mudança normativa que, agora o d. juízo federal sustou, foi explícito com relação a sua motivação. Abordou, até mesmo, circunstâncias tão óbvias quanto a missão institucional da Anvisa (a qual foi reafirmada pela decisão que ora analisamos), uma vez que é público e notório que desde 2020, com a declaração de emergência em saúde pública nacional e internacional decorrente da pandemia da Covid-19, distintos elos da cadeia produtiva foram afetados (e não só na indústria de alimentos). Nós, enquanto seres humanos, também, fomos afetados.

Não obstante, as áreas técnicas (leia-se: os especialistas, de fato, no assunto) registraram que o descumprimento às normas de rotulagem não resulta em dano imediato à saúde do consumidor ou incrementa o risco sanitário. Na verdade, as áreas técnicas delimitaram bem a situação: "o impacto da rotulagem nutricional na saúde da população está em nível comportamental". Quer dizer, trata-se de um zelo a mais do Estado, que busca informar ao cidadão sobre o consumo daquele determinado produto, o que não significa que ele deixará de consumi-lo, muito menos que compreende, absolutamente, e a partir da "lupa", o que o sódio, o açúcar e a gordura produzem em seu organismo, nem como, nem quanto o afeta.

Quando se diz que algo está relacionado ao "comportamento humano", devemos ter em mente que há outro direito em questão: o da privacidade, decorrência lógica da intimidade e da dignidade humana. Logo, há que se ponderar sobre a (im)possibilidade de adentrarmos na esfera de decisão do consumidor, afinal, ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.

Se não é ilícito consumir algo alto em alguma coisa, realmente, só cabe ao Estado advertir, informar e orientar. E isso a Anvisa fez - muito antes, inclusive, do próprio d. juízo - e a mera prorrogação pontual não afasta a nobreza do seu ato, que data de 2020 e perdurará pelas próximas décadas ou enquanto se prestar à proteção e promoção da saúde da população.

Com a máxima vênia, incorreu em enorme equívoco, até por se tratar de uma análise superficial, o d. juízo federal ao fazer, perdoem a repetição, juízo de valor negativo sobre as razões que levaram um órgão regulador da envergadura da Anvisa a editar ato normativo, reitera-se, pontualíssimo. Apontar que algo causa, no mínimo estranheza é uma coisa. Suscitar que a Anvisa precisa resistir ao lobby é outra completamente diferente.

Aliás, o compromisso da Anvisa e a condução de suas atividades durante a pandemia (momento em que mais esteve sob holofotes) mostraram a grandiosidade da Agência e o quanto é capaz de resistir ao lobby.

Em qualquer democracia ou em qualquer país desenvolvido - como aquele idealizado na própria decisão - faz parte do jogo a existência de opiniões divergentes; de posições antagônicas; de gremistas e colorados; ou de flamenguistas e fluminenses; ou, ainda, aquele clássico, esquerda e direita. Mas, em países desenvolvidos, não se imputa a Diretores de uma das mais respeitadas agências reguladoras do mundo a mera subserviência aos interesses de alguns agentes econômicos, especialmente quando o ato administrativo se encontra devidamente motivado por pilares estruturantes da nossa Constituição e por razões técnicas. Especialmente quando há validação jurídica da Advocacia Geral da União no processo.

Sempre ocorreu, e sempre ocorrerá, situações e decisões que desagradarão uma parcela, por vezes considerável, dos agentes econômicos e/ou da população. Contudo, é preciso ressaltar que o órgão regulador não tem seus especialistas em regulação, muito menos os seus dirigentes, eleitos pelo povo, razão pela qual suas decisões não são baseadas em interesses da maioria ou minoria, da sua base aliada ou não. Não precisam (e não devem) ser populares. São desprovidas (ou deveriam ser) de ideologias, visto que devem guardar coerência científica, técnica e legal, baseada na avaliação de risco.

Ora, se for assim, tal como a decisão do d. juízo federal afirmou, toda e qualquer decisão da Anvisa poderá ser objeto de questionamentos. É preciso garantir a competência institucional da Anvisa na gestão do interesse público com celeridade e especialização técnica (como já disse o próprio Supremo Tribunal Federal em mais de uma ocasião), sob pena de, muito em breve, termos que instituir o "lobbymetro" e, a depender se o nível estiver muito elevado ou baixo, apontarmos aquela decisão como técnica e de interesse público; ou como mera "influência externa".

Vale, ainda, fortalecer o Princípio da Deferência, baseado no respeito às decisões que são proferidas por autoridades que possuem conhecimento específico no tema, principalmente na seara técnica2; que vivem o dia a dia da Instituição e de seus regulados, sempre tendo em mente e como alvo sua missão institucional. Ao Judiciário seria cabível intervir nas decisões proferidas pela Administração Pública, no exercício regular de sua competência, apenas quando fossem flagrantemente arbitrárias ou ilegais.

Cabe, agora, e infelizmente, à Anvisa recorrer e, até mesmo, avaliar o cabimento de suspensão de liminar ou de antecipação de tutela - SLAT, igualmente conhecida como suspensão liminar - SL, por meio da sua r. Procuradoria Federal com fundamento no §1º, do art. 4º da lei 8.437/92, muito embora não se trate (ainda) de sentença em ação civil pública. Espera-se que o Tribunal aja diferente, especialmente em sede de "juízo sumário e prefacial".

Registra-se, por fim, o máximo respeito à competência da Anvisa, a idoneidade do Voto 221/2023/SEI/DIRE4/ANVISA e ao Colegiado que o acompanhou.

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1 Despacho nº 140, de 17 de outubro de 2023, publicado no Diário Oficial da União nº 198, de 18/10/2023.

2 MOREIRA, Egon Bockmann. Crescimento econômico, discricionariedade e o princípio da deferência.

Larissa Meneghel

VIP Larissa Meneghel

Advogada. Life Sciences. Inteligência Regulatória.Ex-servidora pública efetiva da Anvisa. Especialista em Dir. Sanitário. Mestre em Administração Pública, licenciada em Língua Portuguesa e literatura

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