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A renúncia ao direito de concorrência sucessória pelo cônjuge

O direito das famílias valoriza a autonomia, mas o direito das sucessões impõe restrições, como no caso da sucessão do cônjuge. Reformas legislativas são propostas para harmonizar esses ramos do direito.

domingo, 5 de maio de 2024

Atualizado em 3 de maio de 2024 14:55

O direito das famílias e o direito das sucessões, apesar de suas conexões intrínsecas, apresentam abordagens distintas em relação ao princípio fundamental da autonomia privada. Enquanto o direito das famílias se ancora na liberdade de escolha e na autodeterminação dos indivíduos para gerir suas relações afetivas e patrimoniais, o direito das sucessões, por sua vez, impõe restrições significativas, especialmente no que tange à sucessão do cônjuge. Este artigo se propõe a analisar de forma aprofundada a possibilidade e a viabilidade da renúncia ao direito de concorrência sucessória pelo cônjuge, com foco na tensão existente entre a autonomia privada e as normas imperativas do direito das sucessões, buscando demonstrar a necessidade de uma reforma legislativa que harmonize esses dois ramos do Direito.

O CC/02, em um marco evolutivo do direito de família, reconheceu o cônjuge como herdeiro necessário, equiparando-o a descendentes e ascendentes na ordem de vocação hereditária. Essa alteração representou um avanço significativo no CC/1916, refletindo as transformações sociais e a crescente valorização da igualdade de gênero nas relações familiares. No entanto, apesar desse progresso, o atual Diploma Civil restringe a autonomia privada em matéria sucessória por meio da figura dos herdeiros necessários, que inclui o cônjuge sobrevivente.

A escolha do regime de bens, exercida livremente pelo casal por meio da lavratura do pacto antenupcial, é uma manifestação clara da vontade dos cônjuges em estabelecer as regras que regerão suas relações patrimoniais durante a constância do casamento. A opção pelo regime da separação de bens, por exemplo, demonstra a decisão consciente do casal de não compartilhar o patrimônio acumulado durante a vida em comum, o que leva à presunção lógica de que essa escolha também deveria se estender à situação de falecimento de um dos cônjuges.

Entretanto, o art. 426 do CC impõe uma restrição significativa à autonomia privada ao proibir pactos sucessórios, impedindo a renúncia prévia à herança. Essa proibição gera uma contradição evidente, pois permite que o casal defina livremente a destinação de seu patrimônio em caso de dissolução do casamento por divórcio, mas limita essa liberdade na hipótese de falecimento de um dos cônjuges. Essa incongruência se torna ainda mais evidente quando se considera o regime da separação de bens, onde a incomunicabilidade patrimonial é a regra durante a vida, mas não é respeitada na sucessão.

A doutrina e a jurisprudência brasileiras apresentam divergências significativas sobre a validade da renúncia prévia à herança através do pacto antenupcial. Enquanto existe uma corrente que defende a aplicação rígida do art. 426 do CC, argumentando que a proibição de pactos sucessórios é uma norma de ordem pública, visando proteger a legítima dos herdeiros necessários (pelo qual o cônjuge sobrevivente tem seu status nos ditames do art. 1.829, do CC) e evitar fraudes ou abusos contra o autor da herança, por outro lado, há uma corrente que sustenta a possibilidade da renúncia prévia à herança, argumentando que a renúncia mútua ao direito sucessório, formalizada em pacto antenupcial ou contrato de convivência, não se enquadra na proibição legal dos pactos sucessórios. Nesse sentido, ensina o professor Rolf Madaleno:

Cônjuges e conviventes podem livremente projetar para o futuro a renúncia de um regime de comunicação de bens, como podem projetar para o futuro a renúncia expressa ao direito concorrencial dos incs. I e II do art. 1.829 do Código Civil brasileiro, sempre que concorram na herança com descendentes ou ascendentes do consorte falecido. A renúncia de direitos hereditários futuros não só não afronta o art. 426 do CC (pacta corvina), como diz notório respeito a um mero benefício vidual, passível de plena e prévia abdicação, que, obviamente, em contratos sinalagmáticos precisa ser reciprocamente externada pelo casal, constando como um dos capítulos do pacto antenupcial ou do contrato de convivência, condicionado ao evento futuro da morte de um dos parceiros e da subsistência do relacionamento afetivo por ocasião da morte de um dos consortes e sem precedente separação de fato ou de direito. (MADALENO, ROLF. Sucessão Legítima. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 445)

A despeito disso, vê-se que o STJ considera vedado a celebração de contrato que disponha sobre herança de pessoa viva, nos termos do art. 426 do CC. Colha-se trecho da ementa do REsp 1.294.404/RS:

(...) 1. Cinge-se a controvérsia a saber se o regime de separação total dos bens, estabelecido em pacto antenupcial, retira do cônjuge sobrevivente a condição de herdeiro necessário, prevista nos arts. 1.829, III, 1.838 e 1.845 do CC, ou seja, quando não há concorrência com descendentes ou ascendentes do autor da herança. 2. Na hipótese do art. 1.829, III, do CC/02, o cônjuge sobrevivente é considerado herdeiro necessário independentemente do regime de bens de seu casamento com o falecido. 3. O cônjuge herdeiro necessário é aquele que, quando da morte do autor da herança, mantinha o vínculo de casamento, não estava separado judicialmente ou não estava separado de fato há mais de 2 anos, salvo, nesta última hipótese, se comprovar que a separação de fato se deu por impossibilidade de convivência, sem culpa do cônjuge sobrevivente. 4. O pacto antenupcial que estabelece o regime de separação total somente dispõe acerca da incomunicabilidade de bens e o seu modo de administração no curso do casamento, não produzindo efeitos após a morte por inexistir no ordenamento pátrio previsão de ultratividade do regime patrimonial apta a emprestar eficácia póstuma ao regime matrimonial.

No mesmo sentido, o TJ/SP, no julgamento da Apelação Cível 1022765-36.2023.8.26.0100, embora reconheça a controvérsia doutrinária sobre o tema, manteve a negativa do registro do Pacto Antenupcial no sistema dos registros públicos diante do princípio da legalidade estrita e a vedação legal trazida pelo art. 426 do CC.

Nesse contexto de controvérsia, a reforma do CC, atualmente em tramitação no Congresso Nacional, propõe alterações no art. 426, o que se verifica a ampliar a autonomia privada e permitir a renúncia prévia à herança por meio de pacto antenupcial ou contrato de convivência, estabelecendo condições e limitações específicas para garantir a segurança jurídica e a proteção dos herdeiros. Além disso, o Relatório Final dos Trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela reforma, também propõe mudança no art. 1.829, excluindo o cônjuge da lista de herdeiros necessários.

Essa mudança representaria um avanço significativo na modernização do direito das sucessões brasileiro, adequando-o às novas realidades familiares e aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da autonomia privada, possibilitando a dissociação patrimonial entre os cônjuges em vida e após a morte.

É fundamental ressaltar que a possibilidade de renúncia ao direito de concorrência não deve ser interpretada como uma ameaça à proteção da família, mas sim como uma forma de respeitar a vontade dos cônjuges e fortalecer os vínculos familiares. Afinal, a escolha de não herdar não implica necessariamente falta de afeto ou desconsideração pelo cônjuge, mas pode refletir a vontade de preservar a autonomia patrimonial, evitar disputas sucessórias que poderiam gerar conflitos e desunião entre os herdeiros, ou ainda beneficiar outros familiares ou pessoas que o casal julga merecedoras.

A jurisprudência do STJ, em decisões como a proferida pela ministra Nancy Andrighi no REsp 992.749/MS, já demonstrou a necessidade de interpretar o art. 1.829 do CC de forma harmônica com os demais dispositivos legais e com os princípios da dignidade da pessoa humana e da livre manifestação de vontade. A ministra destacou que "não se pode ter após a morte o que não se queria em vida", reforçando a importância de respeitar a autonomia dos cônjuges em dispor sobre seu patrimônio, inclusive na sucessão.

A reforma do CC, permitindo a renúncia prévia à herança, representaria um passo importante para a construção de um direito das sucessões mais justo, moderno e alinhado com os princípios fundamentais do direito de família. A autonomia privada, como pilar essencial do direito de família, deve ser considerada e valorizada também no direito das sucessões, permitindo aos cônjuges planejar a destinação de seu patrimônio de forma livre, consciente e responsável, assegurando a segurança jurídica e a harmonia familiar.

Vanessa Martins Ferreira

VIP Vanessa Martins Ferreira

Advogada sênior na área cível no GHBP Advogados; pós-graduanda em Direito das Famílias e Sucessões pelo IBDFAM e pós-graduada em Direito Processual Civil pela FAAP. Membro da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões da OAB Campinas.

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