A inserção do stay period no direito de insolvência brasileiro
A recuperação judicial ajuda empresas em crise a renegociar dívidas e evitar falência, preservando empregos e mantendo a atividade econômica.
sexta-feira, 18 de outubro de 2024
Atualizado às 13:23
Noções iniciais
A CF/88, em seu art. 1º, IV, consagra "os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa" como um dos fundamentos da nossa república, dispositivo constitucional mais aprofundado na lei 13.874/19, que instituiu a "Declaração de Direitos de Liberdade Econômica". Daí é possível extrair a importância da atividade empresarial como motor da sociedade brasileira, dela dependendo uma série de variáveis que são capazes de ditar os rumos do país: arrecadação, empregos, bem-estar social, poder de compra, economia sólida, estabilidade política, etc. O exercício da empresa (perfil funcional), por sua vez, está definido no art. 966 do CC como sendo a atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, enquanto a titularidade da empresa (perfil subjetivo) poderá ser de pessoa natural ou pessoa jurídica.
Tratando-se de atividade empresarial, os riscos lhe são inerentes e, em graus elevados, podem comprometer a sua própria continuidade. Os fatores de risco são vários e podem se originar de uma infinidade de situações, cabendo citar, por exemplo, os problemas com clientela, condições desfavoráveis de mercado, obsolescência de processos, erros de estratégia, desastres naturais, entre outros. A assunção de tais riscos pelo empresário - embora possam ser minorados por uma boa condução da atividade por parte do profissional - o acompanhará enquanto perdurar o exercício da empresa, quando da sua liquidação/extinção.
Há casos, porém, em que se instalará uma crise econômico-financeira da qual o empresário não conseguirá sair com as próprias forças. Em tais hipóteses, ainda em função da essencialidade da atividade econômica, o próprio Estado coloca à disposição do empresário mecanismos para evitar ou mesmo superar o estado de crise, mormente por meio da renegociação de dívidas, conciliação ou mediação. Importante salientar que não são apenas os interesses do empresário que estão em jogo, já que está ele inserido em uma rede maior, uma estrutura, a qual é interligada com a participação de credores, fisco, empregados, garantidores, enfim, vários stakeholders.
A recuperação judicial e a extrajudicial estão dentre os instrumentos postos à disposição do empresário, ambas previstas e regulamentadas na lei 11.101/05 (LREF). A recuperação judicial - instituto que mais interessa ao presente texto -, se preenchidos os requisitos para o deferimento do seu processamento, coloca o empresário (que busca se soerguer) em regime jurídico diferenciado dos seus concorrentes, pois o insere ao abrigo de várias proteções idealmente capazes de cessar a deterioração de sua atividade. Essa é justamente a razão de existir da recuperação judicial, que o próprio diploma legal tratou de definir os objetivos no art. 47 da LREF.
Conceituação e efeitos do stay period no âmbito da recuperação judicial
Conforme mencionado, a recuperação de empresas objetiva superar a crise econômico-financeira, o que dependerá necessariamente da renegociação das suas obrigações inadimplidas. No entanto, não é razoável esperar que os credores renunciem espontaneamente a seus direitos, colocando-se em uma posição de desvantagem com base em mero altruísmo. Sem um ambiente adequado de debates - sustentado por mecanismos de proteção patrimonial do devedor empresário - dificilmente se poderia esperar dos credores outro agir senão a busca do seu crédito no patrimônio do devedor, especialmente diante da perspectiva de outros credores fazerem o mesmo. É necessário que o devedor possua certo poder de barganha.
No processo de recuperação judicial, destaca-se o período de blindagem judicial garantido pelo art. 6º, I-III , e § 4º, da LREF, mais comumente conhecido como stay period. Trata-se, em regra, de decorrência automática da decisão de deferimento do processamento da recuperação judicial ou da que antecipa os seus efeitos (art. 52, III; art. 6º, § 12), desde que preenchidos os requisitos legais para tanto (em especial: arts. 48 e 51). Sintetizando os seus efeitos: no tocante a créditos sujeitos aos efeitos da recuperação judicial (art. 49 e Tema Repetitivo 1051, STJ), e observadas as exceções legais, haverá a: (a) suspensão de ações e execuções contra o devedor; (b) suspensão do curso da prescrição das obrigações; e (c) proibição de atos que restrinjam o exercício da posse, pelo devedor, de seus bens.
As implicações do stay period podem ser deduzidas do próprio texto legal. Haverá para o devedor um "fôlego" momentâneo da legítima perseguição dos credores visando à excussão de garantias, penhora de bens e valores, expropriação, etc. Tal escudo legal, em teoria, possibilita ao empresário lidar mais tranquilamente para aplicar as estratégias por ele traçadas para superar a crise (passageira, em teoria) enfrentada, isso enquanto busca cumprir as obrigações materiais e processuais assumidas com o pedido de recuperação judicial e tenta convencer os seus credores de que a atividade empresária ainda é viável.
Além disso, conforme bem destacado por Marlon Tomazette, o período de stay também opera em favor dos credores, garantindo a paridade de tratamento entre eles:
"Ademais, a suspensão também impedirá a quebra da igualdade entre os credores, pois, se não houvesse suspensão, alguns receberiam o valor do seu crédito e outros não, sem se levar em conta a prioridade dada a cada credor. Com a suspensão, impede-se esse tratamento desigual e passa a ser possível formar uma massa de credores, que se manifestarão de forma conjunta sobre o plano de recuperação judicial."
A vigência do stay period é relevantíssima inclusive em relação a obrigações que, em tese, sequer estão sujeitas aos efeitos da recuperação judicial (casos conhecidos como de "extraconcursalidade", embora não haja propriamente um concurso de credores na recuperação judicial). Diferentemente do juízo universal da falência, o legislador não previu tal força atrativa para o juízo da recuperação judicial concentrar sob sua competência todas as ações que versarem sobre interesses do devedor (vis attractiva).
Porquanto não haverá suspensão de ações e execuções baseadas em créditos não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial, é previsível a prática de atos de restrição patrimonial em referidos feitos. Uma vez que o devedor busca soerguer-se, necessita contar com o estabelecimento empresarial para continuar a atividade e gerar as riquezas necessárias para demonstrar aos credores que o cumprimento do plano de recuperação é uma perspectiva com bases sólidas. Certamente, porém, que a indisponibilidade de certos bens poderá comprometer e até mesmo impossibilitar o soerguimento da empresa, razão pela qual a legislação de regência previu mecanismos para afastar o perigo e manter o devedor na posse de bens considerados de capital essenciais à atividade empresária.
É o caso do art. 6º, § 7º-A, da LREF, que assegura"a competência do juízo da recuperação judicial", durante o stay period, "para determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial", no caso dos créditos referidos nos §§ 3º e 4º do art. 49 (não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial). Em casos tais, a essencialidade do bem deve ser avaliada a cada caso concreto conforme as suas circunstâncias, e isso diante da concreta perspectiva de retirada da esfera de disponibilidade do devedor em recuperação, com atenção aos postulados da cooperação jurisdicional (arts. 67-69, CPC). Por conseguinte, ainda que não sujeito, o credor extraconcursal possui claro interesse nas decisões do juízo da recuperação judicial sobre o stay period, já que o seu esgotamento encerra as discussões sobre bens de capital essenciais.
Clique aqui para ler a íntegra do artigo.
Denis Bairros Silva
Técnico Judiciário Secretário de Juiz na Vara Regional Empresarial de Santa Rosa/RS; Pós-graduado em Direito Empresarial pela Verbo Jurídico.