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O livro dividido em fatias

Helder Galvão

Está em curso nesse momento, no Senado Federal, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, o Projeto de Lei nº 131/06, que altera o inciso II, do artigo 46, da Lei nº 9610/98 (Lei de Direitos Autorais).

terça-feira, 17 de julho de 2007

Atualizado em 16 de julho de 2007 14:29


O livro dividido em fatias

Helder Galvão*

Está em curso nesse momento, no Senado Federal, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, o Projeto de Lei nº 131/06, que altera o inciso II, do artigo 46, da Lei 9610/98 (Direitos Autorais - clique aqui).

A redação atual do referido dispositivo, fruto de discórdia entre a Associação Brasileira de Direitos Reprográficos - ABDR com as Universidades, ONG's e leitores em geral, objeto, inclusive, de longas e calorosas discussões neste rotativo, dispõe que a reprodução de obras literárias, em um só exemplar, de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro, não constitui ofensa aos direitos autorais.

O projeto de lei em curso no Senado Federal propõe que, em lugar da expressão "pequenos trechos", conste a referência "vinte e cinco por cento da obra". Em outras palavras, não violará o direito do autor quem reproduzir apenas vinte e cinco por cento de uma obra literária.

Dessa forma, o legislador brasileiro mantém o rol taxativo previsto no artigo 46, em dissonância com a legislação de direitos do autor de diversos países1. Perde assim a oportunidade de equacionar o conflito entre o interesse público, de livre acesso à informação, e o interesse privado, contra a reprodução não autorizada das obras.

A definição de uma porcentagem, através da permissão de copiar um quarto da obra literária, sem a autorização do detentor do direito patrimonial, é tecnicamente deficiente e não resolve a controvérsia.

Com efeito, em vez de se manter a tipificação taxativa prevista naquele dispositivo, o mais eficiente, segundo as tendências atuais do direito civil, seria redefini-la em função de princípios interpretativos, dando-se lugar a cláusulas gerais, abrangentes e abertas2 e transferindo ao operador do direito a melhor solução para o caso concreto, ou seja, se a cópia de grande parte ou de apenas um capítulo de um romance de Jorge Amado, por exemplo, constituiria reprodução indevida com a respectiva sanção cível e penal.

Assim, caberia ao operador do direito, na análise do caso concreto, utilizar-se de critérios objetivos, tais como, averiguar se a fração copiada não corresponde a essência da obra, se ela não interferiria na venda regular e, consequentemente, na aferição de lucros pelo autor e, principalmente, se aquela reprodução tem caráter comercial, pois na verdade o que deve prevalecer é o caráter educacional e para fins acadêmicos3.

Observa-se também que a mudança proposta pelo projeto de lei não atenta para outro elemento importantíssimo: a participação de associações e grupos interessados na regulação dos respectivos setores e que, em conjunto, poderiam negociar e debater a promulgação das leis e outras alterações.

Não há dúvida de que o prévio debate com a sociedade, antes mesmo do vagaroso e oneroso processo legislativo, contribuiria para a busca do melhor texto normativo e a tão sonhada busca do uso adequado das obras literárias. Cite-se, nesse sentido, o trabalho realizado por ONG's e Centros de Pesquisa4 e pela própria Associação Brasileira de Propriedade Intelectual5.

Diante desse contexto, será preciso muita cautela na análise do projeto pelas Comissões no Senado. Por mais que pese a boa intenção do legislador ao propor a mudança, o atendimento das premissas acima elencadas contribuiriam, e muito, para a busca do interesse comum das partes, embora elas sejam manifestamente antagônicas.

Espero que esse simples e coloquial artigo possa contribuir para o debate, adiantando que ele está cem por cento liberado para reproduções.

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1Conforme o importante levantamento feito por AVANCINI, Helenara Braga in O Paradoxo da Sociedade da Informação e os Limites do Direito do Autor, a legislação brasileira contém uma das maiores restrições no que se diz respeito à cópia privada.

2Para TEPEDINO, Gustavo in Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil, as constituições contemporâneas e o legislador em especial utilizam-se de cláusulas gerais por estarem convencidos da sua própria incapacidade, em face da velocidade com que evolui o mundo tecnológico, para regular todas as inúmeras e multifacetadas situações nas quais o sujeito de direito está inserido. Segundo o insigne civilista, as cláusulas gerais equivalem a normas jurídicas aplicáveis direta e imediatamente nos casos concretos, não sendo apenas cláusulas de intenção.

3Sobre critérios para uso adequado de obras ver CARVALHO, Carlos Eduardo Neves de. A Doutrina do Fair Use nos EUA, In Revista da ABPI - Associação Brasileira da Propriedade Intelectual n.77, jul/ago. 2005. p. 50-56.

4Vide os trabalhos realizados e apoiados pelo Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Nesse mesmo sentido, convém destacar as palavras do autoralista português José de Oliveira Ascensão que, em recente encontro promovido pelos alunos de Direito da Puc-Rio, enalteceu as propostas destes movimentos, as quais, segundo ele, acabam por promover os direitos do autor no cenário internacional.

5A ABPI encaminhou em dezembro de 2005 à Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados proposta de mudança do artigo 46 através da resolução nº 67 e que hoje se encontra em análise.

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* Advogado do escritório Candido de Oliveira - Advogados

 

 

 

 

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