Empatia e julgamento na era da internet: Lições de um caso aéreo
Incidente em voo desencadeou debate a respeito de direitos individuais, empatia e a amplificação de julgamentos via redes sociais.
sexta-feira, 6 de dezembro de 2024
Atualizado às 19:12
Nos últimos dias, um incidente ocorrido em um voo ganhou grande repercussão nas redes sociais. A situação, envolvendo a recusa de uma passageira em ceder seu lugar a uma criança, gerou debates acalorados.
O caso tem elementos particulares, mas levanta questões amplas e importantes sobre como interagimos em sociedade, como a internet amplifica vozes e pode promover desinformação e julgamentos coletivos, muitas vezes influenciados pelo chamado "efeito manada".
1. O Contexto: Direito vs. empatia
No incidente, a mãe teria solicitado a uma passageira a troca de lugar para a filha ficar na janela, e a mulher recusou. Inicialmente foi dito que a recusa foi filmada pela mãe, mas, de acordo com matéria publicada pelo G1, a filmagem foi realizada por terceira pessoa. Porém, esse não é o fator principal em questão.
Muitos elogiaram a postura firme da passageira em manter seu assento, o que é legítimo, e muitos outros não hesitaram em criticar a mãe pela falta de educação da criança, questionando sua preparação para educar e lidar com a própria filha, bem como pela desnecessária exposição pública da passageira.
O ponto central, no entanto, não é julgar a atitude de qualquer uma das partes envolvidas, mas sim refletir sobre as lições desse episódio.
2. Autismo, transtornos e crises de rigidez comportamental e hiperfoco
Um aspecto importante que nem sempre é levado em consideração é a possibilidade de a criança em questão ser diagnosticada com TEA - Transtorno do Espectro Autista ou algum outro transtorno neuropsicológico. Aqui, nossa ponderação independe se neste caso concreto estamos diante ou não de uma criança autista, mas sim que em quaisquer situações similares poderemos estar lidando com uma.
Crianças, e mesmo adultos, autistas, portadores de TEA frequentemente apresentam, como consequência de sua neurodivergência, a chamada rigidez comportamental, o que significa que mudanças inesperadas de padrão, ou mesmo apenas determinadas situações específicas, podem desencadear crises e descontrole emocional intenso.
Mesmo com todo o planejamento (ex.: a reserva de assentos específicos), antecipação e explicação prévia da situação nova, dando previsibilidade ao autista (algo que costuma ajudar bastante), ainda assim uma crise ou desorganização emocional poderá ocorrer inesperadamente.
É importante diferenciar casos de má educação de filhos daqueles envolvendo crianças com necessidades especiais. Mães e pais permissivos, incapazes de impor limites na educação de seus filhos, podem ser criticados. Contudo, as mães (e pais) de crianças atípicas (autistas ou portadoras de outros transtornos) enfrentam desafios diários imensos, que muitas vezes as levam ao esgotamento físico e emocional. Essas mães, assim como as crianças, precisam de solidariedade, acolhimento e, acima de tudo, empatia e compreensão por parte da sociedade como um todo.
Uma questão é se somos qualificados para saber, em situações como esta, instantaneamente, se se trata de má educação ou de algum transtorno. Logo, não basta reprovar a "falta de educação" ou a "não reserva do lugar desejado". A vida social demanda compreensão, bom senso e empatia das pessoas ao redor. Algumas, ao reconhecerem o contexto específico, podem optar por ajudar sem sentir que estão sendo forçadas ou obrigadas a isso.
3. O papel da internet no julgamento social
Um erro crucial no caso em questão foi a decisão da mãe (ou de terceiro) de expor a passageira filmando e compartilhando o vídeo nas redes sociais. A internet, que muitas vezes amplifica vozes minoritárias e levanta pautas importantes, também pode ser um palco de julgamentos implacáveis. Essa atitude, desnecessária, além de ser uma violação de privacidade, cria um precedente extremamente perigoso.
A repercussão desse caso evidencia um fenômeno preocupante: o julgamento instantâneo, no qual internautas se posicionam de forma binária, escolhendo lados e ignorando as nuances das situações específicas, transformando pessoas em heróis e vilões.
Importante lembrar que a Constituição Federal prevê o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório como garantias fundamentais. Essas proteções, embora sejam obrigações do Estado, também servem como valores norteadores para a convivência particular, prevenindo injustiças e, principalmente, conclusões precipitadas como verdades absolutas.
4. A delicada balança entre Direito e empatia
Embora a passageira estivesse plenamente dentro do seu direito ao recusar a troca de assento (independentemente de a criança ter alguma questão específica ou não), e a mãe (ou terceiro) tenha errado ao expor a situação publicamente, o debate precisa ir além dessas constatações óbvias.
O que nos torna humanos é a capacidade de compreender o sofrimento alheio e, quando possível, aliviar esse sofrimento, na medida do possível. Não se trata de obrigar ninguém a ceder seu lugar, muito menos reprovar ou enaltecer quem eventualmente prefira não trocar de lugar numa situação como esta, mas sim de falarmos sobre empatia, bom senso ou até uma certa dose de compaixão.
Há atitudes simples que podem evitar situações conflituosas, como a de um passageiro que gentilmente, e muitas vezes mesmo sem ser solicitado, troca de lugar para ajudar alguma pessoa. Isso contribui para evitar desdobramentos mais graves e criar um ambiente de cooperação e fraternidade coletiva.
5. Conclusão
Este caso não é apenas sobre o que ocorreu em um avião, mas sobre como devemos lidar com direitos individuais, empatia, exposição pública de situações privadas e julgamentos instantâneos promovidos pelo meio virtual.
Enfim, deixamos alguns pontos fundamentais para reflexão:
A) A reserva de assentos é um direito assegurado, e ninguém pode ser obrigado a ceder o lugar.
B) Quem filmou e tentou constranger o outro errou, violou a privacidade alheia e está sujeito a pedido de indenização por danos na esfera cível.
C) Se a responsável pela criança pedisse ajuda a outras pessoas, provavelmente alguém se ofereceria para trocar de lugar. A comunicação clara e educada, sem imposições, é capaz de despertar boa vontade e solidariedade, principalmente em situações de urgência.
D) Julgar a educação dos filhos de outros sem conhecer bem a realidade da família é temerário e altamente injusto. Contextos como o TEA ou outras condições atípicas requerem uma análise cuidadosa, sensível e, principalmente, livre de preconceitos.
E) Precisamos ter empatia e humanidade com as pessoas que precisam de ajuda.
F) A internet não deve ser usada como um tribunal arbitrário, fonte de linchamentos virtuais, o que pode gerar danos desproporcionais e irreparáveis para todos os envolvidos.
Por fim, o que mais nos preocupa é a possibilidade de uma interpretação equivocada dos fatos acabar viralizando pelo país.
Em poucos dias, uma pessoa passou de 70 mil para mais de 1,7 milhão de seguidores, está sendo chamada de "Diva", "Heroína", etc., e o que ela fez para isso? Apenas se recusou a ceder o seu lugar em um avião e, ao ser hostilizada, manteve sua decisão.
É importante destacar novamente que não trocar de lugar é, de fato, um direito, e resistir a uma pressão injusta é algo absolutamente legítimo e digno de elogios. No entanto, causa preocupação que algumas pessoas possam, com base neste caso, entender ou interpretar que recusar ajudar um desconhecido seja uma atitude sempre recomendável, louvável ou até mesmo socialmente considerada heroica.
Se essa mensagem errônea for internalizada coletivamente, o episódio poderá representar um prejuízo não apenas para inúmeras crianças atípicas e seus pais, mas também para o próprio espírito de fraternidade, compreensão e empatia que deve prevalecer em uma sociedade saudável, solidária e humana.
A lição maior que tiramos deste caso é a necessidade de equilíbrio entre a afirmação de direitos e a disposição de abrir mão em situações especiais.
Respeitar o próximo é essencial para evitar conflitos. Em situações especiais, gestos de amor são bem-vindos para construir pontes e criar uma cultura de solidariedade.
Em um mundo hiperconectado, onde julgamentos rápidos e polarizados são incentivados nas redes sociais, é fundamental fazermos a análise serena dos fatos divulgados. Fundamental, igualmente, é promover valores como o respeito mútuo, sensibilidade, empatia e bondade, o que contribui para nos tornar uma sociedade mais justa, saudável e fraterna.