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Protocolo para julgamento com perspectiva racial: Reflexões e avanços em prol da equidade étnico-racial

A adoção de protocolos judiciais com perspectiva racial fortalece a luta contra o racismo estrutural, promovendo equidade, justiça inclusiva e reparatória.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Atualizado em 23 de dezembro de 2024 14:06

Os avanços em prol de maior equidade étnico-racial decorrem da luta e da mobilização dos movimentos negros por reconhecimento de direitos e liberdade, historicamente usurpados da população afrodescendente. São esforços coletivos voltados ao aperfeiçoamento das instituições sociais e do sistema de Justiça, visando ampliar os mecanismos de enfrentamento ao racismo e todas as suas formas de violação.

Em nível internacional e nacional, a evolução dos instrumentos normativos estampa o compromisso estatal de combater e corrigir as desigualdades raciais, a exemplo da convenção sobre eliminação de todas as formas de discriminação racial - decreto 65.810/69, convenção 111 da OIT - Organização Internacional do Trabalho sobre discriminação em matéria de emprego e profissão, convenção interamericana contra o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância - decreto 10.932/22, estatuto da igualdade racial - lei 12.288/10, leis de cotas no ensino superior - lei 12.711/12 e Agenda 2030 da ONU1, entre outros.

No plano constitucional, o compromisso do Estado brasileiro decorre expressamente da CF/88, que dentre seus princípios e objetivos fundamentais, alçou a dignidade da pessoa humana (art. 1º), a igualdade e a não-discriminação (art. 5º, caput e 3º, IV) como baluartes interpretativos e inspiradores do ordenamento e do sistema judicial.

Tais preceitos garantem o acesso pleno à Justiça e à igualdade de oportunidades, independentemente de raça, além do enfrentamento ao racismo (art. 5º, XLII, CF/88) como um dever do Estado e de todos os indivíduos. Afinal, não é possível conceber a efetiva busca pela igualdade sem considerar a raça enquanto elemento social que forjou a sociedade brasileira, assentando toda a estrutura econômica, política e jurídica, desde os primórdios escravista; e que continuam a perpetuar múltiplas desigualdades até os dias atuais.

Nesse contexto, o papel dos agentes do sistema de Justiça é essencial para o desmantelamento de estruturas de violência e de reprodução da opressão, cuja atuação deve orientar-se por um Judiciário mais plural, democrático, inclusivo e legítimo simbolicamente aos interesses coletivos da sociedade e da população afrodescendente.

Com esse propósito, o CNJ adotou uma série de medidas e programas voltados à eliminação da desigualdade e do racismo estrutural nos ramos judiciais, a exemplo do pacto nacional do judiciário pela equidade racial e do protocolo com perspectiva racial nos julgamentos - resolução 598, de 22/11/24, cuja observância é obrigatória por todo o Judiciário brasileiro.

Trata-se de debate fundamental para a sociedade, em favor da atuação estatal antidiscriminatória, do aperfeiçoamento das instituições e do compromisso com a promoção dos direitos fundamentais. No presente ensaio, detalharemos algumas reflexões sobre o protocolo para o combate à discriminação e os avanços para uma justiça reparatória no sistema brasileiro.

Como ponto de partida, cumpre destacar que, é indissociável à noção de Justiça a efetivação dos conteúdos relativos a direitos humanos, gênero, raça e etnia de forma interseccional. Afinal, não há como avançarmos para uma sociedade que se pretenda livre, justa e solidária (art. 3º, I, CF/88), sem erradicar as primitivas formas de violações de direitos, que continuam a perpetrar exclusões de grupos vulnerabilizados, direta ou indiretamente.

Diante de tal constatação, torna-se imperioso que os "sistemas políticos e jurídicos reflitam adequadamente a diversidade da sociedade"2, pois sendo a formação social e política do Brasil marcada por "processos históricos e culturais de discriminação contra a população afrodescendente"3,  somente o reconhecimento e a real consideração das diferenças étnico-raciais nos permitirão avançar concretamente para a dimensão de uma igualdade simbólica (ou por reconhecimento).

Isto é, a ausência de diversidade em postos de poder tanto favorece a sub-representação e a marginalização de grupos vulnerabilizados, como propicia a reprodução dos mesmos estereótipos em decisões judiciais e processos deliberativos, em que a própria atividade hermenêutica é reprodutora de preconceitos de raça e cor em tribunais brasileiros4.

Com efeito, não se pode mais tolerar que as formas de opressões tão vívidas no mundo dos fatos continuem a ser reproduzidas no mundo dos autos, sob o argumento falacioso de aparente neutralidade do Direito. Em verdade, argumentos que carreiam a suposta tese de controle subjetivo de decisões judiciais a partir dos protocolos negam a responsabilidade histórica do Estado em reprimir violências e afrontam a própria ordem constitucional.

Em outra oportunidade, ponderamos sobre o Direito e o contexto político como mecanismos reprodutores da opressão, que ora reproduzimos:

O debate acerca da interseccionalidade assume relevância como meio de ruptura da narrativa dominante, que invisibiliza as formas de opressão social e que vê no direito um instrumento adicional para normalizar tais políticas de supressão e de violências cotidianas. [...]

Afinal, o discurso de democracia racial ou mito da universalidade carece de real efetividade, pois a formação da estrutura social, cultural e política é essencialmente racista e vitalmente ameaçadora para negros e negras. Um país com mais de 300 anos de escravidão só sustenta esse modelo a partir de uma sociedade conivente e tolerante com a opressão e seus mecanismos bem definidos - física, social, econômica, política - e dispersos na estrutura da sociedade.5

Em verdade, não se pretende o controle subjetivo de decisões, todavia, não há como negar a pretensão dos protocolos em enfatizar perspectivas e lentes de raciocínio sobre os fatos em análise, a partir dos critérios de raça, de classe e de gênero.

No mesmo sentido, SEVERO refere que não "se trata então, de incentivar o subjetivismo, mas de contestá-lo."; afinal, devem prevalecer os "compromissos que o Direito assume (sem reconhecer que o faz), para então aplicar as regras do jogo com menos ingenuidade, tensionando essa estrutura social opressiva."6

Portanto, a atuação jurisdicional é primordial não só para impedir a reprodução de novas opressões, mas, especialmente, para concretizar "um novo paradigma constitucional de enfrentamento ao racismo"; e as diretrizes do protocolo com perspectiva racial vêm ao encontro estratégico desta finalidade.

Nesse viés, dentre os diversos objetivos a que se propõe a resolução 598 de 2024 - CNJ, podemos elencar: a) o aprimoramento do tratamento às(aos) jurisdicionadas(os), cuja realidade difere daquela dos julgadores; b) o incentivo à auto-reflexão e escuta qualificada das(dos) jurisdicionadas(os); c) a consideração com igual relevância e peso de todos os relatos do processo na conformação do entendimento; d) o despertar a percepção de julgadores(as) para as condições materiais e simbólicas que incidem sobre os fatos e conflitos em análise; e) expandir os parâmetros normativos das decisões judiciais, com o recurso à legislações internas e internacionais de promoção da equidade racial; f) ampliar a perspectiva de julgadores(as) nos processos sob a sua responsabilidade, acerca do dever do Estado de garantir direitos e erradicar todas as formas de violações; entre outros7.

Nota-se que tais iniciativas possibilitam a intervenção ampliada em políticas judiciárias sobre igualdade racial, prevendo estratégias de aplicação e implementação do protocolo em cinco partes, sendo: i) A introdução, que contém o aparato principiológico e normativo para reprimenda ao racismo e as suas formas de violação; ii) parte conceitual, com as noções teóricas e doutrinárias sobre antidiscriminação, racismo estrutural e interseccionalidades; iii) diretrizes práticas e guia para magistrados e magistradas nas diferentes etapas processuais; iv) questões raciais por ramos do Direito e seus impactos específicos nas searas de família, infância e juventude, criminal, eleitoral, trabalhista e outras; v) estratégias para incorporação das diretrizes, com formação continuada da magistratura e todo o corpo funcional, monitoramento contínuo e supervisão correicional de padrões de discriminação.

Diante das considerações, a materialização do protocolo representa além da construção coletiva do grupo de trabalho, com magistrados e diversos especialistas na temática, também um contributo para a transformação institucional e o fortalecimento de política judiciária atenta aos marcadores sociais de diferença, fruto de desigualdades históricas em desfavor da população negra.

Por derradeiro, com a implementação do protocolo, espera-se que haja impactos significativos na condução dos feitos judiciais e dos processos decisórios para reduzir vieses de discriminação, sejam conscientes ou aparentemente neutros, mas que importam em desrespeitos e violações desproporcionais e injustas, além da reprodução dos estigmas construídos socialmente em detrimento de grupos racializados.

Com efeito, a construção de mecanismos abordando a perspectiva racial traz diversos benefícios em diversas ordens, pois promovem uma comunicação mais inclusiva, levantamento de dados e estatísticas para avaliação e diagnóstico da atividade judicante, bem como para a formulação de políticas na matéria e contribuir para um Brasil mais justo.


1 Agenda 2030 das Nações Unidas - ODS - Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16: "promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis". Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/16. Acesso em: 17/12/24.

2 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Resolução 598, de 22/11/24. Diário da Justiça eletrônico [do] CNJ, Brasília, DF, 290/24, de 25/11/24, p. 18.

3 BARROSO, Luís Roberto; OSORIO, Aline. "Sabe com quem está falando?": Notas sobre o princípio da igualdade no Brasil contemporâneo. Revista Direito e Práxis, vol. 7, 13, 2016, pp. 204-232. Disponível em https://www.redalyc.org/pdf/3509/350944882008.pdf. Acesso em 18/12/24.

4 A respeito, confira o texto em referência: ENÉAS, Iago de Oliveira; ESTRELA, Laís Brenda Soares de Brito; SANTOS, Maiana Pires de Almeida; SANTOS, Sarah Beatriz Mota dos. O Judiciário como fonte reprodutora do racismo: Uma análise do processo hermenêutico nas decisões judiciais. Língu@ Nostr@, Vitória da Conquista, v. 8, n. 2, p. 38 - 54, jul/dez. 2021.

5 LEÃO, Semírames de Cássia Lopes. Desigualdade de Gênero e Raça: Questões Centrais e Discriminações. In: ALMEIDA, Dione; SANTANA, Fabio; FERNANDES, Felipe; et al (org.). Advogando sob as Lentes de Gênero e Raça. São Paulo: Mizuno, 2024.

6 SEVERO, Valdete Souto. Por que protocolos para julgamento com perspectiva racial e de gênero? Diálogo necessário. In: Revista Consultor Jurídico, dez. 2024. P. 5

7 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2024, op. Cit., p. 12.

8 ALMEIDA, Dione. Desigualdade de Gênero e Raça no Direito do Trabalho e a Necessidade de um Direito Antidiscriminatório. Associação Brasileira da Advocacia Trabalhista. 2024. Disponível em: https://abrat.adv.br/textos/desigualdade-de-genero-e-raca-no-direito-do-trabalho-e-a-necessidade-de-um-direito-antidiscriminatorio.pdf

9 CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011. 

10 COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.

11 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Resolução 598, de 22/11/24. Diário da Justiça eletrônico [do] CNJ, Brasília, DF, 290/24, de 25/11/24, p. 2-193. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original121813202411266745bc8528359.pdf

12 ______. Resolução 490, de 8/3/23. Diário da Justiça eletrônico [do] CNJ, Brasília, DF, 48/23, de 13/3/23, p. 2-4. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/compilado190722202306076480d56a63031.pdf

13 CORDEIRO, Débora Cristina da Cruz. LEÃO, Semírames de Cássia Lopes. Subalternidade e desvalorização da trabalhadora doméstica brasileira: uma leitura sobre raça, gênero e classe. In: ANABUKI, Luísa Nunes de Castro; CARDOSO, Lys Sobral; (org). Escravidão na interseccionalidade de gênero e raça: Um enfrentamento necessário. Brasília: MPT, 2023. P. 393 - 418.

14 LEÃO, Semírames de Cássia Lopes. Desigualdade de Gênero e Raça: Questões Centrais e Discriminações. In: ALMEIDA, Dione; SANTANA, Fabio; FERNANDES, Felipe; et al (org.). Advogando sob as Lentes de Gênero e Raça. São Paulo: Mizuno, 2024. P. 53 - 60.

15 SEVERI, Fabiana. Julgamentos sob perspectiva: análise sobre armadilhas citadas por Lenio Streck. InRevista Consultor Jurídico, dez. 2024. 

16 STRECK, Lenio Luiz. As armadilhas dos julgamentos sob 'perspectiva' propostas pelo CNJ. InRevista Consultor Jurídico, dez. 2024.

Semírames de Cássia Lopes Leão

Semírames de Cássia Lopes Leão

Mestra em Direitos Humanos pela UFPA. Especialista em Direito e Processo do Trabalho (Unama). Especialista em Direito Previdenciário (FBB). Membro da Escola da Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas (ABRAT); do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP); e da Seção de Jovens Juristas da Sociedade Internacional de Direito do Trabalho e da Seguridade Social (SIDTSS). Docente e Pesquisadora.

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