Elas ficaram. E lideraram
Mulheres que transformaram o luto em liderança e desafiaram o preconceito de sua época
quinta-feira, 27 de março de 2025
Atualizado em 26 de março de 2025 16:43
O mês de março, tanto quanto uma ocasião simbólica, é um convite à escuta e ao reconhecimento. Neste artigo, queremos contar histórias de mulheres que, ao se tornarem viúvas ou por serem órfãs, assumiram não só o vazio deixado pela ausência, mas também a liderança de negócios, famílias e legados. Histórias que inspiram pelo heroísmo e pela firmeza silenciosa. Neste recorte, destacamos figuras que, enfrentando o preconceito estrutural de sua época, romperam com o papel de acompanhantes e se tornaram protagonistas de sua própria história.
A ideia surgiu de conversas entre nós - Cristiane Príscila Doratiotto, advogada e integrante da OAB de Guarulhos, e Solano de Camargo, professor de Direito - sobre o que significa ocupar o espaço de decisão quando ele nunca foi oferecido.
Talvez essas histórias, que atravessam continentes e séculos, ecoem na trajetória de tantas mulheres advogadas brasileiras que, todos os dias, enfrentam seus próprios lutos, seus próprios obstáculos, e ainda assim seguem em frente.
Quando só havia espaço na ausência dos homens
Durante séculos, o poder formal esteve reservado aos homens. O direito e a sociedade, estruturados sob uma lógica patriarcal, limitaram sistematicamente a autonomia feminina.
Os regimes jurídicos limitavam a capacidade civil da mulher casada, impedindo-a de administrar bens, assinar contratos ou tomar decisões financeiras sem o aval do marido ou de um tutor legal.
A única brecha institucional para uma mulher administrar, negociar ou comandar seu próprio destino vinha com a viuvez ou a orfandade.
No entanto, mesmo sob essa concessão, enfrentavam resistência: suas decisões eram questionadas, seus negócios subestimados e boicotados, e sua capacidade de liderança posta à prova a cada passo, na constante tentativa de reverter seu lugar.
É justamente nesse cenário que ganham força as histórias que aqui reunimos: mulheres que assumiram negócios e destinos, não porque lhes foi permitido, mas pelo fato de não haver quem pudesse impedi-las.
O contexto jurídico e social das épocas em que essas mulheres viveram reforça o peso de suas conquistas. Essas mulheres não foram apenas administradoras de heranças ou viúvas que mantiveram os negócios dos maridos. Foram estrategistas, inovadoras e pioneiras, desafiando um sistema que, mesmo sem proibi-las expressamente, fazia de tudo para desencorajá-las.
Sete mulheres que desafiaram o tempo
- Barbe-Nicole Ponsardin, a Viúva ou Madame Clicquot (1777-1866) - França
Aos 27 anos, viúva e mãe, Barbe-Nicole herdou a vinícola do marido. Contra todas as expectativas da época, em vez de vender ou repassar a empresa, decidiu administrá-la ela mesma, criando métodos revolucionários de produção de champanhe, assim, internacionalizou sua marca e tornou-se pioneira no marketing de bebidas.
Sob seu comando, a Maison Veuve Clicquot se transformou num império, ainda hoje símbolo de sabor e sofisticação, tornando-se uma das marcas de champanhe mais renomadas do mundo.
Seu lema era: "Apenas uma qualidade, a melhor", refletindo seu compromisso com a excelência.
Seu legado vai além do champanhe, demonstrando como a determinação e a inovação podem romper barreiras institucionais, sendo lembrada até hoje como uma das primeiras grandes empresárias da história, desafiando normas sociais e transformando o champanhe em um símbolo de sofisticação global.
- Angélica Zapata - Argentina
A matriarca da família, Angélica Zapata, foi uma educadora dedicada e diretora de uma escola rural local, que acreditava na importância da educação pública de qualidade e na luta contra o trabalho infantil.
Ela transmitiu uma cultura de estudo, trabalho duro e reflexão a gerações da família Catena e, embora tenha falecido jovem, deixou como legado sua visão sobre o potencial dos recursos naturais da Argentina e a convicção de que as pessoas estavam destinadas à grandeza.
Após a morte do marido, ao lado de seu filho Nicolás, teve um papel fundamental no desenvolvimento da indústria vinícola argentina, particularmente conhecida por seus vinhos Malbec, tendo contribuído significativamente para colocar este tipo de uva no mapa mundial dos vinhos de qualidade e consolidando a vinícola Catena Zapata como uma das mais renomadas da América Latina.
Atualmente, sua neta Laura administra os negócios da família e fundou o Instituto Catena, dando continuidade ao legado de seus avós que dão nome à vinícola.
- Eufrásia Teixeira Leite (1850-1930) - Brasil
Nascida no Rio de Janeiro, em uma família rica que acumulou fortuna com o ciclo do café .Órfã ainda jovem, Eufrásia decidiu não se casar para manter a liberdade de administrar a herança recebida.
Mudou-se para a Europa, estudou finanças em Paris, investiu na Bolsa, multiplicou sua fortuna com inteligência e discrição, tornando-se uma das primeiras mulheres brasileiras a ter atuação financeira internacional autônoma.
Ao morrer, possuía investimentos em cerca de 16 países e destinou seus bens a instituições de caridade de sua cidade natal - fazendo da emancipação feminina seu maior legado.
Eufrásia, ao escolher permanecer solteira para gerir seus negócios, questionou um modelo jurídico que atrelava a mulher ao casamento como forma de proteção patrimonial. Sua trajetória antecipa debates que só ganhariam força na legislação brasileira décadas depois, como o direito das mulheres à livre administração de seus bens e investimentos.
- Sarah Breedlove, a Madame C.J. Walker (1867-1919) - Estados Unidos
O sucesso de Madame C.J. Walker se deu em um contexto jurídico de segregação racial e de restrições severas à autonomia econômica de mulheres negras nos Estados Unidos.
Filha de ex-escravizados e viúva ainda jovem, criou uma linha de cosméticos voltada para mulheres negras - um público negligenciado à época, tornando-se um marco em inovação.
Foi empresária, filantropa e ativista, reconhecida como a primeira mulher negra milionária nos Estados Unidos, além disso, criou empregos e abriu escolas de capacitação.
Sua trajetória mescla o enfrentamento ao racismo, ao machismo e à pobreza, consolidando-a como um símbolo do empreendedorismo feminino.
- Gabrielle Bonheur Chanel (1883-1971) - França
Chanel nasceu em uma família humilde e enfrentou uma infância desafiadora, sendo enviada para um orfanato após a morte de sua mãe. Nesse ambiente austero, aprendeu costura e desenvolveu uma resiliência que seria fundamental em sua trajetória futura.
Saindo do orfanato, trabalhou inicialmente como costureira e cantora de cabaré, onde conquistou o apelido "Coco" e começou a tecer as primeiras redes que a levariam ao mundo da moda. Revolucionária no universo fashion, Chanel transformou a moda feminina ao criar peças que libertaram as mulheres dos espartilhos tradicionais, propondo um estilo mais confortável e funcional.
Fundou sua primeira loja de chapéus em Paris e rapidamente expandiu seu império, criando um novo conceito de elegância que valorizava a simplicidade e o movimento. Seu trabalho não foi apenas estético, mas profundamente político, representando uma forma de emancipação feminina através da roupa, questionando padrões sociais e propondo uma nova imagem de mulher independente.
Apesar das controvérsias em sua vida, especialmente durante a Segunda Guerra Mundial, Chanel deixou um legado indelével no mundo da moda e da cultura. Seu perfume Chanel Nº 5, tornou-se um ícone mundial, assim como seus ternos e vestidos que redefiniriam o guarda-roupa feminino no século XX.
De uma menina de orfanato a uma das mais influentes estilistas e empresárias de todos os tempos, Coco Chanel personificou a capacidade de transformar limitações em oportunidades, tornando-se um ícone de superação pessoal.
- Rachel Sassoon Beer (1858-1927) - Inglaterra
Após a doença do marido, tornou-se editora-chefe e proprietária do The Observer e do Sunday Times. Mulher, judia convertida ao cristianismo e jornalista num tempo em que isso era quase um paradoxo, Rachel liderou a imprensa britânica em momentos de crise, publicando denúncias e sustentando uma linha editorial independente.
Em uma época que a imprensa era um reduto masculino, onde mulheres dificilmente ocupavam cargos de decisão, Rachel Beer não só rompeu essa barreira, mas fez da sua liderança um instrumento de enfrentamento ao preconceito e à censura.
- Helena Rubinstein (1872-1965) - Polônia- Austrália-Londres-França-EUA
Imigrante judia e empreendedora, criou um império global de cosméticos com base em ciência, marketing e uma profunda compreensão das necessidades femininas.
Ela revolucionou a indústria de beleza ao introduzir conceitos inovadores como classificação da pele por tipos (seca, oleosa e mista), permitindo produtos mais personalizados e embalagens sofisticadas, tornando os cosméticos, artigos de luxo.
Numa época em que as mulheres não podiam obter empréstimos bancários, teve que investir o seu próprio capital para abrir seu primeiro salão em Londres.
Além do sucesso empresarial, também foi grande filantropa, criando uma fundação para arrecadar fundos para tratamentos médicos e pesquisas e deixou um império cosmético avaliado em milhões de dólares.
Viúva em um momento chave de sua trajetória, não apenas manteve o negócio - expandiu-o, desafiando padrões de beleza e as fronteiras da indústria.
Hoje, elas também ficam - e lideram
As histórias dessas mulheres ecoam nos passos de tantas outras que hoje, no Brasil, enfrentam perdas, lutos, rupturas e mesmo assim permanecem.
A advocacia está repleta de exemplos. Mulheres que assumem o comando de escritórios, que sustentam suas famílias, que continuam seus estudos, que não param - não porque não sofrem, mas porque prosseguem, apesar de tudo.
Há histórias de mulheres que transformaram tragédias pessoais em motores de ação comunitária, ou que usaram a dor como impulso para se tornarem referências em seus campos.
O protagonismo feminino se constrói nas rotinas silenciosas, nos processos enfrentados, nas causas defendidas. Essa luta diária, silenciosa e persistente, é a continuidade da resistência histórica dessas mulheres que ficaram e lideraram.
É uma construção diária, sustentada por decisões corajosas e pelo enfrentamento de desafios estruturais. Cada mulher advogada que assume um caso espinhoso, que sustenta um argumento inovador, que se torna referência em sua área, está escrevendo um novo capítulo nessa história de resistência e transformação.
Que março não seja apenas um mês
Essas histórias nos lembram que muitas mulheres só puderam liderar quando o mundo parou de tentar impedi-las.
Que suas trajetórias sejam lembradas não como exceções, mas como avisos: o que tantas conquistaram com dor, outras precisam conquistar com apoio.
O reconhecimento das conquistas femininas não pode ser restrito a homenagens sazonais. O Direito, enquanto instrumento de transformação social, precisa continuar evoluindo para garantir que a liderança feminina seja uma realidade consolidada, de legítima ocupação.
Que março não seja apenas um mês. Que seja um lembrete de que ainda há estruturas a derrubar, espaços a ocupar, histórias a contar. E que, ao contá-las, sigamos construindo um mundo em que liderar não seja um ato de resistência - mas de presença plena.
A presença feminina nos espaços de decisão não deve ser um reflexo da ausência masculina, mas sim uma realidade natural e incontestável.
Que a luta dessas mulheres nos inspire a continuar questionando, avançando e construindo um futuro em que liderar não seja um privilégio restrito, mas um Direito garantido pela igualdade.
Isso significa avançar em políticas públicas que incentivem o empreendedorismo feminino, combata desigualdades e promova a equidade de gênero nos espaços de poder. Significa também repensar o próprio sistema jurídico, garantindo maior representatividade feminina nas decisões que moldam o futuro da profissão.
As mulheres que lideraram no passado fizeram isso apesar das barreiras. As mulheres que lideram hoje continuam enfrentando obstáculos. O desafio para o futuro é construir uma sociedade em que essas barreiras sejam finalmente removidas.
Que março nos lembre disso. E que sigamos escrevendo essa história todos os dias.
Cristiane Príscila Doratiotto
Advogada da Lee, Brock e Camargo Advogados.
Solano de Camargo
Advogado da Lee, Brock e Camargo Advogados.




