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Assédio moral coletivo: Mecanismos jurídicos de proteção coletiva

Assédio moral coletivo no trabalho, fenômeno estrutural que compromete a saúde psíquica dos trabalhadores, afeta o ambiente organizacional e desafia os mecanismos jurídicos de proteção coletiva.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Atualizado às 13:37

1. Introdução

O ambiente de trabalho deveria ser um espaço de convivência produtiva, respeito mútuo e crescimento coletivo. No entanto, o que se observa em muitos contextos organizacionais é o surgimento de condutas abusivas que, em vez de atingir um único trabalhador, impactam coletivamente. O assédio moral coletivo representa exatamente essa configuração: a instalação de práticas sistemáticas que submetem grupos de empregados a constrangimentos, práticas discriminatórias, humilhações ou pressões que extrapolam a razoabilidade da gestão.

Essa forma de violência organizacional se desenvolve de maneira difusa, silenciosa e institucionalizada. Ao contrário do assédio individual, que pode ser mais facilmente identificado e combatido, o assédio coletivo costuma se legitimar sob o manto de metas, cultura de alta performance ou "perfil corporativo". Como consequência, os trabalhadores adoecem, silenciosamente, muitas vezes sem compreender que o problema não está em cada um, mas na estrutura que os oprime como grupo.

Este artigo busca compreender como o ordenamento jurídico brasileiro responde a esse fenômeno, que afeta diretamente direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana, a saúde, a igualdade e o trabalho em condições decentes. Também se pretende propor formas de enfrentamento prático, com foco em prevenção, responsabilização e mudança estrutural.

2. O que é assédio moral coletivo?

O assédio moral coletivo se caracteriza por ações ou omissões sistemáticas que atingem um grupo de trabalhadores de forma difusa, tornando o ambiente de trabalho psicologicamente inseguro e emocionalmente hostil. Não se trata de incidentes isolados, mas de um modelo de gestão que estimula, tolera ou institucionaliza comportamentos abusivos. São comuns a cobrança excessiva de metas, a exposição pública de falhas coletivas, a vigilância invasiva e o tratamento desigual entre setores ou equipes.

Segundo Hirigoyen (2011), o assédio moral, quando atinge grupos, "perde o caráter interindividual e passa a configurar uma forma de violência institucional, com efeitos devastadores sobre a identidade coletiva dos trabalhadores e sobre a coesão das equipes".

3. Como se manifesta nas empresas?

Exemplos reais ajudam a compreender o alcance desse tipo de prática. Em uma empresa do setor varejista, funcionários relataram que, diariamente, eram reunidos para avaliações públicas de desempenho, nas quais os setores com pior rendimento eram ridicularizados perante os demais. Em outro caso, em uma rede bancária, listas com os "piores desempenhos da semana" eram expostas em painéis no refeitório. A lógica da "motivação por humilhação" provocou afastamentos por transtornos de ansiedade, burnout e pedidos de exoneração voluntária.

Esses episódios não são pontuais: fazem parte de um padrão. São ambientes em que a cobrança se transforma em opressão e a gestão se torna uma ferramenta de desgaste emocional coletivo.

4. A legislação brasileira protege o coletivo?

Embora o ordenamento jurídico brasileiro ainda não disponha de uma lei específica que trate do assédio moral coletivo, existem dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que oferecem amparo jurídico para seu enfrentamento. A CF/88 assegura a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o direito à saúde (art. 6º) e o direito ao meio ambiente do trabalho equilibrado (art. 7º, XXII e art. 225), que são violados em situações de assédio institucionalizado.

No plano infraconstitucional, a CLT - Consolidação das Leis do Trabalho prevê a rescisão indireta do contrato de trabalho por condutas abusivas do empregador (art. 483). O CC, em seus arts. 186 e 927, ampara a responsabilidade civil por danos morais e materiais, inclusive de natureza coletiva. Já a lei da ação civil pública (lei 7.347/1985) autoriza a tutela de interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos em casos de violação ao meio ambiente do trabalho.

Esses dispositivos permitem responsabilizar empresas por práticas abusivas sistemáticas que comprometam a saúde mental coletiva dos trabalhadores, ainda que não haja identificação individual das vítimas.

5. A atuação da Justiça, do Ministério Público do Trabalho e dos Sindicatos

A jurisprudência trabalhista tem reconhecido, com maior frequência, o assédio moral coletivo como violação aos direitos fundamentais dos trabalhadores. Em decisões de TRTs, é possível identificar casos em que empresas foram condenadas por adotar métodos de gestão abusivos, mesmo quando as vítimas não foram individualizadas.

Importante citar caso concreto, tendo o TRT da 15ª região reconhecido a existência de um ambiente de trabalho marcado por práticas opressivas, metas abusivas e ausência de canais efetivos de escuta. A empresa foi condenada ao pagamento de danos morais coletivos com base na violação ao meio ambiente do trabalho.

Além do Judiciário, destaca-se o papel do MPT - Ministério Público do Trabalho, que atua em casos de assédio moral coletivo por meio de inquéritos civis, ações civis públicas e TACs - termos de ajustamento de conduta. O MPT também vem se dedicando à elaboração de notas técnicas, campanhas institucionais e recomendações a empresas e setores mais expostos ao risco de práticas abusivas organizacionais.

Os sindicatos, por sua vez, exercem função essencial na identificação precoce, negociação preventiva e denúncia estruturada dessas práticas. Como representantes legais da coletividade trabalhadora, os sindicatos têm legitimidade para propor ações coletivas, firmar cláusulas específicas em convenções e acordos coletivos de trabalho, e criar comissões paritárias de monitoramento do ambiente de trabalho. Mais do que atuar apenas na esfera judicial, os sindicatos têm o potencial de construir mecanismos de proteção contínua, funcionando como instâncias permanentes de escuta e defesa da saúde coletiva da categoria.

A ausência de protagonismo sindical em contextos de assédio moral coletivo geralmente reflete ambientes de medo, fragmentação ou esvaziamento da representatividade. Por isso, o fortalecimento da ação sindical é também uma estratégia para prevenir a institucionalização do sofrimento no ambiente de trabalho.

6. Como prevenir e reparar o assédio coletivo

A prevenção ao assédio moral coletivo exige mudança de cultura organizacional. É necessário abandonar modelos de gestão baseados na competitividade tóxica e na humilhação como instrumento de produtividade. A seguir, algumas práticas recomendadas para empresas e gestores comprometidos com a construção de ambientes saudáveis:

  • Implementação de canais de escuta ativa e proteção de denunciantes;
  • Criação de comissões internas para monitoramento das relações de trabalho;
  • Realização periódica de pesquisas de clima organizacional;
  • Inclusão de cláusulas de prevenção ao assédio em convenções e acordos coletivos;
  • Treinamento de lideranças para atuação com foco em gestão humanizada;
  • Revisão dos métodos de avaliação de desempenho e eliminação de metas abusivas.

Do ponto de vista jurídico, a reparação deve ser compreendida para além da indenização, devendo envolver medidas estruturais, como reformulação das práticas de gestão, afastamento de lideranças abusivas e reconstrução do espaço simbólico de pertencimento no ambiente de trabalho.

7. Desafios legislativos e avanços necessários

O Brasil ainda carece de uma legislação que tipifique expressamente o assédio moral coletivo. O PL 4742/01, que tramita na Câmara dos Deputados, propõe criminalizar o assédio moral no trabalho, mas seu foco recai sobre o aspecto individual da conduta. Uma legislação mais abrangente deveria contemplar elementos como: caracterização do assédio coletivo, responsabilidade da pessoa jurídica, obrigações de fazer e medidas preventivas obrigatórias.

Avançar nessa direção é essencial para garantir segurança jurídica, promover a reparação adequada das vítimas coletivas e incentivar práticas organizacionais compatíveis com os princípios constitucionais do trabalho digno, saudável e solidário.

8. Conclusão e sugestões práticas

O assédio moral coletivo representa um fenômeno complexo e profundamente danoso, que exige atenção das instituições e comprometimento das organizações. Não se trata apenas de identificar culpados, mas de compreender as estruturas que naturalizam o sofrimento coletivo como parte da lógica produtiva.

Seu enfrentamento passa pela atuação articulada do Judiciário, Ministério Público, sindicatos, empresas e sociedade civil. A construção de ambientes de trabalho mais justos e saudáveis depende da coragem para romper com práticas autoritárias e do investimento em políticas que respeitem os limites humanos da produtividade.

A seguir, algumas sugestões práticas para organizações públicas e privadas:

  • Estabeleça canais formais de escuta e resposta rápida a denúncias;
  • Adote indicadores psicossociais como critério de avaliação da gestão;
  • Valorize a negociação coletiva como instrumento de mediação e prevenção;
  • Treine lideranças para escuta empática e resolução ética de conflitos;
  • Crie cultura de respeito mútuo, transparência e saúde emocional no trabalho.

Assédio moral coletivo não é falha de gestão, é uma forma institucionalizada de violência que precisa ser nomeada, enfrentada e superada.

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1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, 5 out. 1988.

2 BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943.

3 BRASIL. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública.

4 BRASIL. Projeto de Lei nº 4742/2001. Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.camara.leg.br

5 HIRIGOYEN, Marie-France. Assédio moral: a violência perversa no cotidiano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

6 LIMA, Maria Aparecida. Trabalho e dignidade: a construção de ambientes laborais saudáveis. São Paulo: LTr, 2020.

7 MPT e OIT. Observatório Digital de Saúde e Segurança no Trabalho. Relatório 2022.

Cíntia Possas Machado

VIP Cíntia Possas Machado

Advogada; Mestranda em Direito Público, Palestrante, Professora, Diretora da Casmec Consultoria e Capacitação Profissional., Presidente da Comissão de Direitos Coletivos e Sindical da ABA/RJ.

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