Crimes societários: Breve resumo
Neste artigo fazemos um resumo sintético dos principais crime societários.
sexta-feira, 11 de abril de 2025
Atualizado às 08:44
As S.A.s - Sociedades Anônimas são pilares da economia moderna, mobilizando capitais, gerando empregos e impulsionando a inovação. Sua estrutura complexa, que separa propriedade (acionistas) e gestão (administradores), e sua capacidade de captar recursos no mercado de capitais, no entanto, também abrem espaço para condutas ilícitas específicas, que podem gerar graves consequências não apenas financeiras e reputacionais, mas também criminais para os indivíduos envolvidos.
Embora a lei 6.404/76, a lei das S.A., seja o marco fundamental que rege a criação, organização, direitos e deveres dentro dessas companhias, ela própria, após diversas reformas (notadamente a lei 10.303/01), não concentra mais em seu texto a maioria das tipificações penais. Os crimes classicamente associados ao ambiente das S.A.s encontram-se hoje dispersos, principalmente, na lei 6.385/76 (que regula o mercado de valores mobiliários), no CP e em legislações extravagantes que tratam de temas como ordem tributária, sistema financeiro e meio ambiente.
Este artigo tem como objetivo apresentar um resumo dos principais tipos penais que mais diretamente se relacionam com a vida de uma Sociedade Anônima, explicando suas condutas, os bens jurídicos protegidos e sua conexão com os deveres e responsabilidades estabelecidos, ainda que indiretamente, pela lei 6.404/76. Compreender esses crimes é essencial para administradores, conselheiros, acionistas, auditores e todos os profissionais que atuam nesse ambiente, visando a prevenção e a mitigação de riscos penais.
1. O panorama legislativo: A migração dos crimes societários
Originalmente, a lei 6.404/76 continha um capítulo específico sobre disposições penais (capítulo XIX em sua redação original), que tratava de crimes como prestação de informação falsa, exercício abusivo de poder, entre outros. Contudo, buscando maior especialização e adequação, especialmente com o desenvolvimento do mercado de capitais, muitas dessas condutas foram redefinidas, aprimoradas e transferidas para outros diplomas.
A lei 10.303, de 2001, foi um marco nessa reestruturação, alterando tanto a LSA quanto a lei 6.385/76 (LMC - Lei do Mercado de Capitais). Ela inseriu na LMC tipos penais mais específicos e graves para condutas que afetam a confiança e a lisura do mercado, como a manipulação de mercado e o uso indevido de informação privilegiada (insider trading).
Outras condutas fraudulentas na gestão de S.A.s permaneceram ou foram especificadas no CP, como no art. 177, enquanto crimes relacionados a áreas específicas de atuação da empresa (tributária, ambiental, falimentar, etc.) são regidos por suas leis próprias, mas cuja prática no âmbito de uma S.A. atrai a discussão sobre a responsabilidade dos seus gestores.
Portanto, analisar os "crimes da Lei das S.A." hoje significa, necessariamente, navegar por esse conjunto de leis interconectadas, tendo a lei 6.404/76 como pano de fundo que estabelece os deveres cujo descumprimento doloso pode configurar um crime tipificado em outra norma.
2. Crimes contra o mercado de capitais (lei 6.385/76)
As S.A.s de capital aberto, por negociarem seus valores mobiliários (ações, debêntures, etc.) em bolsa ou balcão organizado, estão sujeitas a um conjunto específico de crimes previstos na lei 6.385/76, que visam proteger a confiança, a transparência e a eficiência do mercado. Os mais relevantes são:
2.1. Manipulação de mercado (Art. 27-C da lei 6.385/76):
- Conduta: Realizar operações simuladas ou executar outras manobras fraudulentas destinadas a elevar, manter ou baixar artificialmente a cotação, o preço ou o volume negociado de um valor mobiliário, com o fim de obter vantagem indevida ou lucro para si ou para outrem, ou causar dano a terceiros.
- Relevância para S.A.s: Impede que o preço das ações e outros títulos da companhia reflita realisticamente sua situação econômica e as expectativas do mercado, prejudicando investidores que negociam com base em informações ou cotações artificialmente manipuladas. Pode ser praticada por controladores, administradores ou terceiros com o objetivo de inflar o valor antes de uma venda, derrubá-lo antes de uma compra, ou atingir metas de desempenho fictícias.
- Bem jurídico protegido: Confiança, transparência e regular funcionamento do mercado de capitais.
- Pena: Reclusão, de 1 a 8 anos, e multa de até 3 vezes o montante da vantagem ilícita obtida ou da perda evitada em decorrência do crime.
2.2. Uso indevido de informação privilegiada
- Conduta: Utilizar informação relevante de que tenha conhecimento, ainda não divulgada ao mercado, que seja capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários.
- Relevância para S.A.s: Este é um dos crimes mais emblemáticos do ambiente corporativo. Administradores, conselheiros, acionistas controladores, membros de órgãos técnicos ou consultivos, auditores, advogados e até mesmo funcionários que, em razão do cargo ou função, tenham acesso a informações relevantes (sobre resultados financeiros, M&A, novas descobertas, etc.) antes do público em geral, têm o dever de sigilo (previsto no art. 155 da LSA). Usar essa informação para negociar ações ou outros títulos antes que ela se torne pública viola esse dever e configura crime, pois gera uma vantagem injusta sobre os demais investidores.
- Bem jurídico protegido: Igualdade de condições entre os investidores (paridade de armas), confiança no mercado e sigilo profissional/funcional.
- Pena: Reclusão, de 1 a 5 anos, e multa de até 3 vezes o montante da vantagem ilícita obtida ou da perda evitada em decorrência do crime. A pena é aumentada de um terço se o agente comete o crime valendo-se de informação relevante de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo (insider primário).
2.3. Exercício irregular de cargo, profissão, atividade ou função
- Conduta: Atuar, ainda que a título gratuito, no mercado de valores mobiliários como administrador de carteira, agente autônomo de investimento, auditor independente, analista de valores mobiliários, ou qualquer outro cargo/função que exija registro ou autorização prévia da CVM - Comissão de Valores Mobiliários, sem estar devidamente autorizado ou registrado.
- Relevância para S.A.s: Garante que profissionais que lidam com o dinheiro de investidores ou que atestam a fidedignidade das informações das companhias abertas (como auditores) tenham a qualificação e a supervisão necessárias da CVM, protegendo o mercado e os investidores.
- Pena: Detenção, de 6 meses a 2 anos, e multa.
Estes crimes da lei 6.385/76 são de ação penal pública incondicionada e sua investigação e processo frequentemente envolvem a colaboração entre a CVM, o Ministério Público Federal e a polícia Federal.
3. Fraudes e abusos na fundação ou administração de S.A.s (CP - Art. 177)
O CP reserva um artigo específico (Art. 177) para tratar de diversas condutas fraudulentas que podem ocorrer no nascimento ou na gestão de uma sociedade por ações, visando proteger o patrimônio da própria companhia, de seus acionistas e de terceiros que com ela se relacionam. Podem ser responsabilizados os fundadores, diretores, gerentes, liquidantes e membros do conselho fiscal ou de administração.
As condutas tipificadas nos parágrafos do art. 177 incluem:
- § 1º, I - Falsidade na constituição: Afirmar ou atestar falsamente em prospectos, relatórios, pareceres ou comunicações ao público ou à assembleia, fatos relevantes sobre a constituição da sociedade ou omiti-los. Protege a veracidade das informações na fase inicial da S.A.
- § 1º, II - Desvio de patrimônio: Desviar bens ou haveres sociais em proveito próprio ou de terceiros, ou fazer a companhia assumir obrigações fraudulentas. Protege o patrimônio social contra apropriações indébitas pelos gestores.
- § 1º, III - Falsidade contábil: Lançar ou fazer lançar em livros ou demonstrações contábeis ou financeiras, informações falsas sobre a situação econômica da companhia, ou omitir transações ou fatos relevantes. Protege a fidedignidade das informações financeiras, essenciais para acionistas, credores e mercado.
- § 1º, IV - Empréstimos vedados: Tomar ou fazer a companhia tomar empréstimos vedados por lei ou estatuto, ou usar bens sociais em proveito próprio/alheio sem autorização. Visa coibir o uso do patrimônio social para fins pessoais ou proibidos.
- § 1º, V - Negociação irregular de ações: Comprar ou vender ações da companhia emitidas por ela própria, salvo quando a lei permite (operações com ações em tesouraria, dentro das regras). Protege o capital social e evita manipulações.
- § 1º, VI - Emissão fraudulenta: Promover emissão de ações ou outros títulos de forma fraudulenta ou em desacordo com a lei ou estatuto. Protege a integridade do capital e dos títulos emitidos.
- § 2º - Concurso de agentes: Estende a responsabilidade aos membros do conselho fiscal que, por omissão ou conivência, concorram para a prática dos crimes anteriores, ou a qualquer empregado que auxilie ou oculte a prática.
Bem jurídico protegido (Art. 177): Patrimônio da sociedade, dos acionistas (especialmente minoritários) e de terceiros (credores), além da confiança no funcionamento regular das S.A.s. Pena: Reclusão, de 1 a 4 anos, e multa. Se o crime é cometido para lesar a economia popular, a pena pode ser aumentada.
4. Outros crimes relevantes no contexto das S.A.s (fontes diversas)
Além dos crimes específicos do mercado de capitais e do art. 177 do CP, diversas outras condutas criminosas podem ocorrer no âmbito de uma S.A., tipificadas em leis extravagantes:
- Crimes falimentares (lei 11.101/05): Se a S.A. entra em processo de recuperação judicial ou falência, atos fraudulentos praticados pelos administradores antes ou durante o processo (como desvio de bens, contabilidade paralela, favorecimento de credores) podem configurar crimes falimentares, com penas específicas.
- Crimes contra a ordem tributária (lei 8.137/90): A omissão de receitas, a fraude fiscal estruturada, o não recolhimento de tributos descontados ou cobrados (como ICMS ou contribuições previdenciárias) podem configurar crimes tributários, pelos quais os administradores responsáveis pela gestão fiscal podem responder pessoalmente.
- Crimes ambientais (lei 9.605/98): A S.A., como pessoa jurídica, pode responder criminalmente por danos ambientais (poluição, operação sem licença, etc.). Além disso, seus diretores e administradores também podem ser responsabilizados pessoalmente, por ação ou omissão, se comprovado dolo ou culpa na conduta lesiva ao meio ambiente.
- Lavagem de dinheiro (lei 9.613/98): Uma S.A. pode ser utilizada como fachada ou instrumento para ocultar ou dissimular a origem ilícita de recursos. Administradores podem ser responsabilizados não apenas pela participação direta, mas também pela omissão dolosa em implementar mecanismos eficazes de PLD-FTP - Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo, especialmente em setores obrigados por lei a manter esses controles.
- Crimes contra as relações de consumo (lei 8.078/90): Práticas como publicidade enganosa ou abusiva, venda de produtos em condições impróprias que causem dano à saúde ou segurança dos consumidores podem gerar responsabilidade penal para os responsáveis na empresa.
- Crimes licitatórios (lei 14.133/21): S.A.s que contratam com o Poder Público estão sujeitas aos crimes previstos na nova lei de licitações, como fraude à licitação, corrupção ativa em contratos, formação de cartel, entre outros.
5. A responsabilidade pessoal e a importância da prevenção
Como ressaltado inicialmente, embora a lei das S.A. não tipifique diretamente a maioria desses crimes, ela estabelece os deveres fiduciários dos administradores (diligência, lealdade - arts. 153 a 158), cujo descumprimento doloso ou culposo pode ser o elo para a responsabilização penal por crimes previstos em outras leis.
A responsabilidade penal será sempre pessoal, exigindo a comprovação da conduta (ação ou omissão relevante - art. 13, §2º, CP) e do elemento subjetivo (dolo ou culpa) do administrador ou sócio específico. A mera posição no organograma não basta.
Nesse contexto, a implementação de programas de compliance e integridade robustos e efetivos torna-se não apenas uma boa prática de governança, mas uma ferramenta essencial de prevenção desses delitos e de mitigação da responsabilidade pessoal dos gestores. Um programa eficaz, com avaliação de riscos, controles internos, treinamentos, canais de denúncia e investigações, demonstra a diligência da empresa e de seus líderes em cumprir a lei, podendo afastar a alegação de omissão culposa ou até mesmo de dolo eventual.
Da mesma forma, a realização de due diligence aprofundada em operações de M&A, em contratações de terceiros e na análise de novos negócios é fundamental para identificar e evitar riscos criminais preexistentes ou potenciais.
Conclusão
Embora a lei 6.404/76 não seja, hoje, a principal fonte de tipos penais relacionados às Sociedades Anônimas, o universo de atuação dessas empresas está permeado por riscos criminais relevantes, definidos em um mosaico de leis que vão do CP à legislação do mercado de capitais, tributária, ambiental, concorrencial e anticorrupção.
Para sócios, administradores, conselheiros e demais gestores, compreender a natureza desses crimes - desde o uso de informação privilegiada e manipulação de mercado até fraudes contábeis, sonegação fiscal e danos ambientais - é o primeiro passo para uma gestão responsável e segura. A responsabilidade penal é pessoal e pode alcançar aqueles que, por ação ou omissão dolosa ou culposa, contribuem para a prática delitiva no âmbito corporativo.
Investir em estruturas sólidas de governança, em programas de compliance efetivos, em auditorias independentes, em due diligence criteriosa e, fundamentalmente, em assessoria jurídica especializada tanto na prevenção quanto na defesa, é o caminho indispensável para que as Sociedades Anônimas e seus líderes possam prosperar dentro da legalidade e da ética, protegendo seu patrimônio, sua reputação e, acima de tudo, sua liberdade.


