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Dano moral congelado no tempo: A jurisprudência que ignora a inflação

R$ 10 mil em 2007 não têm o mesmo valor que em 2025. Levantamento revela um descompasso entre a prática jurisdicional e a realidade econômica.

terça-feira, 15 de abril de 2025

Atualizado às 13:24

A indenização por dano moral é, por natureza, uma medida subjetiva. Não existe, e nem deve existir, uma tabela fixa aplicável a todas as situações. O juiz, ao decidir, precisa considerar o contexto da ofensa, a repercussão do fato na vida do ofendido e, sobretudo, o impacto reparador e pedagógico da condenação para o ofensor. É uma operação que exige sensibilidade, ponderação e, principalmente, aderência à realidade.

Contudo, o que se vê no dia a dia forense é que essa subjetividade vem sendo gradualmente substituída por um automatismo perigoso. A segurança jurídica - que deveria representar estabilidade com justiça - tem sido confundida com replicação. E, nesse processo, a jurisprudência corre o risco de perder contato com o tempo.

Foi com esse pano de fundo que se estruturou uma pesquisa de natureza epistemológica e empírica, voltada a investigar como o TJ/RJ tem fixado valores de indenização por danos morais ao longo do tempo, especialmente em demandas envolvendo cancelamento ou atraso de voos.

O recorte adotado foi temático, temporal e local. O foco se concentrou em ações indenizatórias por interrupções em viagens, sobretudo internacionais, que costumam implicar não apenas frustração pessoal, mas também prejuízos financeiros expressivos. O intervalo analisado compreendeu decisões proferidas entre 2007 e 2010 e, em paralelo, entre 2020 e 2025 - uma janela de aproximadamente duas décadas. Já o recorte local limitou-se ao próprio TJ/RJ, tribunal que historicamente adota parâmetros indenizatórios relativamente estáveis.

O resultado chama atenção: tanto nas decisões mais antigas quanto nas mais recentes, o valor majoritariamente arbitrado a título de danos morais é R$ 10 mil quase sempre justificado com expressões como "valor razoável, proporcional e em consonância com a jurisprudência desta Corte".

Citações - 2007 a 2010:

"Atraso de voo internacional com perda de reunião profissional. Dano moral fixado em R$ 10 mil TJ/RJ, APL 0009068-59.2006.8.19.0001, j. 13/2/2007

"Atraso + ausência de comida vegetariana. Indenização de R$ 12 mil por autor." TJ/RJ, APL 0135753-53.2002.8.19.0001, j. 17/7/2007

"Atraso e extravio de bagagem. Fixado R$ 10 mil a título de dano moral." TJ/RJ, APL 0158570-38.2007.8.19.0001, j. 9/12/2008

"Atraso de 10 horas sem assistência. Valor majorado para R$ 10 mil." TJ/RJ, APL 0271903-65.2007.8.19.0001, j. 18/2/2009

"Atraso e cancelamento. Mãe amamentando bebê no chão.  R$ 10 mil para cada." TJ/RJ, APL 17398-00.2009.8.19.0001, j. 30/4/2009

"Atraso de 24h. Ausência de informações. R$ 10 mil." TJ/RJ, APL 0007400-16.2007.8.19.0002, j. 9/6/2009

"Atraso + extravio de bagagem. R$ 10 mil para cada autor." TJ/RJ, APL 0167857-25.2007.8.19.0001, j. 22/7/2009

"Atraso por overbooking. R$ 10 mil por dano moral." TJ/RJ, APL 0125272-55.2007.8.19.0001, j. 23/11/2009

"Perda de festa de aniversário de 95 anos. R$ 10 mil." TJ/RJ, APL 0125272-55.2007.8.19.0001, j. 23/11/2009

Citações - 2020 a 2025:

"Atraso de 24h em voo nacional. Majoração para R$ 10 mil por autor." TJ/RJ, APL 0015673-11.2017.8.19.0203, j. 30/9/20

"Atraso + falta de assistência em voo remarcado. R$ 10 mil por passageiro." TJ/RJ, APL 0164798-09.2019.8.19.0001, j. 12/4/23

"Cancelamento de voo nos EUA. R$ 10 mil para cada." TJ/RJ, APL 0827762-39.2022.8.19.0209, j. 28/11/23

"Atraso e pernoite forçado. R$ 10 mil para cada autora." TJ/RJ, APL 0861670-95.2023.8.19.0001, j. 23/1/24

"Atraso internacional. Majoração de R$ 5 mil para R$ 10 mil." TJ/RJ, APL 0814307-28.2022.8.19.0202, j. 5/2/24

"Cancelamento com perda de compromissos. R$ 10 mil fixados. TJ/RJ, APL 0830509-04.2022.8.19.0001, j. 1/2/24

"Atraso em noite de Natal. Fixado R$ 10 mil por danos morais." TJ/RJ, APL 0036937-35.2022.8.19.0001, j. 14/5/24

"Atraso de 13h na Alemanha. R$ 10 mil arbitrados." TJ/RJ, APL 0012738-72.2020.8.19.0209, j. 10/8/23

"quantum... fixado R$ 10 mil. Verba compensatória adequada" TJ/RJ, APL 0111509-59.2022.8.19.0001, j. 3/4/24

De referência, o valor passou a ser dogma. Em muitos casos, sequer se discute o contexto - limita-se a citar a "jurisprudência consolidada", sem qualquer análise da inflação, do aumento no custo das passagens, da severidade do transtorno ou da repetição da conduta pelas companhias.

"Tenho que o montante compensatório arbitrado em R$ 10 mil se revela razoável, proporcional, equilibrado e consonante com importantes julgados desta Corte." TJ/RJ, APL 0012738-72.2020.8.19.0209, j. 10/8/23.

Ocorre que R$ 10 mil em 2007 não têm o mesmo valor que em 2025. Corrigido pelo IGP-M da FGV, esse montante hoje corresponderia a R$ 34.347,80. A defasagem, no entanto, vai além da mera atualização monetária: em 2007, o salário mínimo era de R$ 380 o que fazia com que uma indenização de R$ 10 mil equivalesse a mais de 25 salários mínimos. Em 2025, com o salário mínimo fixado em R$ 1.412,00, o mesmo valor corresponde a pouco mais de sete salários. Em termos proporcionais, houve uma perda de quase quatro vezes na capacidade de impacto econômico da reparação - revelando o esvaziamento silencioso da função indenizatória.

A distorção torna-se ainda mais gritante quando se observa o pano de fundo dos próprios casos analisados. Em 2009, uma passagem aérea para a Europa custava, em média, entre R$ 1.500 e R$ 2 mil. Hoje, esse mesmo bilhete internacional dificilmente sai por menos de R$ 8 mil. A jurisprudência, no entanto, continua afirmando que a frustração de uma viagem desse porte "vale" R$ 10 mil - como se o tempo, a inflação e a realidade econômica fossem irrelevantes para fins de quantificação do dano.

É como se, em pleno 2025, o Judiciário mantivesse o mesmo discurso - "justo, equilibrado, razoável" -, mas ignorasse que a régua há muito deixou de medir com exatidão.

Essa jurisprudência congelada cria um paradoxo: de um lado, afirma-se que a indenização cumpre função compensatória e pedagógica. De outro, esvazia-se seu conteúdo prático a cada ano, ignorando o valor real do dinheiro, uma omissão diante da mudança do mundo.

O que este levantamento revela é mais do que uma curiosidade estatística. Ele denuncia um descompasso entre a prática jurisdicional e a realidade econômica. O valor de R$ 10 mil se tornou, ao longo dos anos, uma cifra mágica: suficientemente elevada para evitar críticas por suposta banalização do dano moral, mas suficientemente confortável para ser aplicada sem grande esforço argumentativo. Ocorre que o tempo não para - e a jurisprudência não deveria parar com ele.

Já passou da hora de se discutir, com a seriedade que o tema exige, mecanismos de atualização e calibragem do dano moral fixado judicialmente. O mundo ideal talvez comportasse a vinculação, ainda que meramente referencial, das indenizações por dano moral ao salário mínimo vigente. Trata-se de um critério que, ao menos em tese, evolui conforme a maturidade do sistema monetário, acompanhando minimamente o custo de vida da população.

Contudo, a Constituição Federal, em seu art. 7º, IV, proíbe expressamente a vinculação do salário mínimo para qualquer fim, salvo quando utilizado como base de cálculo para o próprio salário mínimo ou em prestações de natureza trabalhista. A jurisprudência do STF já consolidou que não se pode vincular benefícios, tarifas ou obrigações a múltiplos do salário mínimo, sob pena de violação dessa regra.

Nesse cenário, impõem-se alternativas mais viáveis - e igualmente eficazes - para evitar que a jurisprudência se transforme em instrumento de desatualização do próprio direito. Entre elas, destacam-se:

  • A revisão periódica dos parâmetros jurisprudenciais adotados pelos tribunais, com base em índices oficiais de inflação (como IPCA ou IGP-M), podendo o próprio tribunal editar enunciados orientativos de atualização, nos moldes das tabelas de honorários da OAB;
  • A publicação de relatórios estatísticos pelos tribunais, evidenciando a evolução dos valores fixados a título de danos morais nas mais diversas matérias, permitindo à sociedade acompanhar com clareza a trajetória indenizatória da jurisprudência;
  • A inclusão de fundamentos econômicos nas decisões, de modo que, ao manter um patamar nominal fixo, o julgador indique de forma expressa as razões pelas quais o faz, considerando o impacto inflacionário ou eventuais elementos de exceção que justifiquem a medida.

Nada disso implica tabelamento, automatismo ou engessamento. Ao contrário: são mecanismos que preservam o que há de mais relevante na fixação do dano moral - seu poder de comunicar justiça.

Porque, ao fim e ao cabo, a indenização não deve apenas reparar: ela deve significar.

E o Judiciário, como instituição essencial à confiança social, não pode continuar dizendo em 2025 que uma perda de viagem internacional vale o mesmo que dizia em 2007 - a não ser que esteja disposto a aceitar que sua jurisprudência, por mais coerente que pareça, seja percebida apenas como ruído.

Marcus Vinicius de Menezes Reis

VIP Marcus Vinicius de Menezes Reis

Advogado, formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes. Para saber mais: www.mvreis.com.br

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