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O mito da punição

O artigo é critica a lógica punitivista, sustentada pela crença na força transformadora da lei e na regeneração pelo cárcere.

terça-feira, 15 de abril de 2025

Atualizado às 13:27

De tempos em tempos, a sociedade vê-se abalada por eventos que rompem a aparente normalidade. São manifestações de violência, revelações de corrupção e tragédias que, com implacável clareza, expõem uma verdade incômoda: existe uma grave degradação das relações sociais que poucos querem confrontar.

Nesses momentos inquietantes, a reação costuma seguir um roteiro previsível. A população, tomada por indignação e medo, exige do Estado uma resposta imediata, implacável e simbólica. Pede-se mais rigidez, mais punição, mais cadeia. Manchetes dramatizadas anunciam o renascimento do velho debate: "O país do prende e solta: onda de violência reacende debate sobre endurecimento das leis".1

Sob o peso da pressão social e sem um plano efetivo de mudança, o Estado adota uma saída conhecida: promove iniciativas legislativas superficiais que, embora sirvam para reduzir momentaneamente a inquietação pública, não passam de respostas genéricas e insuficientes diante da complexidade dos problemas reais. Aumenta-se o rigor das sanções, multiplicam-se promessas inviáveis e reforça-se um ciclo de ilusões que raramente gera resultados efetivos.

Essa medida legislativa, vendida como solução, cumpre uma função paliativa. Anestesia a ansiedade coletiva, acalma o clamor popular, simula governabilidade. O cidadão, ávido por ordem e sedento por respostas, consome a nova norma como um antídoto simbólico contra o caos. Por um breve instante, parece que o Estado reagiu; que a justiça foi restaurada.

Mas a realidade não se curva ao espetáculo. Com o tempo, a engrenagem volta a ranger. Os crimes não cessam. As tragédias se repetem. A sensação de insegurança retorna intacta, talvez até mais agravada. E, com ela, renasce o ciclo de indignação. A mesma sociedade que aplaudiu o último pacote repressivo agora exige algo mais severo, mais definitivo, mais punitivo. O Estado, como um ator sem roteiro novo, reedita o mesmo script: mais penas, mais rigidez e mais promessas.

Cria-se, nesse cenário, um círculo vicioso onde as leis repressivas se convertem em placebo emocional. A política criminal perde sua racionalidade e sucumbe ao populismo, que confunde castigo com solução e vingança com justiça. Um espetáculo punitivo para acalmar plateias desinformadas.

A metáfora de Sísifo, resgatada por Camus, ilustra com precisão essa tragédia cívica. Empurra-se a pedra do punitivismo montanha acima, na esperança vã de que, desta vez, ela não rolará de volta. Mas ela sempre rola. O agravante é que, diferentemente do herói mítico consciente do absurdo, o legislador parece não perceber o abismo em que repete seus gestos. E quando falta lucidez, o erro vira sistema. Enquanto a pedra rola, seguimos todos ladeira abaixo, convencidos de que estamos subindo.

Há, evidentemente, os que sabem capitalizar o caos: políticos oportunistas, setores da mídia sedentos por audiência, líderes de ocasião que, sem qualquer pudor, empunham o medo como ferramenta de poder. Com esses, o diálogo é impossível. Não por falta de argumentos, mas por falta de honestidade intelectual. Preferem o aplauso fácil à reflexão difícil. Por outro lado, para os que ainda se apegam à sanidade crítica, a repetição desse roteiro exige análise, memória, coragem para encarar o problema em sua dimensão real; histórica, estrutural, social e, sobretudo, psicológica.

Pois bem! Esta dinâmica assenta sobre dois erros capitais, duas formas de inautenticidade que infestam o pensamento moderno:

Primeiro, a utopia normativa, essa crença vagarosa - fruto de uma mentalidade racionalista - de que leis que possuem essência ontológica são, por si só, capazes de modelar a vida humana. Ora, nenhuma legislação, por mais rigorosa que seja, consegue penetrar os recantos profundos da psique daqueles que agem movidos por rancor, desespero, desejo, medo ou fome. As normas não reconfiguram vontades ou consciências; elas servem unicamente para orientar e punir condutas. Uma lei que ignora essa limitação torna-se letra morta, incapaz de interferir efetivamente na complexa dinâmica existencial do indivíduo.

(O campo penal é, talvez, o mais contaminado por essa ilusão. As reformas legislativas penais, sobretudo nas últimas décadas, têm-se pautado por um discurso de endurecimento: penas mais severas, mais tipos penais, menos garantias processuais. Mas a repressão não resolve o problema de fundo, pois ele não é jurídico, mas existencial, político e econômico. O exemplo paradigmático dessa falência está na repressão penal ao tráfico de drogas. Sob o discurso da moralidade, o Estado ergueu uma muralha normativa rigorosa, esperando frear o mercado ilegal e "educar" indivíduos pelo medo. O resultado foi o inverso: violência crescente, explosão carcerária e ressentimento social aprofundado. Os sujeitos envolvidos no tráfico não calculam racionalmente riscos e benefícios legais.)

Segundo, e como corolário, a tragédia do cárcere como antídoto mágico. O encarceramento moderno carrega em sua essência a ilusão de que segregar corpos pode purificar consciências, transformando transgressões em virtudes pela simples força do isolamento e do sofrimento institucionalizado. Crê-se que encerrar corpos resolve o problema das almas. Mas o cárcere, ao arrancar o indivíduo do convívio social (mesmo que este seja adverso) e lançá-lo num ambiente de anomia e degradação, dificilmente pode ser o berço de uma autêntica reabilitação. Reabilitar-se não é um processo mecânico, mas um esforço pessoalíssimo de encontrar um novo projeto vital autêntico, uma nova forma de salvar a si mesmo salvando sua circunstância. A prisão como um mero depósito de homens é a negação dessa possibilidade, é a renúncia da sociedade a essa tarefa, que é, em última análise, uma tarefa de todos.

Esses dois erros fundamentais contaminam o imaginário coletivo e, principalmente, paralisam o sistema penal, criando um abismo entre a retórica punitiva e a efetiva transformação social. O resultado é uma máquina jurídica que, apesar de sua imponência formal, é incapaz de enfrentar as raízes profundas da criminalidade.

Qual é a lógica racional que sustenta a crença de que o tempo de cadeia, por si só, consegue regenerar alguém? Onde está o argumento convincente de que a simples passagem dos anos, num espaço de brutalização, abandono, hostilidade e desumanização, conduzirá, como num passe de mágica, à elevação moral do sujeito?

O momento atual, portanto, não é de se pensar em endurecer penas, mas em torná-las efetivas e restauradoras do tecido social atingido pelo delinquente.

É evidente que há situações em que o cárcere se impõe como resposta imediata. Há condutas tão devastadoras, há subjetividades tão desorganizadas, há patologias tão graves, que a liberdade do agente torna-se uma ameaça concreta e inescapável à coletividade. Nesse ponto, o Direito deve conter - e conter com firmeza. Mas conter não significa desistir. E o que se tem feito, há muito, é isso: desistir do sujeito desde o momento em que se decreta sua prisão. Encerrar o corpo, abandonar a mente, rotular a alma. É uma morte simbólica.

O compromisso constitucional com a dignidade humana - cláusula fundante do Estado democrático de Direito - não autoriza esse abandono. Pelo contrário, impõe ao Estado a tarefa mais difícil: responsabilizar o infrator sem o converter em resíduo. Tornar o cárcere um espaço que, mesmo sendo limite, não seja ruína. Um tempo que, mesmo sendo pena, não seja perda irreversível.

O direito de punir, em sua forma legítima, só existe enquanto projeto de reintrodução social. Qualquer outra forma, repito, é vingança institucionalizada.

A alternativa é rever o paradigma da sanção.

E mesmo quando o cárcere for necessário, é preciso reorientar sua finalidade: não apenas conter, mas provocar uma reorganização interna, um processo de responsabilização profunda e dirigida. Isso exige mais do que grades. Exige estrutura, exige método, exige presença do Estado em sua forma mais qualificada - educativa, terapêutica, humanizadora. A pena só se legitima se o tempo de prisão for também tempo de projeto. Do contrário, estamos apenas suspendendo o indivíduo no vácuo, esperando que ele volte à vida em sociedade sem qualquer ponte real de retorno.

Esse novo modelo de sanção deve, portanto, ser funcional à reconstrução da pertença. É preciso que o infrator compreenda, dentro da própria pena, o dano causado - e que atue, já durante o cumprimento da sanção, na recomposição do laço social que rompeu. Não se trata de benevolência, mas de justiça prática: a sociedade só se protege, de fato, quando consegue transformar o infrator em aliado do bem coletivo. Punir é necessário - mas punir com inteligência e com um propósito que vá além da mera retribuição.

As sanções precisam ser um verdadeiro laboratório de reconstrução da cidadania. A prestação pecuniária vinculada ao dano real, a contribuição concreta a políticas públicas prejudicadas pelo tipo penal cometido, o cumprimento de tarefas públicas qualificadas e direcionadas - tudo isso é sanção, mas é também inserção. É pena, mas é também política. É sofrimento, mas é também pertencimento. E mais: é pedagogia social.

A insistência em ver a pena como exclusão é um sintoma de decadência moral do próprio sistema jurídico. E é, além disso, uma distorção do que a pena foi pensada para ser na tradição republicana: um instrumento de resposta civilizada ao erro, e não um ritual de aniquilamento.

Essa lógica não se confunde com as tradicionais penas alternativas, muitas vezes genéricas, desconectadas do contexto da infração e aplicadas somente por conveniência ou sobrecarga do sistema prisional. Este é um novo paradigma: cada crime seria analisado não apenas pela sua gravidade abstrata, mas também pela sua capacidade de destruição se generalizado. A resposta penal teria como objetivo neutralizar essa potência, engajando o autor na contenção do dano que, de certa forma, ele mesmo causou.

Logo, não se trata de uma leniência. O sofrimento da sanção permanece. Mas ele não é sofrimento inútil, nem o castigo oco do cárcere. É sofrimento vinculado ao fazer - um sofrimento que exige esforço, compromisso, contato com a dor social gerada. É a punição que reeduca não pela exclusão, mas pela reintegração laboriosa e específica. Um modelo de responsabilidade que substitua a crueldade pela utilidade e a vingança pela reconstrução.

Se esse novo modelo ainda for imperfeito - e será -, que seja pelo menos menos cruel. Que ele não transforme a tragédia humana em espetáculo. Que ele não se alimente da dor alheia como modo de autopreservação institucional. Que ele permita ao infrator a chance de permanecer sujeito, e não ser convertido em objeto.

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1 (Revista Veja, ed. n.º 2938, abril de 2025).

Wesley Souza de Andrade

Wesley Souza de Andrade

Advogado. Especialista em Direito Processual. Conselheiro Estadual da OAB/AL.

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