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Litigância predatória reversa pelas operadoras de plano de saúde

Indenizações irrisórias viram estratégia lucrativa: Entenda como operadoras de saúde usam o Judiciário a seu favor - e por que isso precisa mudar.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Atualizado às 13:21

1. Introdução

No cenário jurídico brasileiro, as operadoras de plano de saúde têm se destacado não apenas pela essencialidade de seus serviços, mas também por práticas que desafiam a efetividade do sistema judicial. Um fenômeno que merece atenção é o que o ministro Herman Benjamin, do STJ, denominou "litigância predatória reversa".

Em sessão da Corte Especial realizada em 13/3/25, o ministro alertou para a conduta de grandes empresas que, de forma sistemática, resistem ao cumprimento de decisões judiciais, desrespeitam súmulas, teses de recursos repetitivos e até o texto expresso da lei, transformando a litigância em uma estratégia econômica1.

No caso das operadoras de saúde, esse comportamento se manifesta de maneira peculiar: indenizações por danos morais, frequentemente fixadas em valores como R$ 5 mil2 ou R$ 10 mil3, tornam-se um custo irrisório, incapaz de desestimular a repetição de condutas ilícitas.

2. O valor da indenização e a realidade do consumidor

Para o consumidor, uma indenização de R$ 5 mil4 é insuficiente para reparar os abalos psicológicos decorrentes da negativa de cobertura ou da negligência que, por vezes, coloca em risco sua saúde ou sua vida.

Em 2025, esse montante não cobre nem necessidades básicas ou essenciais à dignidade. É insuficiente, p.ex., para quatro meses de despesas básicas de uma criança pequena de uma família de classe C (R$ 1.307,00/mês5).

Esse exemplo evidencia que, para o consumidor, a indenização não recompõe minimamente o sofrimento ou as perdas materiais decorrentes de uma conduta abusiva. Enquanto isso, o trauma enfrentado - muitas vezes relacionado à própria sobrevivência - é reduzido a um valor que não assegura nenhuma reparação moral.

O problema se agrava ao constatarmos que falhas menores em relações de consumo, como "overbooking", recebem indenizações maiores (cerca de R$ 15 mil6), enquanto casos graves envolvendo operadoras de planos de saúde são subcompensados, revelando uma inaceitável desproporção de valores.

3. O impacto (ou a ausência dele) nas operadoras de saúde

Do outro lado da equação, o que representam R$ 5 mil ou R$ 10 mil para uma operadora de plano de saúde de grande porte? Tomemos como exemplo os dados recentes da Central Nacional Unimed - Cooperativa Central, cujo balanço patrimonial registra um total de ativos de R$ 3.834.309.344,38 (mais de 3,8 bilhões de reais)7. Uma indenização de R$ 5 mil equivale a aproximadamente 0,00013%8 desse montante. Trata-se de uma fração insignificante, incapaz de gerar qualquer impacto perceptível nas finanças da empresa ou em sua operação diária.

No ordenamento jurídico brasileiro, a fixação de danos morais deve atender aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, considerando (dentre outras coisas) a gravidade do dano, a intensidade do sofrimento, as consequências do ato, a capacidade econômica do ofensor e o equilíbrio entre reparação e punição. O caráter pedagógico da condenação, essencial para coibir a reiteração de práticas ilícitas, depende diretamente da capacidade econômica da ré9.

Para uma empresa com ativos bilionários, valores na faixa de R$ 5 mil ou R$ 10 mil definitivamente não cumprem essa função. Pelo contrário, tornam-se um "custo aceitável" dentro do modelo de negócio, permitindo que a negligência em relação a obrigações legais e contratuais seja perpetuada como estratégia lucrativa, alocando os consumidores dentro de uma zona cinzenta de negligência que potencializa os ganhos em detrimento dos revezes.

4. Litigância predatória reversa: Um desafio ao sistema judicial

A litigância predatória reversa, como descrita pelo ministro Herman Benjamin, revela-se um obstáculo à eficácia da Justiça. Grandes operadoras de saúde, cientes de sua capacidade financeira e da vulnerabilidade dos consumidores - que frequentemente carecem de recursos ou conhecimento para enfrentar longos litígios -, optam por descumprir normas e decisões judiciais, assumindo o risco de condenações módicas.

Essas empresas, em muitos casos, sequer enviam representantes com poder de negociação a audiências de conciliação, evidenciando o desprezo pelo sistema judicial e a aposta na impunidade econômica.

A jurisprudência brasileira reconhece a necessidade de considerar a capacidade econômica do ofensor para garantir o efeito dissuasório das condenações10. Contudo, a aplicação prática desse princípio ainda é tímida. Enquanto indenizações irrisórias forem a regra, o incentivo para que essas empresas mudem sua cultura organizacional será nulo.

Enquanto valores indenizatórios de R$ 5 mil/R$ 10 mil se mantiveram como padrão desvinculados da capacidade econômica do ofensor, o caráter educativo da sanção estará suspenso, abrindo espaço para condutas reincidentes sob o manto da previsibilidade financeira. O resultado é um ciclo vicioso: consumidores lesados recebem reparações insuficientes, e as operadoras, confortáveis com o baixo impacto financeiro, persistem em práticas abusivas.

5. A racionalidade econômico-matemática do descumprimento de ordens judiciais

A reiterada violação de direitos por grandes grupos econômicos, especialmente no setor da saúde suplementar, não pode mais ser analisada sob a ótica da negligência isolada ou de eventuais falhas administrativas. Trata-se de uma conduta sistematizada, sustentada por uma lógica racional de otimização de lucros, que se revela quando observada sob a perspectiva da racionalidade econômico-matemática do descumprimento.

Essa racionalidade opera com base em uma equação simples, porém devastadora: descumprir contratos e suportar eventuais condenações judiciais pode ser financeiramente mais vantajoso do que cumprir integralmente as obrigações legais e contratuais. A equação só se desequilibra quando o custo da ilicitude supera os ganhos da prática abusiva.

No campo da análise estratégica, essa conduta encontra respaldo na teoria dos jogos, especialmente na formulação de estratégias dominantes em contextos de incerteza judicial. Grandes empresas analisam padrões jurisprudenciais, mapeiam tendências indenizatórias e calculam com precisão os riscos e os impactos financeiros suas omissões. O resultado é a transformação do ilícito em instrumento de gestão empresarial, tratado como um "custo operacional conveniente".

Essa racionalidade é alimentada principalmente pelo fato de que a previsibilidade de indenizações modestas e padronizadas, que enfraquecem a função pedagógica, punitiva e compensatória da condenação e que, na maior parte dos casos, tornam-se irrisórias diante do porte econômico do ofensor.

Nesse cenário, o Poder Judiciário, ao fixar valores indenizatórios desproporcionais à gravidade da lesão e à capacidade econômica da empresa, contribui involuntariamente para a institucionalização do descumprimento deliberado. A resposta judicial excessivamente comedida em nome do combate à suposta "indústria do dano moral" reforça a percepção empresarial de que vale a pena violar decisões judiciais e adotar um posicionamento abusivo.

Trata-se, portanto, de uma escolha deliberada, orientada por cálculos e probabilidades, e não por princípios jurídicos. A banalização das condenações por dano moral, longe de ser causa, é sintoma desse modelo perverso em que o desequilíbrio contratual e a desigualdade de forças entre consumidor e fornecedor são explorados de forma cirúrgica.

Se o objetivo do sistema jurídico é desestimular práticas lesivas e restaurar a confiança na tutela estatal, é indispensável que as decisões judiciais levem em conta essa racionalidade empresarial. A resposta judicial precisa ser economicamente significativa, suficientemente dissuasória e sensível ao contexto repetitivo das condutas. Do contrário, estaremos apenas ratificando o uso do Poder Judiciário como ferramenta de legitimação do descumprimento estratégico.

6. Por uma mudança paradigmática

Diante desse cenário, é imperativo que o Poder Judiciário reavalie os parâmetros para a fixação de danos morais em casos envolvendo grandes operadoras de plano de saúde. A função pedagógica da condenação exige valores que causem impacto financeiro significativo, capazes de alterar o cálculo custo-benefício que hoje favorece a litigância predatória reversa. Não se trata de punir indiscriminadamente, mas de assegurar que a sanção seja proporcional ao porte econômico do ofensor e ao dano causado.

Além disso, a doutrina e os magistrados devem atentar para o alerta do STJ: a litigância predatória reversa é uma realidade que compromete a credibilidade do sistema judicial e a proteção dos direitos do consumidor. Medidas como a aplicação de multas progressivas por descumprimento reiterado, a majoração de indenizações em casos de má-fé evidente e o estímulo à fiscalização regulatória podem complementar a resposta judicial.

Em verdade, verifica-se que o tema em análise, em voga em milhares de ações judiciais clama pela prolação de decisões estruturantes pelo Poder Judiciário. Diferentemente das condenações tradicionais, que se limitam a reparar danos individualmente, as decisões estruturantes possuem caráter sistêmico e prospectivo, buscando atacar as causas estruturais das violações reiteradas.

No caso das operadoras de plano de saúde, isso poderia significar, além da fixação de indenizações mais robustas, a imposição de medidas como a reformulação de protocolos internos, a criação de canais efetivos de atendimento ao consumidor e a submissão a auditorias periódicas, com acompanhamento judicial contínuo para assegurar o cumprimento. Tais determinações, previstas genericamente no art. 139, IV, do CPC11, reforçam a função pedagógica da Justiça, transformando-a em um instrumento de mudança real, e não apenas de compensação paliativa.

Em síntese, enquanto as indenizações por danos morais permanecerem como um custo irrisório para as operadoras de plano de saúde, a litigância predatória reversa continuará a prosperar. Cabe ao Judiciário romper esse ciclo, garantindo que a Justiça seja, de fato, um instrumento de reparação e transformação, e não apenas um ônus contábil tolerável para quem lucra às custas da vulnerabilidade alheia.

___________

1 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/426488/ministro-herman-alerta-para-litigancia-abusiva-reversa-por-empresas - acesso em 07/4/25

2 Vide: TJ-SP - Apelação Cível: 1004689-56 .2021.8.26.0577 São José dos Campos, Relator.: Enéas Costa Garcia, Data de Julgamento: 17/06/2024, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/06/2024; TJ-SP - Apelação Cível: 1026143-34.2022.8 .26.0003 São Paulo, Relator.: Alexandre Coelho, Data de Julgamento: 18/01/2024, 8ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 18/01/2024;

3 Vide: TJ-SP - Apelação Cível: 1023240-22 .2022.8.26.0554 Santo André, Relator.: João Batista Vilhena, Data de Julgamento: 18/06/2024, 5ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 18/06/2024; TJ-SP - Apelação Cível: 1019569-54.2023.8 .26.0554 Santo André, Relator.: Corrêa Patiño, Data de Julgamento: 20/02/2024, 2ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 20/02/2024

4 TJ-SP - Apelação Cível: 10251338420248260002 São Paulo, Relator.: Silvério da Silva, Data de Julgamento: 03/02/2025, 8ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 03/02/2025

5 Acesso em 03/04/2025, às 16:58: https://comunidade.nubank.com.br/t/quanto-custa-criar-um-filho-no-brasil/523669

6 TJSP - AC: 10101692520208260003 SP 1010169-25.2020 .8.26.0003, Relator.: Mario de Oliveira, Data Jde Julgamento: 08/01/2021, 38ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 08/01/2021

7 Acesso em 03/04/2025, às 17:05 chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.unimednacional.coop.br/site/documents/17726325/34637344/Demonstracoes_Contabeis_Dez22.pdf/a9c88537-bf03-4c11-3883-f7d81a7db0bf?t=1711480066679

8 5.000 ÷ 3.834.309.344,38 × 100

9 TJ-SP - Apelação Cível: 1059670-90.2022.8 .26.0224 Guarulhos, Relator.: Ramon Mateo Júnior, Data de Julgamento: 07/12/2023, 15ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 07/12/2023

10 STJ - AgInt no AREsp: 1126508 RJ 2017/0155765-6, Relator.: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 05/12/2017, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/12/2017

11 Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:...

IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;

Daniel Santos de Freitas

VIP Daniel Santos de Freitas

Bacharel em Direito, Pós-graduado em Direito Administrativo, Membro das Comissões de Direito Administrativo, Consumidor, Constitucional, Processo Civil da OAB-SP e autor de artigos jurídico

Victor Henrique Pinto Pereira

Victor Henrique Pinto Pereira

Advogado com experiência em demandas cíveis, com ênfase em Direito Médico.

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