A banalização do dolo eventual: garantias em risco no Direito Penal
O artigo critica o uso abusivo do dolo eventual em crimes midiáticos, especialmente de trânsito, alertando para riscos à legalidade e à justiça ao ceder ao clamor social sem base técnica adequada
terça-feira, 22 de abril de 2025
Atualizado às 11:52
1 - INTRODUÇÃO.
A problemática aplicação do dolo eventual nos delitos de grande repercussão midiática e de clamor social, é um dos grandes problemas do direito criminal brasileiro, uma vez que acaba por banalizar o conceito de dolo eventual dentro da teoria do delito e acentua a seletividade penal nos processos de criminalização secundária1, transformando delitos incialmente culposo com resultado midiaticamente repercutidos, em delitos dolosos, por dolo eventual, em clara tentativa de se satisfazer o desejo de punição da "opinião pública" e acalmar o clamor social.
Dessa forma, o sistema de justiça criminal precisa evoluir, sobretudo no aprimoramento quanto a aplicação das normas penais em delitos culposos de grande repercussão midiática e que tenham grave resultado naturalístico. O direito processual penal brasileiro vem passando nos últimos anos, por uma série de reformas, ainda que parciais, tendo como o escopo melhor prestação jurisdicional, com adequação da legislação ao Constituição de 1988, em especial ao princípio acusatório e a presunção do Estado de inocência, onde se tem busca assegurar a todos os envolvidos, o devido processo legal.
Os crimes culposos, em regra, são previstos como tipos penais abertos, pois a lei não tipifica de forma expressa qual comportamento é culposo ou não, deixando essa tarefa por parte para os operadores do sistema de justiça criminal.
Normalmente, o tipo penal descreve a conduta dolosa, e quando o legislador entende necessário se atribui a forma culposa. Todavia, nada impede de se ter tipos penais culposos fechados, como crime de receptação culposa, prevista no Código Penal:
"Art. 180 - Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996).
(...)
§ 3º - Adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996) - Grifo nosso.
Outrossim, a excepcionalidade do crime culposo está expressamente prevista no parágrafo único do artigo 18º do Código Penal:
Art. 18 - Diz-se o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).
(...)
Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984). Grifou-se.
No mesmo art. 18, I, do CP, há a definição do dolo direito e no que doutrina e jurisprudências majoritárias entendem como dolo indireto ou eventual.
Art. 18 - Diz-se o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).
Crime doloso (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I - Doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; (...). Grifou-se.
Para o presente estudo, o foco recai especificamente sobre a banalização do conceito de dolo eventual em delitos de repercussão midiática e clamor social, onde mesmo em sentido contrário ao que é definido na doutrina majoritária, a jurisprudência acaba por apresentar conceitos de dolo eventual "de ocasião", descolado da dogmática penal.
Outrossim, trataremos, da séria dificuldade em se aceitar a aplicação do dolo eventual nos crimes de trânsito. Posiciona-se a jurisprudência atual no sentido da existência de dolo eventual na conduta dos agentes responsáveis por delitos praticados na direção de veículo automotor.
O presente tema vem causando uma série de discussões na doutrina e na jurisprudência a respeito de sua constitucionalidade, ou não de tal interpretação se haveria um direito penal com culpa objetiva, bem como, da violação de princípios constitucionais diversos, como o acusatório, da presunção de inocência e do devido processo legal.
Apesar das críticas e posicionamentos contrários, já decidiu assim o Supremo Tribunal Federal:
"HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE HOMICÍCIO PRATICADO NA CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. PLEITO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO PREVISTO NO ARTIGO 302 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. DEBATE ACERCA DO ELEMENTO VOLITIVO DO AGENTE. CULPA CONSCIENTE X DOLO EVENTUAL. CONDENAÇÃO PELO TRIBUNAL DO JÚRI. CIRCUNSTÂNCIA QUE OBSTA O ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO. REEXAME DE PROVA. ORDEM DENEGADA".2
2 - A DOGMÁTICA PENAL E A TEORIA DO DOLO E DA CULPA.
2.1. Dolo Direto e Dolo Indireto
Na dogmática penal, o dolo pode ser dividido em dolo direito ou determinado e em dolo indireto ou indeterminado. O primeiro se configura-se quando o agente prevê um resultado, dirigindo sua conduta na busca de realizá-lo. Portanto, o dolo direito, é quando o agente quer efetivamente cometer a conduta típica descrita no núcleo do tipo penal incriminador. É o chamado dolo por excelência. Já o segundo, dolo indireto ou indeterminado, o agente, com a sua conduta, não busca resultado certo e determinado. Segundo a doutrina o dolo indireto, ainda pode ser dividido em dolo indireto alternativo e dolo eventual.
O dolo indireto alternativo "é o que se verifica quando o agente deseja, indistintamente, um ou outro resultado. Sua intenção se destina com igual intensidade, a produzir uns entre vários resultados previstos como possíveis3". Pode ser exemplificado como agente que desfere um tiro de projetil de arma de fogo contra seu desafeto, com propósito de matar ou causar lesão corporal grave. Sendo responsabilizado pelo que de fato ocorrer.
Porém, parte da doutrina entende ser essa diferenciação de difícil aplicação, pois seria quase impossível auferir qual é o real dolo do agente no momento da conduta, só sendo mesmo discutido no âmbito da academia.
Desta feita, na prática, o dolo se subdivide em dolo direto e dolo eventual, não sendo o dolo indireto alternativo empiricamente analisado.
2.2. Dolo Eventual
Fala-se em dolo eventual quando o agente embora não queira diretamente o resultado, por ele previsto, assume o risco de produzi-lo, nos termos do já citado o artigo 18, inciso I, do Código Penal:
Segundo Jescheck, "dolo eventual significa que o autor considera seriamente como possível a realização do tipo legal e se conforma com ela"4.
Esse também é o entendimento do doutrinador espanhol Muños Conde, "dolo eventual, o sujeito representa o resultado como de produção provável e, embora não queira produzi-lo, continua agindo e admitindo a sua eventual produção. O sujeito não quer o resultado, mas conta com ele, admite sua produção, assume risco de produzi-lo".5
É de se notar que embora aparentemente, não se tenha dificuldade em conceituar dolo eventual, sua aplicação prática é deveras controvérsia. Isto porque, diferentemente do dolo direto, o dolo eventual não permite ao intérprete identificar a exteriorização da vontade do agente como elemento integrante do tipo, só se consegue enxergar a consciência, ou seja, nas palavras de Bustos Ramírez e Hormazábla Malarée6, dolo eventual não passa de uma espécie de culpa com representação, punida mais severamente.
Podemos exemplificar com a conduta do agente que ao chegar à rua de casa cansada do trabalho diário, se vê impedido de entrar na sua casa, pois a rua estava tomada de "manifestantes do movimento sem teto" e mesmo prevendo que com sua conduta de "avançar" com carro por cima dos manifestantes para entrar na sua garagem poderia lesionar ou matar alguém, assim o faz. Sendo assim responderá pela conduta de homicídio doloso, se houver mortes ou na forma tentada ambos com dolo eventual.
Para Eugenio Raúl Zafarroni e Nilo Batista7 "Existe dolo eventual, também chamado de indireto ou condicionado, quando o resultado típico constitui um efeito apenas possível dos meios escolhidos pelo agente, que não obstante, o incorpora à sua vontade".
2.3. Culpa Consciente e Culpa Inconsciente
A distinção tem fundamento a previsão do agente sobre o resultado naturalístico consequente da sua conduta praticada.
A previsibilidade é um dos elementos que integram o delito culposo. Sendo assim, quando o agente deixa de prever um resultado que lhe era possível prever, fala-se em culpa inconsciente ou comum.
Contudo, embora o agente prevendo o resultado, não deixar de praticar a conduta acreditando, sinceramente, que este resultado não venha a ocorrer, estamos diante da chamada culpa consciente. O resultado embora previsto, não é em momento algum, assumido ou aceito pelo agente, que confia na sua não ocorrência, o que não acontece por erro de cálculo ou por erra na execução.
Neste sentido, a culpa consciente ou com previsão, é a modalidade de culpa que se manifesta quando o agente, embora preveja o resultado objetivo da sua conduta, acredita sinceramente dado suas habilidades pessoais, que o mesmo não ocorrerá, portanto, com o agente não assume ou aceita o resultado.
Já a culpa inconsciente ou sem previsão, é aquela onde o agente não prevê o resultado que deveria ter sido previsto objetivamente.
Distinguindo-se uma da outra, justamente na parte em que concerne a previsão do resultado, enquanto na inconsciente o resultado, embora previsível, não é imaginado pelo agente, na consciente, o resultado é previsto pelo agente, que confia na sua não ocorrência, como já comentado nesse trabalho.
Nota-se, que a distinção é muito tênue, e só será feita no caso concreto, mediante a análise das provas produzidas e exteriores ao fato.
Da mesma forma, assevera Fernando de Almeida Pedroso: "Elemento de natureza interna e subjetiva, o animus (intenção) que motiva o agente ao crime, por obter nascedouro nos recônditos de sua alma e na sua indevassável mente e inexplorável pensamento, torna-se um aspecto de difícil perquirição".8
O Código Penal como é de conhecimento notório, trata de forma igualitária tanto a culpa consciente como a culpa inconsciente. A previsão do resultado, por si só, não representa maior grau de reprovabilidade da conduta.
2.4. Diferença entre Dolo Eventual e Culpa Consciente
A banalização do conceito de dolo eventual, passa pela controvérsia e problemática diferenciação entre os conceitos de culpa consciente ou com representação e do dolo eventual, sobretudo na valoração dos magistrados em delitos de grande repercussão social.
Inicialmente cabe dizer que não obstante, não se tenha maiores problemas de se conceituar os dois institutos, a sua utilização na prática nos conduz a uma série de dificuldades. Pois ao contrário do dolo direto, no dolo eventual não podemos identificar claramente a exteriorização da vontade do agente, como um dos seus elementos integrantes, havendo, somente, a consciência. Portanto, como já afirmamos nesse trabalho, o dolo eventual não passa de uma espécie de culpa com representação, punida mais rigorosa pelo nosso ordenamento.
Na culpa consciente ou com previsão, como dito anteriormente, o agente antecipa mentalmente o resultado tipicamente previsto para delito, ou seja, há previsão, mas acredita baseado nas suas habilidades ou no meio utilizado por ele, que sinceramente o resultado previsto não irá ocorrer. Porém, o resultado previsto e por ele não aceito, ocorre.
Entretanto no dolo eventual, embora o agente igualmente tenha previsto o resultado como possível e o não queira diretamente, assume o risco de produzi-lo, independentemente de acredita na sua realização ou não, tendo como irrelevante sua ocorrência. Ou seja, na culpa consciente o agente acredita sinceramente, que pode evitar o resultado previsto, já no dolo eventual, o agente não quer diretamente produzir o resultado previsto, mas, se este vier acontecer, pouco importa.
Portanto, em ambas as situações o agente tem a previsão do resultado típico de sua conduta pode causar, embora na culpa consciente não admita como possível e, no dolo eventual, admita a possibilidade de se concretizar, sendo-lhe indiferente.
Pela lei penal estão equiparadas a culpa inconsciente e a culpa consciente, e não havendo qualquer ressalva na legislação, "pois tanto vale não ter consciência da anormalidade da própria conduta, quanto estar consciente dela, mas confiando, sinceramente, em que o resultado lesivo não sobrevirá"9.
Para Bitencourt: "Os limites fronteiriços entre o dolo eventual e a culpa consciente constituem um dos problemas mais tormentosos da Teoria do Delito10".
De igual maneira, Juarez Cirino dos Santos11 "A definição do dolo eventual e sua distinção da imprudência consciente, como conceitos simultaneamente excludentes e complementares, é uma das mais controvertidas e difíceis questões de direito penal (...).".
Ainda sobre as principais diferenças entre o dolo eventual e a culpa consciente, Juarez Cirino dos Santos, assim dispõe em sua obra12:
"A literatura contemporânea trabalha, no setor dos efeitos secundários (colaterais ou paralelos) típicos representados como possíveis, com os seguintes conceitos-pares para definir dolo eventual e imprudência consciente: a) o dolo eventual se caracteriza, no nível intelectual, por levar a sério a possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, por conformar-se com a eventual produção desse resultado - às vezes, com variação para as situações respectivas de contar com o resultado típico possível, cuja eventual produção o autor aceita. b) a imprudência consciente se caracteriza, no nível intelectual, pela representação da possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, pela leviana confiança na ausência ou evitação desse resultado, por força da habilidade, atenção, cuidado etc. na realização concreta da ação."
Frisa-se, portanto, que a diferença se localiza muito mais na análise das circunstâncias do caso concreto, dando a impressão a quem aplica a lei penal de estar diante de uma ou de outra forma do elemento subjetivo do delito, do que na mente do agente. Pois como já afirmado anteriormente nessa obra, é de difícil ou quase impossível missão para o operador do direito consiga provar aquilo que "ocorreu" na mente do agente causador da infração penal, sem que haja exteriorização da vontade do agente.
2.5. Dolo Eventual e os Crimes de Trânsito
Nos últimos anos a mídia nacional vem repercutindo os delitos de trânsito, em especial quando há morte ou lesão corporal grave da vítima, conjugada com o fato do agente causador ter conduzido o veículo automotor em alta velocidade e após consumir bebida alcoólica.
Outrossim, também é de grande repercussão nos meios de comunicação e causam grande clamor social, quando há mortes ou lesões graves ocasionadas por agentes participava de corridas de rua, como "pegas ou rachas", ainda que sem qualquer ingestão de bebida alcoólica.
Nesse sentido, as recentes alterações no Código Brasileiro de trânsito, sempre no sentido de maior rigor na punição dos delitos culposos tipificados no CTB, em especial os versados nos artigos 302, 303 e 306, todas motivadas pela pressão e repercussão midiáticas, sempre após um acidente de trânsito e as combinações acimas referidas.
As citadas alterações no Código Brasileiro de Trânsito, acarretaram uma completa e total desproporcionalidade nos delitos culposos quando praticadas na direção de veículo automotor, sobretudo se o agente houver ingerido bebida alcoólica, com relação demais condutas culposas do nosso ordenamento jurídico.
Nesse sentido, se o agente após consumir bebida alcoólica voluntariamente, e por culpa ao brincar com seu revólver calibre 38, mata o amigo no bar, a pena de é 1 (um) de 3 (três) anos de detenção, nos termos do art. 121, §3º, CP. Todavia, se o mesmo agente, no mesmo bar, voluntariamente consome bebida alcoólica, e resolve voltar casa dirigindo seu próprio carro, e causa acidente, matando o mesmo amigo que voltava a pé, a pena §3º do art. 302, do CTB é de 5 (cinco) a 8 (oito) anos de reclusão!
Além disso, o mesmo CTB, no §3º do art. 303, prevê a pena de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão, para lesão corporal culposa da natureza grava ou gravíssima na direção de veículo automotor causada por agente em razão da influência do álcool.
Em contrapartida que o art. 129, §1º, do CP, ao tipificar conduta dolosa de lesão corporal grave, tem pena de 1 (um) a 5 (cinco) anos de reclusão, e sendo culposa a lesão, em qualquer caso, pena de 2 (dois) meses a 1 (um) ano de detenção!
Portanto, tais altercações legislativas, apesarem de serem comemoradas pela "sociedade" e grandes grupos de mídia, que violam frontalmente, não só a razoabilidade e a proporcionalidade, mas sobretudo a culpabilidade!
Por obvio, como direito penal não serve para resolver para prevenir crimes, sobretudos os culposos, os delitos na direção de veículo automotor, continuam a acontecer, e a mídia a repercutir sendo assim, surgiu um movimento tanto no Congresso Nacional como no âmbito do Poder Judiciário e do Ministério Público de punir mais rigorosamente essas ditas práticas criminosa, a partir de considerar todas essas condutas, como dolosas, por dolo eventual.
Portanto, vários Promotores de Justiça, com aceitação de parte da Magistratura, começaram a tipificar a conduta de dirigir em alta velocidade estando sobre o efeito de álcool, como conduta dolosa, por dolo eventual. No mesmo sentido, para agentes que realizavam pega ou racha, ainda que sem ingestão de álcool.
Como no caso do julgamento do Recurso Especial 1486745/SP13, onde o Superior Tribunal de Justiça, reconheceu a compatibilidade do homicídio com dolo eventual na direção de carro.
"RECURSO ESPECIAL E AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO PENAL. TRIBUNAL DO JÚRI. EMBARGOS INFRINGENTES. DECISÃO DE PRONÚNCIA. ART. 121, § 2º, III E IV, C/C O 14, II, (TRÊS VEZES), DO CP. DESCLASSIFICAÇÃO. TENTATIVA É COMPATÍVEL COM O DELITO DE HOMICÍDIO PRATICADO COM DOLO EVENTUAL NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. CASSAÇÃO DO ACÓRDÃO A QUO. SÚMULA 7/STJ. PRECEDENTE DESTE SUPERIOR TRIBUNAL. 1. Este Superior Tribunal reconhece a compatibilidade entre o dolo eventual e a tentativa, consequentemente cabível a decisão de pronúncia do agente em razão da suposta prática de tentativa de homicídio na direção de veículo automotor. 2. As qualificadoras de natureza objetiva previstas nos incisos III e IV do § 2º do art. 121 do Código Penal não são compatíveis com a figura do dolo eventual, prevista na segunda parte do art. 18, I, do mesmo diploma legal. 3. O dolo eventual não se harmoniza com a qualificadora de natureza objetiva prevista no inciso IV do § 2º do art. 121 do Código Penal, porquanto, a despeito de o agente ter assumido o risco de produzir o resultado, por certo não o desejou. Logo, se não almeja a produção do resultado, muito mais óbvio concluir que o agente não direcionou sua vontade para impedir, dificultar ou impossibilitar a defesa do ofendido. 4. A qualificadora descrita no inciso III do § 2º do art. 121 do Código Penal sugere ideia de suposta premeditação do delito e, consequentemente, o desejo do resultado. Ambas, portanto, são características da intenção do agente, não podendo, à semelhança do que ocorre com a tentativa, ser aceita na forma de homicídio cujo dolo é o eventual. 5. A análise das pretensões, quanto à desclassificação do delito ou a não ocorrência do dolo eventual demandariam por certo o revolvimento de matéria fático-probatória, não sendo possível pela via estrita do recurso especial, em razão do disposto no enunciado da Súmula 7/STJ. 6. Recurso especial do Ministério Público de São Paulo provido para, ao cassar o acórdão a quo, reconhecer a compatibilidade entre o dolo eventual e a tentativa e manter a decisão de pronúncia do recorrido na forma do acórdão proferido no Recurso em Sentido Estrito n. 0041713-69.2011.8.26.0001/SP. Agravo de Felipe de Lorena Infante Arenzon conhecido para negar provimento ao recurso especial." - RECURSO ESPECIAL Nº 1.486.745 - SP (2014/0259422-6).
Ocorre que essa suposta compatibilidade ou "fórmula", que tentam criar, como velocidade excessiva mais ingestão de álcool, ser igual a conduta dolosa por dolo eventual, não é dogmaticamente errada, acaba por banalizar o conceito de dolo eventual, e nesses termos, por vulgarizar toda teria do delito.
Não se pode admitir que todos que bebem e dirigem aceitaram o risco de produzir o resultado e não se importam em causar acidentes graves ou mortes. O dolo eventual como já visto nesse trabalho, sem banalização, consiste no fato de o agente não se importar com a ocorrência do resultado por ele previsto mentalmente, embora não o quisesse diretamente. Ao contrário da culpa consciente, onde o agente também tem previsão do resultado, mas acredita sinceramente que por suas habilidades ou utilizado, que o resultado por ele previsto e não aceito, não vai ocorrer, como ocorreu.
Portanto, no dolo eventual, o agente não se importa com a ocorrência do resultado por ele antecipado, porque o aceita. Para ele tanto faz. Na culpa consciente, o agente não quer e nem aceita o resultado por ele antecipado, porque se importa com sua ocorrência.
Por mais que possa ser atraente para sociedade leiga e para operadores do direito que vivenciam o clamor social no sentido de punir mais rigorosamente as condutas de atropelamentos com veículo automotor quando o condutor estar embriagado, ou ainda participa de "pegas/rachas" em via pública, não podemos admitir que esse suposto clamor social e equivocada pressão midiática, seja capaz de alterar nossa estrutura jurídico-penal. Não se pode simplesmente condenar o motorista por dolo eventual quando, na verdade, cometeu a infração culposamente.
Assim ensina André Luís Callegari:
"Nosso Direito Penal é o da culpabilidade, e culpabilidade nada mais é do que censurabilidade, reprovabilidade, juízo de pira censura e reprovação sobre a conduta do réu. Então, quanto mais censurável for a conduta do réu (embriaguez excesso de velocidade, número de vítimas), maior poderá ser reprimenda penal imposta pelo juiz ao aplicar dentro do delito culposo, ou seja, se a conduta do réu for extremamente censurável, aplica-se a pena máxima. A pena aplicada é a do delito culposo, devendo ser dosada de acordo com a culpabilidade do acusado".14
3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebe-se, portanto, que no Brasil, o legislador pátrio não adotou qualquer diferenciação entre condutas culposas consciente e inconsciente, sendo essa tarefa relegada a doutrina. Ademais, apesar do art. 18, inciso I, do Código Penal, ter expressamente previsto a conduta por dolo direto e indireto ou dolo eventual, a sua distinção é de problemática controvérsia no direito penal brasileiro, situando-se entre aceitação ou não do resultado pelo agente previsto.
Outrossim, tentou-se conceituar, bem como exemplificar os conceitos do dolo direito e dolo indireto (subdividido em dolo indireto alternativo e dolo eventual), demostrando a não ocorrência empírica do chamado dolo indireto alternativo, bem como as particularidades do dolo eventual e suas diferenças para com o instituto da culpa consciente ou culpa com previsão.
Tentou-se demonstrar a perigosa banalização do conceito de dolo eventual, em delitos culposos, onde há grande repercussão midiática e clamor social por maior punição.
Buscou-se trazer à baila importantes discussões, acerca da diferenciação da culpa consciente e do dolo eventual, sobretudo nos delitos praticados na condução de veículo automotor, bem como, se alertou da perigosa fórmula utilizada por parte da jurisprudência e alguns doutrinadores, em especial membros do Parquet, mesmo após inovações legislativas punindo mais rigorosamente crimes culposos no CTB, passaram a tipificar acidentes de trânsito com resultado morte ou de lesão corporal grave, como condutas dolosas por dolo eventual, desde que estivesse presente excesso de velocidade e ingestão de bebida alcoólica ou pratica de "racha ou pega" em via pública.
O que evidentemente viola a culpabilidade, a presunção de Estado de inocência e o devido processo legal. Não podendo jamais, o direito ser pautado por pressões midiáticas ou por maiorias circunstâncias do chamado clamor social.
Deduz-se, portanto, que embora possa haver casos raros de delitos de trânsito que o condutor do veículo estava agindo com dolo eventual após ingerir álcool ou no momento que praticava "pega ou racha", não é pela simples conjugação de embriaguez com a velocidade excessiva que se pode chegar essa ilação, e sim pelo seu elemento psicológico, subjetivo, ou seja, na análise do caso concreto, especificamente pelas provas produzidas, para que não haja uma banalização do conceito do dolo eventual, e seja resguardado o devido processo legal, independente da repercussão social ou midiática do fato.
Conclui-se então, apesar da não existir dificuldade em se conceituar dolo eventual ou culpa consciente, na pratica a diferenciação de deverás tormentosa, e mesmo havendo casos raros de delitos de trânsito que o condutor do veículo estava agindo com dolo eventual após ingerir álcool ou no momento que praticava "pega ou racha", não é pela simples fórmula "matemática" da conjugação de embriaguez com a velocidade excessiva que se pode chegar essa conclusão, e sim pelo seu elemento psicológico, subjetivo, ou seja, na análise do caso concreto, especificamente pelas provas produzidas.
Ademais por mais que o clamor social e a mídia tente influenciar os operadores do direito, não pode o Poder Judiciário, ante a sua função contra majoritária, bem como, o Ministério Público, como órgão público, regido pela legalidade e impessoalidade, serem levados a violar a dogmática penal e toda teoria do delito, para reconhecer como dolosa por dolo eventual, condutas oticamente culposas, pois nossa estrutura jurídico-penal é subjetiva e não objetiva, evitando-se assim a banalização do conceito de dolo eventual, e todos possíveis e inerentes efeitos deletérios da seletividade penal no processos de criminalização secundaria.
_______________
1 https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/699367853/os-processos-de-criminalizacao-primaria-e-secundaria
2 HC 115352 - DF, Segunda Turma. Rel. Min RICARDO LEWANDOWSKI, DJ 30.04.2013.
3MASSON, Cleber, Direito penal esquematizado. Parte geral: São Paulo: Método, 2019. V, 1, p. 250.
4 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal - P arte general, Barcelona: Bosch, 1981, p. 404.
5 MUÑOS CONDE, Francisco. Teoria geral do delito. p. 60, Livraria do advogado, 2 ed. 2009.
6 WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Tradução de Juan Bustos Ramirez e Sergio Yañes Peréz. Chile:Jurídica de Chile, 1987, p. 102
7 BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raul; ALAGIA, Alejandro e SLOKAR, Alejandro. 2 ed. Direito Penal Brasileiro II, I. Segundo volume, Tomo I - Teoria do delito. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 276.
8 PEDROSO, Fernando de Almeida. Direito penal. Parte geral. Doutrina e Jurisprudência: São Paulo: Método, 2008. V, 1, p. 458.
9 Mirabete, Júlio Fabbrini, Renato Nascimento. Manual de direito penal. P. Geral, SP: Atlas, 2010, p. 125/126
10 BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte geral, Saraiva, 26ª edição, 2020, pág. 403.
11 SANTOS. Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte geral, Tirant Lo Blanch, Brasil; 9ª ed., 2020, p. 156.
12 SANTOS. Juarez Cirino, obra citada, p. 157.
13 https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.2&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=201402594226
14 CALLEGARI, André Luís. Imputação Objetiva - Lavagem de dinheiro e outros temas do direito penal, Livraria do Advogado, 2ª edição, 2004, pág. 167-168.


