Dos cinco minutos sobre 45 laudas
A idealização do projeto de Florença e o que sobrou da lei 9.099/95 no Brasil - uma reflexão sobre a proximidade do seu trigésimo aniversário.
terça-feira, 22 de abril de 2025
Atualizado às 14:31
Nos idos de 1975 um grupo de pesquisadores de várias áreas, incluindo direito, sociologia, antropologia, economia, entre outros, de quase 30 países, se reuniram sobre a liderança de Mauro Capelletti e Bryant Garth no que foi nominado "Projeto de Florença". O objetivo era identificar os obstáculos que dificultavam o acesso ao sistema judicial.
O sistema judiciário de vários países e suas experiências na busca pelo efetivo acesso à justiça foi pesquisado, analisado e submetido à críticas. O objetivo era aprimorar os diversos modelos a partir de uma questão comum, que, por sinal, abre a obra intitulada "Acesso à Justiça" dos dois autores mencionados: "a que preço e em benefício de quem estes sistemas de fato funcionam"1.
Até hoje o "Projeto de Florença" é apontado como a maior e mais significativa pesquisa realizada nesse campo.
Principal problema identificado: a justiça era dispendiosa. O custo do sistema judiciário, aliado aos honorários de advogados, peritos, e de tempo dispendido, não era nem um pouco universalizante. Pelo contrário. A justiça não era para todos, mas para quem dispunha de tempo e dinheiro.
Com a substituição do Estado Liberal do laissez faire pelo Estado Social, a falta da concretização do acesso à justiça começou a incomodar. Uma vez que ao Estado não se resguardava mais o dever de simples abstenção na esfera privada dos indivíduos, mas a ele se impunha o dever da prestação e promoção dos direitos fundamentais, era primordial que o sistema de justiça fosse reavaliado e principalmente reestruturado.
O estudo passou então a identificar os principais obstáculos para universalização do acesso à justiça: 1) custas judiciais; 2) possibilidade das partes e; 3) problemas especiais dos interesses difusos.
No segundo obstáculo (possibilidade das partes), são mencionadas as questões das diferenças no aporte financeiro (uma das partes dispondo de mais recursos poderia apresentar argumentos mais eficazes no convencimento judicial); aptidão do jurisdicionado para reconhecer seus direitos, propor ação e se defender, do que são exemplos não necessariamente a parte hipossuficiente financeiramente, mas também tecnicamente, como os consumidores em geral, inquilinos, entre outros, além da disposição psicológica para recorrer à via judicial (tempo) e, por fim, a diferença entre litigantes contumazes (grandes empresas), e os eventuais, dispondo aqueles de maior conhecimento de manipulação dos instrumentos judiciais.
Com relação ao terceiro obstáculo (interesses difusos), a problemática cinge-se no fato de que ou inexistia legitimado para pleitear seu amparo em juízo, ou a recompensa pela busca individual da tutela era irrisória demais.
As soluções práticas alcançadas para superação desses obstáculos foram catalogadas em três "ondas", buscando-se como parâmetro, como dito, as experiências governamentais em diversas partes do planeta.
A primeira "onda" começa pelos modelos de assistência jurídica gratuita (sistema do judicare, advogado remunerado pelos cofres públicos, ou modelos combinados)2.
Na segunda "onda" aparecem as class action, além dos métodos de representação adequada dos interesses difusos3.
Na terceira "onda", abre-se um novo enfoque do acesso à justiça, através da conscientização dos jurisdicionados acerca dos próprios direitos, propondo-se uma ampla variedade de reformas, incluindo procedimental, estrutural dos tribunais, uso de pessoas leigas ou paraprofissionais, modificações procedimentais destinadas a evitar litígios ou facilitar sua solução, além da utilização de mecanismos privados ou informais para solução de demandas4.
A ideia era adaptar o processo civil ao tipo de litígio, distinguindo as características destes últimos para identificação de suas barreiras e a sua necessária transposição.
A barreira do custo da justiça poderia ser resolvida com limitação dos expedientes recursais, por exemplo, a prevalência da oralidade, a implantação de tribunais mais céleres e acessíveis. A experiência de alguns países nesse sentido, no entanto, apontou que a presença de advogados, e a resistência dos juízes em abandonar o sistema tradicional, acabou facilitando que o novo sistema fosse utilizado primordialmente para que credores cobrassem suas dívidas de indivíduos comuns, ao invés de possibilitar que estes viessem a pleitear seus direitos.
Para avançar esse problema, novas soluções foram propostas: 1) promover a acessibilidade desencorajando ou proibindo a representação por advogado, simplificando a forma de ajuizamento da demanda, disponibilizando funcionários para atendimento das partes; alteração do estilo de decisão, e simplificação do direito aplicado; 2) a equalização das partes através de julgadores mais ativos e menos formais, simplificando as regras de produção probatória, e excluindo desses tribunais especializados autores comerciantes, com investigação mais acurada dos juízes mesmo nos casos de revelia; 3) alteração do estilo da tomada de decisão e; 4) simplificação do direito aplicado[5].
Soa familiar? Pois bem.
Nos idos de 1995 o trabalho produzido pelo "Projeto de Florença" repercutiu forte no meio acadêmico do Brasil. Entrava em vigor a Lei 9.099/95, que condensava vários dos institutos indicados naquele estudo como aptos à solução dos dois principais obstáculos do acesso efetivo à justiça: custo e tempo.
Abraçando a ideia de universalização do acesso à justiça, o instituto recém ingresso no ordenamento jurídico continha institutos expressamente indicados no "Projeto de Florença": a dispensa de advogados nas causas de menor valor, a oralidade e a informalidade (facilitando a instrução probatória), a vedação do ingresso por empresas de maior poder aquisitivo ou causas de maior complexidade, a redução de custos com a contratação de juízes leigos e funcionários de balcão para auxílio das partes, a distribuição geográfica dos tribunais mais acessíveis ao público em geral, a redução do número de recursos, entre várias outras ferramentas.
Em 26 de setembro de 2025 a lei comemorará seus 30 anos de vigência, e a reflexão a ser feita é se de fato galgou superar os obstáculos que se dispôs a fazê-lo.
Em 15/05/25 no Portal Migalhas6 a advogada Beatriz Freitas Santos apresentou gravação em que o juízo lhe disponibilizava cinco minutos para se manifestar sobre 45 laudas de contestação anexada aos autos do processo uma hora e meia antes do início da audiência de instrução e julgamento. Apesar da noticiante não ter indicado em qual área teria ocorrido a excrescência, forçoso reconhecer que, a julgar pelo rito procedimental, e pela defesa dos direitos consumeristas suscitados posteriormente pela mesma profissional, se estava no procedimento afeto à lei 9.099/95.
Os comentários que repercutiram da matéria dão conta que de fato, numa análise empírica, a aplicação da lei no Brasil em muito se afastou dos objetivos incorporados no "Projeto de Florença".
A questão é que todos esses problemas foram objeto de prognóstico, e o alerta deveria ter servido para evitar o atual estado da arte no âmbito dos Juizados Especiais.
Na conclusão da obra, os autores alertam para o fato de que algumas reformas tendentes a eliminar uma barreira do acesso à justiça podem criar outras, assim como procedimentos mais rápidos e com pessoal com menor remuneração podem resultar em um produto barato e de má qualidade. Ao fim, a ideia não era fazer a justiça mais pobre, mas torná-la acessível à todos, inclusive aos pobres7.
Na prática, a eliminação do excessivo número de recursos, assim como a simplificação das decisões, fez com que estas se tornassem absolutamente solipsistas. Decisões solipsistas não se prestam à pacificação dos conflitos. Terminar conflitos é completamente distinto de pacificar conflitos. Acredito que quanto à isso não haja contraposição.
Em âmbito judicial, o solipsismo é o filho dos vieses cognitivos, já que a fundamentação das decisões, nos moldes que hoje é preconizado pelo artigo 489 do Código de Processo Civil, tem por escopo justamente afastar qualquer tendência enviesada do julgador, ao obrigá-lo a descrever ao jurisdicionado, pormenorizadamente, por onde caminhou seu raciocínio até o dispositivo da decisão.
Ao conferir à parte cinco minutos para manifestação acerca de 45 laudas de defesa, é evidente que o viés de confirmação já estava instalado no imaginário do julgador, e isso se traduz em verdadeira negativa de prestação jurisdicional tendo como lastro, lamentavelmente, o texto legislativo da lei 9.099/95, que não prevê expressamente prazo para réplica. É o positivismo jurídico, tão combatido no último século após a derrota do fascismo e do nazismo8, em desserviço da justiça.
A questão que se coloca é que a lei 9.099/95, como todo ordenamento jurídico, deve ser permeada em sua interpretação e aplicação pelo texto constitucional, e se espera que o aplicador do Direito tenha aptidão para esse exercício hermenêutico. O argumento de "não estar positivado na lei" também não se sustenta, desde que aos princípios constitucionais foi conferido força normativa9.
Existe aqui a crítica de que a orientação burocrático-utilitária pelo atingimento de metas vem esvaziando diuturnamente direitos e garantias fundamentais do processo10.
Partindo da premissa de que há algumas décadas experimentamos o fenômeno da descodificação do direito11 através do movimento do neoconstitucionalismo pós-positivista, onde a Constituição passa a ser à base de interpretação e aplicação de todo ordenamento jurídico, e de que essa concepção permeou integralmente a reforma processualista no Brasil através da promulgação do Código de Processo Civil de 2015, a questão debatida neste caso se torna ainda mais inconstitucional.
Ainda em 2002, ou seja, treze anos antes da promulgação do Código de Processo Civil, sustentou Leonardo Greco12:
"Ninguém pode ser atingido por uma decisão judicial na sua esfera de interesses sem ter tido ampla possibilidade de influir eficazmente na sua formação. O contraditório é consequência do princípio político da participação democrática (...) c) congruidade dos prazos: os prazos para a prática dos atos processuais, apesar da brevidade, devem ser suficientes, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, para a prática de cada ato da parte com efetivo proveito para a sua defesa (...) A efetiva possibilidade de utilização dos prazos obriga a uma revisão das regras disciplinadoras da devolução ou prorrogação dos prazos. Se a parte demonstra ter ficado impossibilitada de praticar o ato no prazo por motivo alheio à sua vontade, o prazo deve ser-lhe devolvido, se já findo, ou prorrogado"
Em suma, no contraditório participativo, o provimento não é mais um ato solitário do julgador, mas sim fruto do debate procedimental das partes, sendo legítimo quando é resultado dos argumentos trazidos13. Se não houve oportunidade para apresentação dos argumentos em contraditório, não há legitimidade alguma na decisão, e não há prestação jurisdicional14. Nas palavras de (MADEIRA, 2008), "não se indefere um direito fundamental; efetiva-se".
Não obstante, se a questão em análise era a falta de positivação, os artigos 9º e 10 do Código de Processo Civil, comumente identificados como princípio da não surpresa, na verdade tem por escopo viabilizar o contraditório participativo. Por isso que à cada decisão sustentando que "o juiz é o destinatário das provas", aparece a figura de uma gravata borboleta ao lado da assinatura do prolator. Nenhum jargão pode ser mais obsoleto:
O Estado Democrático de Direito abandona o mito, quer seja o da lei infalível, quer seja o da autoridade sábia. As Constituições Democráticas de todo o mundo passam a delinear mecanismos procedimentais de fiscalização dos atos dos agentes governativos, sendo os mesmos responsabilizados por seus atos e controlados pelos destinatários da norma. Eis o motivo pelo qual, hoje, usa-se muito a palavra transparência como forma de propiciar que os cidadãos fiscalizem os atos das autoridades públicas. Nas democracias, mais importante do que indagar quem será o governante é saber como fiscalizá-lo15.
A questão aqui não se resume aos 5 minutos para 45 laudas, mas transcende o caso concreto para fins de repercussão geral (artigo 102, §3º da CRFB/88). É verdade que a lei 9.099/95, ao implementar no Brasil as sugestões do "Projeto de Florença", primou pela celeridade e a rápida solução dos litígios de menor complexidade, afinal, tempo é custo. Não obstante, a lei deve buscar na Constituição sua validade e, portanto, não pode suprimir o contraditório e a ampla defesa materialmente protegidos como direito individual e indisponível, previstos no núcleo duro da Magna Carta (artigo 5º, inciso LV da CRFB/88). Ao ser expressamente concedido cinco minutos para uma defesa contra 45 laudas de argumentos e documentos instrutórios, o juízo violou cláusula pétrea, propiciando à parte um contraditório meramente formal, fazendo do direito fundamental mero arremedo de texto legislativo, esvaziando sua eficácia. O enfraquecimento da força normativa da Constituição coloca em xeque todo ordenamento jurídico, e demanda a atuação da Corte Superior como seu guardião legitimado.
Nesse aspecto, a concessão de prazo razoável não retira o caráter de celeridade no rito especial, mas sim se alia ao princípio da efetividade da prestação jurisdicional, justa e correta, logo, legítima.
Por fim, ao privar da parte que se socorre ao rito da Lei 9.099/95 o direito ao contraditório material, ou seja, da possibilidade de efetivamente influenciar a decisão final, o órgão julgador subverte toda lógica do "Projeto de Florença", cujos estudos, análises e críticas, buscavam propiciar o acesso à justiça ao hipossuficiente tecnicamente (e materialmente) frente aos grupos econômicos, ou litigantes contumazes ou, nas palavras de 1978, dos "comerciantes". Mas não. A lógica brasileira nesse caso foi inversa: privilegia o próprio poder econômico que, em litigância predatória, se utiliza do prazo de resposta para se delongar por 45 laudas sem possibilidade de defesa, ao argumento de que a celeridade do rito não comporta réplica. Dizia Boaventura de Sousa Santos que "há muito um jurista chileno dizia que não fazia sentido lutar no seu país pelo acesso à justiça por parte das classes populares já que o direito substantivo era tão discriminatório em relação a elas que a atitude político democrática consistia em minimizar o acesso"16. Já há quem defenda que os Juizados Especiais deveriam ser extintos, dada as maciças críticas à qualidade das decisões e dos julgamentos, ou do tratamento dispensado às partes. Aguarda-se, no entanto, que a resposta seja pelo aprimoramento do sistema, o que invariavelmente irá demandar atuação mais incisiva do Supremo Tribunal Federal, especialmente na admissão de recursos extraordinários contra violações frontais ao ordenamento constitucional, que vem colocando em questão a própria viabilidade da subsistência na justiça especializada.
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1 CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Sergio Antônio Fabris Editor. Porto Alegre/1988.
2 Idem, p. 31.
3 Idem, p. 49.
4 Idem, p. 67.
5 Idem, p. 94.
6 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=47jAVHOcuLo
7 Idem, p. 161/162.
8 BARROSO, Luís Roberto. NEOCONSTITUCIONALISMO E CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista33/Revista33_43.pdf
9 Ver sobre: BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional. 1ª ed. 4ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2008. Pg. 85. "No Brasil, a força normativa e a conquista de Efetividade pela Constituição são fenômenos recentes, supervenientes ao regime militar, e que somente se consolidaram após a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988".
10 Ver sobre: ARCELO, Adalberto Antônio Batista. ATIVISMO DECISIONISTA E ESTADO DE EXCEÇÃO: como a jurisdição constitucional tem rebaixado a promessa de um Estado Democrático de Direito brasileiro a um atual Estado de Exceção.
11 VARELA, João de Matos Antunes. O movimento de descodificação do direito civil. In: Estudos em homenagem a Caio Mário da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 1984
12 GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: O processo justo. Novos Estudos Jurídicos - Ano VII - Nº 14 - p. 9-68, abril / 2002
13 Ver sobre: MADEIRA, Dhenis Cruz. PROCESSO DE CONHECIMENTO E COGNIÇÃO Uma inserção no Estado Democrático de Direito. Juruá Editora. 2008. Curitiba. P. 167.
14 COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. Buenos Aires: Depalma, 1974. p. 253. Tradução: "Uma prova que se produziu às costas do outro litigante, por regra geral, é ineficaz. O cúmulo de normas do procedimento probatório é um conjunto de garantias para que a contraparte possa cumprir sua obra de fiscalização. O princípio dominante nesta matéria é o de que toda prova se produza com ingerência epossibilidade de oposição da parte a que eventualmente possa prejudicar".
15 MADEIRA, Dhenis Cruz. O mito da lei, o mito da autoridade e a morte dos mitos: reflexões sobre os três paradigmas constitucionais de Estado de Direito. In: Revista Jurídica do Cesupa. v. 1. n. 1. 2019. Belém: Centro Universitário do Estado do Pará. Disponível em: http://periodicos.cesupa.br/index.php/RJCESUPA/article/view/18. Acesso em 15/03/2021. Ressalta trecho de : POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Trad. Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1987, p. 140, t. 2
16 SANTOS, Boaventura de Sousa Santos. Introdução à Sociologia da Administração da Justiça. Revista Crítica de Ciências Sociais. Nº 21. Novembro 1986. P. 29.


