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Distanásia e o Direito à própria vida e ao próprio corpo

A necessária reflexão sobre o avanço tecnológico da medicina em contraposição ao direito à própria vida e ao próprio corpo.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Atualizado às 14:29

1. Introdução

O termo "vida" tem diversos significados: como substantivo feminino, caracterizando os organismos cuja existência evolui do nascimento até a morte. Em termos científicos já foi definida como "um sistema químico auto sustentável capaz de evolução Darwiniana". Fisiologicamente a partir de suas funções (alimentação, reprodução, metabolização, etc). Filosoficamente, como "aquilo pelo qual um ser se nutre, cresce e perece por si mesmo" (Aristóteles, Da Alma, II, 1, 412a, 10-20). Ou, por fim, sacralizada como dom precioso de Deus, do qual o ser humano não tem nenhum direito, pois apenas à Ele pertence (Êxodo 20:13 e Jó 12:10).

A verdade é que essa pluralidade de "definições" evidencia que distinguir seres vivos de não vivos é dificílima, razão pela qual há milênios grandes intelectuais debatem esse tema sem uma resposta que agrade todas as áreas do saber. A conceituação, portanto, fica à cargo da nossa intuição.

Não obstante a sua acepção jusnaturalista (como direito que já nasce incorporado ao homem, independente do reconhecimento estatal), é de fundamental importância que seja aferido seu enquadramento jurídico no nosso ordenamento, a fim de que reste estabelecido seu âmbito de proteção quando tratamos das questões envolvendo a distanásia, em razão dos debates que vem se acendendo progressivamente em decorrência dos avanços da tecnologia na área da medicina, permitindo o prolongamento da morte de forma artificial, em prejuízo da agonia do paciente, despido do direito basilar de uma morte digna.

2. Do enquadramento jurídico do direito à vida e à morte:

Quando se refere ao direito da liberdade à própria vida e ao próprio corpo, estamos partindo da acepção do Direito à qualidade de vida, a vida digna, social, ao mínimo existencial. É o que se espera de um texto constitucional diretivo e irrigado de princípios dotados de normatividade. Enquanto o art. 5º, caput da CRFB/1988, tal como o art. 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, garantem o direito à vida e à liberdade lado a lado, a qualidade de vida se apresenta no art. 1º, inciso III (princípio da dignidade da pessoa humana), 3º (promoção do bem de todos como objetivo do Estado), e demais incisos do próprio art. 5º, todos com eficácia imediata, tal como dispõe o §1º.

A alocação do direito à vida e à liberdade transversalmente se traduz no direito à autonomia sobre os atos decisórios acerca da própria vida e ao próprio corpo, dispondo ainda o art. 12 da DUDH que ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada.

É preciso reconhecer a tutela constitucional do direito à própria vida e ao próprio corpo, para entender o enquadramento jurídico e legal da distanásia, objeto deste estudo. Por seu turno, não se deve olvidar que a morte nada mais é que o desdobramento da vida, da sua evolução natural, razão pela qual sua tutela jurídica se subsume aos mesmos ditames. Na lição de José Afonso da Silva, "a vida transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte".

No julgamento da ADPF 54, tendo como tema a utilização de embriões excedentários para pesquisa com células tronco, em diversas passagens os ministros do STF debateram sobre a prevalência da vida fora do útero a merecer tutela jurisdicional, sendo aventada a tese, no entanto, de que no embrião estagnado, no qual a vida não se desenvolve, não há que se falar em projeção da vida. A interpretação a contrario senso dessa perspectiva, leva a conclusão de que a morte, como evolução natural da vida, tem seu enquadramento jurídico nos exatos moldes desta.

3. Do conceito da distanásia:

A distanásia consiste no atuar médico que, no intuito de "salvar" a vida do paciente, submete-o à grande sofrimento, não prolongando a vida, mas o processo da morte. Daí porque Gustavo Binenbojm, em sua obra "Liberdade" igual se refere à distanásia como prolongamento artificial do processo de morte. O dicionário Aurélio define distanásia como "morte lenta, ansiosa e com muito sofrimento". Também é identificada como obstinação terapêutica nos países europeus, ou futilidade médica (nos Estados Unidos), podendo ser prima facie associada ao antônimo da eutanásia.

Apesar de alguma variedade entre os estudiosos da etimologia, pode-se dizer que o prefixo grego "dis" tem o significado de "dificuldade", "mal funcionamento" (para alguns, "afastamento"), enquanto "eu" significa "bom", "verdadeiro", e "thanatos" morte. Daí a antítese que é colocada entre eutanásia e distanásia. A boa morte versus a morte lenta e dolorosa.

Veja que, enquanto na eutanásia ocorre a interrupção do processo vital por ação de terceiro ou do próprio paciente (por isso a alcunha de "homicídio piedoso"), na distanásia há o prolongamento artificial do processo de morte. Conforme (SILVA, 2002), na eutanásia ocorre uma forma não espontânea de interrupção do processo vital, ressaltando o autor, sem se sugerir especificamente ao termo distanásia, que:

Cumpre observar que não nos parece caracterizar eutanásia a consumação da morte pelo desligamento de aparelhos que, artificialmente, mantenham vivo o paciente, já clinicamente morto. Pois, em verdade, a vida já não existiria mais, senão vegetação mecânica. Ressalve-se, é evidente, culpa ou dolo na apreciação do estado do paciente.

Necessário ainda sua distingui-la da ortotanásia. O prefixo grego "orto" significa "correto", e ortotanásia indicaria "morte em seu tempo certo", sem prolongamentos desproporcionais, sensível ao processo de humanização e alívio de sofrimentos adicionais, através de cuidados paliativos, sem a utilização de meios para abreviar a vida ou prolongá-la.

Profissionais da área médica por diversas vezes chamam a atenção de que, apesar de toda controvérsia debatida sobre a eutanásia, na prática, a distanásia vem ocorrendo rotineiramente nas unidades de terapia intensiva, sem que isso chame tanto atenção para o debate, apesar de anular por completo o direito à própria vida no sentido que ora estamos trazendo, como qualidade de vida e a morte como seu natural desdobramento.

CEZAR ZILLIG, Médico especialista em neurologia e neurocirurgia, em crônica publicada na Revista Iátrico, ilustra o grau de violação ao direito à liberdade quando reclama que "hoje, cães têm o benefício da eutanásia, uma confortável maneira de desembarcar deste mundo. Já as pessoas, principalmente aquelas muito apegadas à vida, têm experimentado mortes ignóbeis, agonias arrastadas, pelo uso equivocado da tecnologia médica".

A problemática não se restringe apenas na violação ao direito à liberdade da própria vida e ao próprio corpo. Em um país como o Brasil, com extrema defasagem na prestação dos serviços de saúde, intensivistas denunciam diuturnamente a difícil tarefa que lhes é atribuída de indicar a liberação de um leito ocupado por paciente em situação de distanásia, em processo de morte diferida e em sofrimento, em detrimento de outro, com reais chances de tratamento e prolongamento de uma vida digna.

Nesta senda, o cardiologista Dr. JOSÉ EDUARDO SIQUEIRA adverte que 

"Questões éticas e técnicas de cuidados críticos oferecidos a pacientes terminais geram acalorados debates acadêmicos e jurídicos no campo da bioética desde seu surgimento nos Estados Unidos, no início dos anos 1970. Esse campo do conhecimento é valioso instrumento para propor mudanças na cultura ocidental, que persiste em considerar a morte como tabu, negando a realidade da finitude da vida. A Associação Médica Mundial, ao longo dos últimos anos, tem lançado vários documentos que alertam os médicos sobre procedimentos desproporcionais na terminalidade da vida. Nesse contexto, a normatização do CFM busca otimizar o fluxo de atendimento diante da carência crônica de leitos de cuidados intensivos em hospitais brasileiros. É de grande valia para os médicos no momento de tomar decisões quanto à admissão ou alta de pacientes em UTI. Um complicador na definição de critérios para acolhimento em UTI é a internação de pacientes que, embora graves, têm pouca possibilidade de recuperação e mesmo assim recebem cuidados intensivos convencionais. Essa situação caracteriza prática desarrazoada, pois apenas prolonga o processo de morrer e invariavelmente resulta em mais sofrimento para pacientes e familiares. É o que denominamos obstinação terapêutica ou distanásia. Pacientes com doença terminal sem possibilidade de cura são admitidos em caráter excepcional; e essa decisão depende da avaliação do médico intensivista. O clamor das famílias é compreensível, mas ao submeter-se a ele, corre-se o risco de ocupar leitos de forma injusta, privando desse direito pacientes críticos com chances reais de recuperação. Apesar do tabu em torno da morte, é preciso encará-la com mais naturalidade e poupar pacientes de agonia insensata e prolongada, respeitando seus valores e crenças pessoais para que possam completar ciclos vitais com dignidade."

A polêmica da distanásia ganhou a atenção popular no caso "Tinslee Lewis" em 2019. A criança, nascida em fevereiro 2019, era portadora da chamada anomalia de Ebstein, síndrome cardíaca congênita, que no caso de Tinslee foi considerada pelo hospital como incurável e irreversível, sendo então mantida viva por aparelhos desde seu nascimento. 

A problemática surgiu em razão da lei de diretivas antecipadas do Texas, que admitia aos médicos a decisão encerrar o tratamento de suporte mesmo contra a vontade dos pacientes e suas famílias após revisão do comitê de ética ou médico, dando à família dez dias para encontrar instalação alternativa para fornecer tratamento. A votação pelo encerramento do tratamento do bebê foi por 19, dos 22 membros do comitê de ética.

Tinslee tinha um ano, e já havia passado por diversas cirurgias para corrigir sua condição, mas seus pulmões não conseguiam levar oxigênio para a corrente sanguínea. Quando da decisão do comitê, estava sedada e em suporte de vida (ventilador).

Sua mãe não conseguiu encontrar outro hospital que aceitasse a bebê no exíguo prazo legal, e recorreu aos tribunais para mantê-la na unidade de terapia intensiva com suporte de vida artificial. A defesa do hospital, nesse caso, alegava obstinação terapêutica por parte da família de Tinslee, argumentando que ela não teria condições de sobrevida fora da unidade de terapia intensiva em que se encontrava desde seu nascimento, sentindo dor e em estágio terminal. Ademais, a lei resguardava a ação dos hospitais do Texas, mesmo contra a vontade dos pacientes e seus familiares.

O procurador geral do Texas, Ken Paxton, ingressou na ação como amicus curiae em apoio à causa da mãe, argumentando que o estatuto não garantia aos pacientes a informação do "por que ou como" o atendimento deve ser encerrado, não garantia oportunidade de ser ouvido, ou mesmo um árbitro imparcial no caso de desacordo entre médico e paciente. A decisão era unilateral do hospital. 

A Suprema Corte dos Estados Unidos negou o apelo do hospital. Posteriormente, a lei foi modificada para vedar ao médico o julgamento sobre a qualidade de vida do paciente, devendo ser garantido a liberdade ao próprio e à família definir como querem viver. De acordo com o periódico Texas Public Policy Foundation, após a decisão judicial, Tinslee retornou com vida para sua casa, no uso de um ventilador portátil por 24 horas.

O caso de Tinslee chama atenção para outro aspecto da distanásia: o interesse econômico, seja pelo investimento em procedimentos inúteis, mas rentáveis aos organismos de saúde, ou pelo uso do termo para aliviar uma despesa indesejável por parte do prestador de serviços médicos, suscitando a prática de distanásia em hipóteses que não são terminais. Nesse último aspecto, chama-se a atenção para o extremo do "utilitarismo pessimista", expressão usada para designar o fenômeno que preconiza a valorização da vida apenas a partir da sua utilidade social, e defende seu término quando se torna um peso, o que pode levar ao abuso de não utilizar tratamentos disponíveis, especialmente em situações de deficiências.

Eventualmente, outros interesses podem estar ocultos, em confronto ao direito à própria vida do paciente. No Brasil, talvez o caso mais famoso de distanásia tenha sido do então presidente Tancredo Neves, que supostamente foi mantido vivo para que sua morte ocorresse no dia de Tiradentes. Eleito após 21 anos de ditadura militar, Tancredo Neves derrotou em eleições indiretas Paulo Maluf, candidato apoiado pelos militares. Na véspera da sua posse, em 14/3/1985, sentiu forte dores abdominais e foi internado às pressas. No dia seguinte, tomou posse José Sarney. Tancredo permaneceu internado por 38 dias, e passou por 7 cirurgias, sendo declarado morto em 21/4, vítima de infecção generalizada. 

4. Meios ordinários e extraordinário

A análise dos dois casos concretos mencionados alcança outro debate necessário: as diferenças entre tratamentos médicos ordinários e extraordinários. Em apertada síntese, define-se aquele como o tratamento padrão e com probabilidade de sucesso, sem provocar sofrimento desnecessário, enquanto este são os considerados inovadores ou experimentais, potencialmente causadores de sofrimentos ou custos excessivos.

Sustenta (BRANCO, 2025) que ante a irreversibilidade do estado terminal, não configura eutanásia a suspensão do tratamento extraordinário aplicado ao paciente, o mesmo não ocorrendo para hipótese do tratamento ordinário, não se justificando, "a interrupção, por exemplo, da alimentação do paciente, mesmo que por via intravenosa, provocando a morte por inanição, nem a suspensão do auxílio externo para a respiração".

A doutrina dos meios ordinários e extraordinários, com origem ainda na Idade Média, foi desenvolvida por Francisco de Vitória (1486-1546), Domingo de Soto (1494-1560) e Domingo Báñez (1528--1604), da Universidade de Salamanca. Segundo (MONTEIRO, 2020), "a distinção entre os meios ordinários e extraordinários passou a ser algo confusa e pouco esclarecedora com a aquisição de novos conhecimentos na área da medicina e com a consequente evolução tecnológica".

Não obstante, os tratamentos ordinários ainda dependem das diferentes circunstâncias de pessoas, lugares, tempo e culturas. O fardo inaceitável de um, pode não ser de outro, o mesmo valendo para os meios extraordinários, de onde se depreende que sua consideração varia conforme o caso concreto, o que fortifica o argumento da prevalência da liberdade de escolha e autodeterminação do paciente.

5. Do tratamento jurídico à guisa da (ainda) omissão do legislador

Retornando desse recorte histórico, acredito que a questão da distanásia ficou bem delineada nos argumentos do procurador geral do Texas, Ken Paxton. O direito à informação para garantir ao paciente e seus familiares a decisão acerca da liberdade de decidir sobre a própria vida, à morte e ao próprio corpo. A tutela da liberdade de expressão é a chave para garantia contra a prática da distanásia. 

Com o atraso do legislador para tratar do tema, o Conselho Federal de Medicina editou a resolução 1.995/12, regulamentando as diretivas antecipadas de vontade, também chamado de "testamento vital". A normativa destaca a questão da autonomia do paciente (liberdade de expressão), diante dos novos recursos tecnológicos que permitem a adoção de medidas desproporcionais que prolongam o sofrimento em estado terminal sem trazer benefícios, permitindo que, uma vez informado e esclarecido, o paciente possa rejeitá-las antecipadamente. Define diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade (art. 1º). Prevê ainda a possibilidade de o paciente indicar representante para tal fim, e a negativa do médico em considerar as diretivas se, em sua análise, estas estiverem em desacordo com os princípios do Código de Ética Médica. Nesse último aspecto, entraria a hipótese de eutanásia, caso constasse no testamento vital. Se a conduta desejada é vedada no nosso ordenamento, seria caso de abstenção médica justificável.

Por sua vez, a resolução 1.931/2009 do CFM -Código de Ética Médica dispõe que é vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte (art. 31). Dispõe ainda o art. 41 que é vedado ao médico abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Nos casos de doença incurável e terminal, deverá o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. 

A mesma resolução institui como princípio fundamental "no processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas" (XXI). Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico deve se abster da realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários, propiciando aos pacientes sob seus cuidados todos os cuidados paliativos apropriados (XXII).

Possível depreender, portanto, que a distanásia é vedada pelo Código de Ética Médica em seu art. 41, parágrafo primeiro, sendo então recomendada a prática da ortotanásia.

Apesar do esforço pelas mudanças paradigmáticas, lastreada em direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição Federal, dentro dos hospitais ainda rege a era do "ninguém morre no meu plantão", sendo então a prática da distanásia uma rotina cruel. A Medicina Paliativa foi reconhecida como área de atuação médica pelo CFM e pela Associação Médica Brasileira, mas ganha espaço aos poucos por ausência de informação. Falta tornar as diretivas antecipadas de vontade algo universal, que traria menos sofrimento e mais razoabilidade na gestão dos recursos. O médico possui fé pública, razão pela qual o simples registro no prontuário do paciente possui efeito legal, desde que o indivíduo se encontre lúcido, orientado, plenamente consciente e informado sobre suas decisões e desdobramentos.

Não obstante, para que a diretiva antecipada de vontade encontre terreno fértil para sua eficácia, é necessário sua validação e reconhecimento pelos tribunais, a fim de resguardar profissionais da medicina de qualquer questionamento sobre sua conduta quando a vontade antecipada do paciente, por exemplo, é contrária à de seus familiares. Por conta disso, melhor teria sido o legislador sair da inércia com a edição de normativa mais robusta, e com maior eficácia normativa do que a resolução do CFM.

Nessa seara, importante destaque o art. 15, §1º do projeto de reforma do Código Civil, atualmente em tramitação: É assegurada à pessoa natural a elaboração de diretivas antecipadas de vontade, indicando o tratamento que deseje ou não realizar, em momento futuro de incapacidade. Os arts. 1.778-A e seguintes regulamentam a diretiva antecipada da curatela, devendo ser formalizada por escritura pública ou instrumento particular. Justifica essa última a inovação apontando como espécie de "testamento para a vida", em que o interessado delineia a forma como deseja ser tratado, no caso de perda de sua autonomia cognitiva.

6. Conclusão

A temática debatida surge das implicações advindas pelo progresso científico e tecnológico na área médica, já que em regra é possível aferir a distanásia em hipóteses de prolongamento artificial da morte, o que somente seria possível, hodiernamente, através do uso da tecnologia disponível. 

No contexto hora versado, a distanásia é vedada, pois viola garantias fundamentais de terceira dimensão, nestes incluídos os de titularidade coletiva, especialmente no direito ao meio ambiente e qualidade de vida. Nesse sentido, Ingo Wolfgang Sarlet inclui entre os direitos fundamentais de terceira dimensão as garantias contra manipulações genéticas, o direito de morrer com dignidade, mudança de sexo, entre outros, ressaltando a existência doutrina que os inclui entre osdireitos quinta dimensão (entendido esses como os direitos vinculados aos desafios da sociedade tecnológica, da internet e realidade virtual em geral). Não obstante, ressalta que na verdade tais direitos estão intimamente relacionados à ideia de liberdade-autonomia e da proteção de vida (e morte) contra ingerência por parte do Estado ou particulares, "cujo reconhecimento se impõe em face dos impactos da sociedade industrial e tecnológica".

Registro que o direito à morte aqui tratado foi no seu sentido constitucional, como um fato decorrente da própria vida, da vida livre. Apesar de estarmos falando de direito à própria vida e ao próprio corpo, é importante que se tenha em mente que um direito não pode exterminar outro. Por exemplo, no suicídio há o desvio do direito da liberdade que põe fim à própria vida. Portanto, liberdade e vida devem ser interpretadas como consequências lógicas. A liberdade serve à vida, e não a extermina. A liberdade dá ao indivíduo o direito de escolher como viver. 

O que se busca, portanto, é garantir o direito à vida digna aos pacientes terminais. Neles, a morte já se instaurou, sem possibilidade de reversão. Ou seja, aqui a morte é decorrência da vida, e se a vida é um direito fundamental, a decisão acerca de até que ponto seguir no tratamento invasivo, inútil, que esvai a dignidade do paciente, pode prosseguir contra a sua vontade, violando a sua liberdade sobre à própria vida e ao próprio corpo.

O direito à vida, interpretado como algo absoluto, intangível e sagrado, ou seja, despido da liberdade, dá margem à violação de outros direitos constitucionalmente assegurados do paciente, como a sua autonomia e dignidade. Tal concepção já foi afastada até mesmo por quem a sacralizou como dom precioso de Deus, do qual o ser humano não tem nenhum direito. O Papa João Paulo II, em sua encíclica de 1995 "Evangelium Vitae" ("O Evangelho da Vida")  reafirmou  a distinção entre tratamento médico ordinário e extraordinário: "Renunciar a meios extraordinários ou desproporcionais não é o equivalente ao suicídio ou à eutanásia; antes, expressa a aceitação da condição humana diante da morte." 

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BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 20ª edição. 2025. São Paulo. Editora Saraiva.

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Beatrice Merten

VIP Beatrice Merten

Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro. Pós Graduada e Mestranda em Direito.

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