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Existe guarda compartilhada de animais?

Aborda a inviabilidade de transposição literal do instituto da guarda compartilhada para tutela dos animais de estimação, assegurando a necessidade de legislação específica às suas singularidades

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Atualizado às 10:10

Já sabemos que os tribunais vêm admitindo a disputa judicial de guarda e regulamentação de convivência dos animais de estimação, nominando essa nova relação jurídica entre seus membros de família multiespécie.

Sobre a temática, destacamos o enunciado 11 do IBDFAM autorizando a judicialização acerca da custódia compartilhada do animal1.

Da mesma forma, já se somam decisões admitindo que o animal de estimação integre polo ativo de demanda judicial na defesa de "seus interesses", advindo dessa seara construção doutrinária e jurisprudencial já bastante exploradas.

Há ainda projetos de lei que visam regulamentar o reconhecimento da família multiespécie. Citamos o PL 179/23, atualmente tramitando na Câmara dos Deputados2. A proposta elenca diversos deveres aos tutores dos animais de estimação, e conta no momento com vinte e um artigos, incluindo tipos penais, reconhecendo que a família multiespécie já é "verdadeiro fenômeno sociológico conhecido, debatido nas Varas de Família e até mesmo nos Tribunais Superiores".

O projeto também confere ao animal direitos da personalidade, atribuindo-lhe a condição de absolutamente incapaz3, indicando a necessidade da sua representação legal para o exercício de direitos próprios dos sujeitos de direitos (vida, dignidade, patrimônio, afetividade, entre outros). Indica que nas disputas judiciais envolvendo guarda e visitação, haverá veterinário especializado em psicologia animal que deverá ser previamente ouvido4.

Há muito a ser pontuado. Já é de praxe o nosso ordenamento legal andar um passo atrás da construção jurisprudencial. Em regra, as leis são modificadas/editadas consagrando um entendimento que já vem sendo adotado em larga escala pelos tribunais. Nos parece que, ao contrário do legislador, o Judiciário sabe que não irá absorver demandas de disputas de guarda ou convivência de animais domésticos mediante necessária perícia de médico veterinário especialista em psicologia animal.

Junto ao STJ é encontrada decisão afastando guarda compartilhada de animais por ser instituto construído com base nos deveres inerentes ao poder familiar (REsp: 1713167 SP 2017/0239804-9, relator ministro Luis Felipe Salomão, j. 19/6/18, 4ª turma, DJe 9/10/18). Por seu lado, o projeto expressamente importa o conceito de poder familiar para a tutela dos animais de estimação em seus arts. 8º ao 14, sob a rubrica "do poder familiar sobre os animais de estimação".

A questão é extremamente delicada, mas o paralelo jurídico entre humanos e animais não é novo, e já foi utilizada pela via inversa nos emblemáticos casos Mary Ellen Wilson, nos Estados Unidos da América, no século XIX e Harry Berger, prisioneiro no Brasil. Em ambos os casos a legislação protetiva pelos animais foi utilizada como parâmetro para proteção do próprio ser humano, à guisa de norma similar em favor da criança ou do adolescente, no caso americano, e contra tortura do preso durante o período da ditadura do Estado Novo, no caso brasileiro5.

Em suma, é óbvio que existe afeto profundo entre humanos e seus animais de estimação, o que demanda que recebam tratamento legal e proteção judicial adequadas às suas singularidades.

Atualmente nossa lei civil atribui natureza jurídica de coisa aos animais domésticos, com o que não se pode mais pactuar.

Neste ponto, o projeto de reforma do CC, em seu art. 91-A, dispõe que os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial, remetendo sua tutela para lei especial, permanecendo, no entanto, a aplicabilidade das disposições relativas aos bens, desde que compatíveis com sua sensibilidade, até que aquela sobrevenha no ordenamento.

O art. 19 reconhece que a afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e proteção aos animais que compõe o entorno sociofamiliar.

Adiante, o §3º do art. 1.566 dispõe sobre o compartilhamento das despesas para manutenção dos animais de estimação no fim do casamento ou união estável.

No entanto, não há poder familiar para tutela dos interesses dos animais. A questão que se coloca é que a aplicação pura e simples da nossa legislação relativa ao exercício dos deveres parentais levaria a decisões completamente despidas de qualquer razoabilidade ou senso lógico, assim como a aplicação pura e simples do direito das coisas.

A título de exemplo, citamos o acórdão do agravo de instrumento do TJ/RJ de número 0021039-48.2023.8.19.0000, de relatoria da desembargadora Leila Maria Rodrigues Pinto de Carvalho e Albuquerque.

No caso acima, o tutor da cadela Macarena havia sido preso, e o animal foi acolhido em lar provisório pelos agravantes. Macarena era explorada para a prática de crimes pelo seu antigo tutor. Ao fim da instrução criminal, o juízo determinou a devolução de Macarena ao seu antigo dono, no prazo de 15 dias, determinando inclusive sua busca e apreensão.

Neste caso, foi aplicado pelo juízo criminal o regime jurídico dos arts. 118 e 1196 do CPP.

A desembargadora relatora do recurso, no entanto, entendeu inaplicável o regime jurídico do direito das coisas no que se refere à custódia do animal, reconhecendo a "dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e atribuiu dignidade e direitos aos animais não humanos e à natureza", mantendo Macarena com seu aguerrido tutor, que recorreu até a segunda instância para manter a qualidade de vida da cadela.

Esse caso ilustra como a legislação atual não tutela adequadamente a situação dos animais de estimação que, por outro lado, também não encontram guarida na aplicação literal da guarda compartilhada.

Isso porque a guarda compartilhada existe no ordenamento jurídico por questões várias que não se limitam aos direitos e deveres iguais de pai e mãe, trazidos pela CF/88, mas sim na primazia do melhor interesse da criança, no seu desenvolvimento psicológico sadio, apontando a ciência neurológica a necessidade que o ser humano possui de crescer contando com duplo referencial, materno e paterno, tão necessária ao fenômeno da triangulação familiar que deverá nortear o desenvolvimento emocional e social do indivíduo.

Até que sejam divulgados estudos científicos da área da psicologia veterinária, forçoso pressupor, por ora, que o mesmo fenômeno não se enquadra aos animais de estimação, que urgem por um regramento específico, cabendo ao Judiciário, na omissão do legislador, apontar os nortes que deverão ser observados caso a caso.

Portanto, não é viável a importação literal do regramento da guarda compartilhada aos animais de estimação. Por mais que afetivamente exista a correspondência na consideração entre crianças e animais de estimação, biologicamente, psicologicamente, socialmente, antropologicamente, ainda existem diferenças consideráveis.

Por fim, se levarmos em conta que a diferença entre animais de estimação e os animais domésticos é a destinação dada ao mesmo pelo ser humano, servindo aquele como destinatário de afeição genuína, enquanto este se presta ao auxílio do trabalho, e mesmo como alimento, há de se reconhecer que as diferenças naturais entre crianças e animais são ainda bem vultuosas.

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1 Na ação destinada a dissolver o casamento ou a união estável, pode o juiz disciplinar a custódia compartilhada do animal de estimação do casal.

2 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2346910. Acesso em 18/04/2025.

3 Art. 3º Para os fins desta Lei, os animais de estimação são considerados absolutamente incapazes de exercer diretamente os atos da vida civil que forem compatíveis com a sua natureza, devendo ser representados na forma desta Lei.

4 Art. 13. Em caso de separação, de divórcio ou de dissolução da união estável, judicial ou extrajudicial, deverá ser acordado ou decidido sobre a guarda, unilateral ou compartilhada, dos animais de estimação, além de eventual direito de visitas e de pensão alimentícia específica para a manutenção das necessidades do animal. § 3° Os juízos de família contarão com médico veterinário, preferencialmente especializado em etologia ou psicologia animal, ou em área similar, que será previamente ouvido nos casos sobre a destinação dos animais de estimação.

5 LOURENÇO, Daniel Braga. Conexões históricas entre a proteção humana e a tutela jurídica dos animais: os casos de Mary Ellen Wilson e Harry Berger. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2018/6/2018_06_1659_1678.pdf. Acesso em 18/04/2025.

6 Art. 118.  Antes de transitar em julgado a sentença final, as coisas apreendidas não poderão ser restituídas enquanto interessarem ao processo. Art. 119.  As coisas a que se referem os arts. 74 e 100 do Código Penal não poderão ser restituídas, mesmo depois de transitar em julgado a sentença final, salvo se pertencerem ao lesado ou a terceiro de boa-fé.

Beatrice Merten

VIP Beatrice Merten

Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro. Pós Graduada e Mestranda em Direito.

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