A senexão e o abandono afetivo inverso
O novo instituto da senexão e sua correlação com o abandono afetivo inverso no projeto de reforma do CC.
sexta-feira, 2 de maio de 2025
Atualizado às 11:35
O abandono afetivo inverso se traduz na violação ao disposto nos arts. 229 e 230 da CRFB/88, que descrevem o dever dos filhos maiores de amparar os pais na velhice, assegurando sua participação comunitária, dignidade e bem-estar. A norma é densificada pelo art. 3º do Estatuto do Idoso, discriminando quais os direitos a serem garantidos à pessoa idosa, pela família e pelo próprio Estado.
Neste contexto surge a senexão, como forma de colocação do idoso em família substituta, quando em situação de desamparo pela família de origem, ou em institucionalização permanente. Importante relembrar que o art. 98 do Estatuto do Idoso criminaliza a conduta de quem abandona idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência, ou congêneres, ou não provê suas necessidades básicas, quando obrigado por lei ou mandado.
A senexão aparece no ordenamento como medida protetiva ao idoso que esteja em instituição de longa permanência, vítima de abandono afetivo inverso por sua família de origem, ou outra situação de vulnerabilidade.
A palavra senexão tem raiz latina senex - idoso, e ão - pertencimento. O PL 105/20, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, propõe a criação do novo instituto através da inserção do art. 55-A e seguintes do Estatuto do Idoso.
Atualmente as medidas de proteção ao idoso são aplicáveis nas hipóteses do art. 43 do Estatuto (ação ou omissão do Estado; falta, abuso ou omissão da família ou do curador ou entidade de acolhimento; em razão de sua condição pessoal). Os arts. 44 e seguintes tratam das medidas específicas de proteção nesses casos, sendo que o projeto pretende a inserção no Estatuto do art. 45-A: Idosos em situação de vulnerabilidade ou abandono, que tenham sido encaminhados a abrigos ou estejam desamparados pelas famílias originárias podem ser integrados em família receptora pelo instituto da senexão, conforme art. 55 A e seguintes.
Apesar das similaridades com o instituto da adoção, a senexão não estabelece vínculos de filiação, nem confere direitos sucessórios à família receptora, apesar de inaugurar um parentesco sócioafetivo1. Diante das particularidades, podemos considerar que se trata de um parentesco sócioafetivo sui generis, já que a adoção no nosso ordenamento gera vínculo filial com todos os deveres e direitos decorrentes. O projeto não veda, no entanto, que o próprio idoso proponha a adoção do seu receptor.
Na senexão tratada pelo projeto, aparece a figura do senector, ou seja, a família receptora, e o senactado, o idoso em situação de abandono, sem condições de reintegração em sua família de origem. A consolidação da senexão depende de sua anuência, e é constituída judicialmente em caráter irrevogável, devidamente inscrita no cartório em livro próprio2.
A proposta obriga o senector a amparar o idoso em suas necessidades materiais e afetivas, além de conferir-lhe alguns direitos, especialmente para bem desempenhar o novo munus, como a inscrição de dependente para fins previdenciários e tributários, em plano de saúde, e assistência.
O objetivo do legislador é a criação de um novo instituto com nome próprio, já que não encontra precedente no nosso ordenamento, e não se confunde com o vínculo da adoção. O termo "adoção de idoso" previsto em outros projetos de lei se apresenta inapropriado, devido as diferenças basilares nos efeitos de sua constituição, afinal, na senexão não há rompimento dos vínculos do idoso com sua família de origem. A justificativa para o expresso afastamento dos direitos sucessórios do preceptor, é não incentivar a senexão por motivos meramente financeiros.
No caso da senexão, não havendo o rompimento dos vínculos com a família de origem, a exclusão dos direitos hereditários da família de origem deverá seguir o regramento conferido à matéria pelo CC, nos casos de crime doloso contra a pessoa do falecido, acusação de crime ou imoralidade, indignidade ou ajuda ao falecimento (arts. 1.814 a 1.817 do CC).
O projeto de reforma do CC, no entanto, insere entre as causas de exclusão da sucessão, os herdeiros ou legatários que tiverem deixado de prestar assistência material ou incorrido em abandono afetivo voluntário e injustificado contra o autor da herança (art. 1.814, inciso IV). Ou seja, de certa forma os dois projetos de lei já dialogam acerca desta questão, salientando que no projeto ora em análise, a família receptora só irá herdar na hipótese de herança vacante, tendo preferência na ordem sucessória sobre o Estado (art. 55, inciso III). Lembrando que no projeto de reforma do CC a exclusão do herdeiro ainda dependerá de ação própria.
Por fim, ainda sobre o projeto de reforma do CC, destacamos que o dever de cuidado é explicitamente tratado em condição de reciprocidade entre pais e filhos, excluindo a responsabilização pelo abandono afetivo quando seu descumprimento foi mútuo. É o que se depreende do art. 1.708, quando exclui o dever de assistência material nos casos em que o credor incorreu em violência doméstica, perda da autoridade parental, e abandono afetivo e material.
Resta aguardar como a matéria será recepcionada pelos tribunais, diante do exercício hermenêutico que demandará a nova interpretação dos arts. 229 e 230 da CRFB/88. A questão será a inclusão da mutualidade do dever de cuidado, bem como no fato de que o §1º do art. 230, ao dispor que os programas de amparo ao idoso deverão ser executados preferencialmente em seus lares, admite hipóteses de exceção, como no caso de abandono afetivo mútuo.
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1 Art. 55 C. A senexão não estabelece vínculos de filiação entre senector e senectado, nem afeta direitos sucessórios, mas estabelece vínculos de parentesco sócioafetivo, que implicam a obrigação do senector em manter, sustentar e amparar de todas as formas materiais e afetivas as necessidades do idoso. (Fonte: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2236550)
2 Art. 55 B. A senexão é o ato irrevogável pelo qual pessoa maior e capaz, o senector, recebe em sua família para amparo e assistência, um idoso, denominado senectado.
Art. 55 A, Parágrafo único. A senexão será registrada no cartório de registro de pessoas, em livro próprio.


