MROSC x Contrato administrativo: Peculiaridades do regime de parcerias
Confundir MROSC com contrato da lei 14.133/21 tem gerado PADs, glosas e ações injustas. Parceria exige outro olhar: foco em resultados, flexibilidade e leitura jurídica adequada.
quarta-feira, 23 de abril de 2025
Atualizado às 14:51
1. Introdução
Apesar da consolidação da lei 13.019/141 como o regime jurídico específico para parcerias entre o poder público e as OSCs, ainda é alarmante o número de denúncias, representações, processos administrativos disciplinares e recomendações de órgãos de controle que tratam esses instrumentos como se fossem contratos administrativos regidos pela lei 14.133/212.
Essa confusão não é inofensiva. Ela tem gerado responsabilizações indevidas de gestores públicos e dirigentes de OSCs, sobretudo em situações onde o regime jurídico do MROSC prevê procedimentos mais flexíveis, como apostilamentos (art. 57, lei 13.019/143), prestação de contas mais simplificada4 e execução dinâmica dos planos de trabalho.
Neste artigo, abordaremos de forma direta as diferenças mais relevantes entre esses dois regimes e explicaremos por que tratar o MROSC como contrato administrativo comum é juridicamente incorreto e perigoso, especialmente do ponto de vista disciplinar.
2. O MROSC é regido por outra lógica: colaboração, não contratação
A principal diferença está na natureza da relação jurídica. Enquanto o contrato administrativo pressupõe uma relação contratual de aquisição de bens ou serviços e demais hipóteses do art. 2º, da lei 14.133/21, o MROSC estrutura uma parceria fundada na cooperação entre o Estado e as entidades da sociedade civil5 (art. 1º, da lei nº 13.019/146).
A finalidade, aqui, não é "comprar" um serviço ou obra. É realizar objetivos sociais compartilhados, com base em um plano de trabalho apresentado (art. 22, da lei 13.019/14), cuja execução é avaliada por metas e resultados, e não pela rigidez de cronogramas físicos-financeiros ou medições de etapas como nos contratos administrativos tradicionais.
"A lei federal 13.019/14 (MROSC) concretiza uma sistemática de gestão, que enfatiza a necessidade de monitoramento e avaliação constantes, preventivos e saneadores, para que sejam alcançadas as metas estabelecidas pela parceria e, finalmente, para que se apresente uma adequada prestação de contas dos resultados. Com enfoque no controle dos resultados, o MROSC mudou o paradigma existente fundado na análise da execução de despesas para a lógica da finalidade capaz de modificar a realidade em que atuam."7
Apostilamentos: Ponto central de incompreensão
Um dos exemplos mais recorrentes de má aplicação de lógica contratual à parceria com OSCs é o tratamento dado aos apostilamentos. O art. 57 da lei 13.019/14 prevê expressamente que alterações formais não substanciais - como ajustes no cronograma, local de execução, ou correções no plano de trabalho - podem ser feitas por apostila, sem necessidade de termo aditivo.
Esse mecanismo existe justamente para dar agilidade e praticidade à execução, respeitando a natureza colaborativa e a necessidade de adaptação das ações às realidades locais.
Esses ajustes administrativos são, em regra, orientados mais pela efetividade na entrega dos resultados pactuados do que por formalismos excessivos. Naturalmente, havendo indícios de dano ao erário associados à quebra de legalidade, a análise assume outro contorno.
Mas, na ausência de prejuízo comprovado, é plenamente justificável a relevação de falhas formais quando demonstrados os bons resultados na execução do objeto da parceria - coisa que não acontece, por exemplo, com contratos administrativos advindos de licitações reguladas pela lei 14.133/21. Nesse sentido:
"A despeito das irregularidades formais apontadas no processo de tomada de contas especial, as provas indicam, estreme de dúvidas, que os objetivos e atividades propostas no termo de fomento foram efetivamente realizados e não houve apontamento de qualquer prejuízo ao erário relacionado ao pagamento dos prestadores de serviços. A alteração da forma de contratação dos prestadores de serviço resulta em vício formal, que, segundo a lei 13.019/14, não resulta a rejeição das contas, tampouco subsidia a glosa dos respectivos valores"8
Apesar disso, é comum que órgãos de controle interno e até o Ministério Público aleguem "ilegalidade" ou "irregularidade" em razão de a execução da parceria, por vezes, não se dar nos exatos termos da estrutura inicial do projeto, aplicando analogias indevidas com a lei 14.133/20 21. Essas analogias tornam-se ainda mais inadequadas - e potencialmente prejudiciais - quando se considera que as parcerias firmadas no âmbito do MROSC frequentemente envolvem a implementação de ações inovadoras, muitas vezes sem precedentes consolidados, o que implica certa margem de imprevisibilidade na execução do objeto pactuado e demanda flexibilidade na gestão da parceria.
Como consequência, gestores acabam respondendo a processos administrativos, judiciais ou mesmo sendo alvo de recomendações infundadas por atos que são perfeitamente legítimos no regime do MROSC.
Regime disciplinar e a armadilha da analogia indevida
O maior risco da confusão entre os regimes jurídicos está justamente no campo disciplinar. Muitos processos são instaurados com base em interpretações equivocadas do regime das parcerias, especialmente em temas como:
- Inexistência de licitação prévia (mesmo quando foi realizado o chamamento público obrigatório - art. 23, da lei 13.019/149);
- Ausência de aditivos formais para alterações pequenas (quando bastava apostilar - art. 57, da lei 13.019/14);
- Intervenção ativa do gestor como "interferência" (quando o gestor tem obrigação legal de acompanhar e orientar - art. 61, inciso I, da lei 13.019/1410).
É comum que denúncias por supostas "irregularidades" não considerem o texto da lei 13.019/14, mas sim paradigmas da legislação de licitações. Resultado: processos administrativos injustos, indeferimento de contas, devolução de recursos e dano à reputação de gestores e entidades parceiras.
Atuação orientada para prevenção e defesa
O que se observa, na prática, é que muitos gestores e dirigentes de OSCs não contam com assessoria jurídica especializada em MROSC, o que aumenta o risco de condutas mal interpretadas. Ter assessoria preventiva adequada faz diferença tanto para a condução segura da parceria quanto para a resposta jurídica sólida diante de fiscalizações ou denúncias.
Não se trata de mera adequação documental, mas de domínio do regime jurídico próprio das parcerias, algo que nem sempre é compreendido por órgãos de controle ou agentes do Ministério Público.
Conclusão: a diferença entre um processo e uma boa gestão pode estar na correta compreensão do MROSC
A lei 13.019/14 criou um modelo de relação Estado-sociedade civil baseado em confiança, corresponsabilidade e avaliação por resultados. Aplicar sobre esse modelo as exigências e formalismos do contrato administrativo tradicional é negar sua razão de existir.
Mais do que um erro teórico, essa prática equivocada está gerando processos disciplinares, ações de improbidade e bloqueios indevidos de recursos públicos, com prejuízo ao andamento de parcerias proveitosas ao interesse público.
Para evitar responsabilizações indevidas, é indispensável que gestores públicos, entidades da sociedade civil e operadores do Direito compreendam - e saibam sustentar - a diferença entre uma parceria e um contrato administrativo. E, principalmente, que estejam preparados para demonstrar, com respaldo jurídico técnico, a legalidade de suas ações no âmbito do MROSC.
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1 BRASIL. Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014. Institui o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 ago. 2014.
2 BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 abr. 2021
3 Art. 57. O plano de trabalho da parceria poderá ser revisto para alteração de valores ou de metas, mediante termo aditivo ou por apostila ao plano de trabalho original.
4 Art. 63. A prestação de contas deverá ser feita observando-se as regras previstas nesta Lei, além de prazos e normas de elaboração constantes do instrumento de parceria e do plano de trabalho.
§ 1º A administração pública fornecerá manuais específicos às organizações da sociedade civil por ocasião da celebração das parcerias, tendo como premissas a simplificação e a racionalização dos procedimentos.
5 TRT-12 - ROT: 00002737820205120014, Relator.: HELIO BASTIDA LOPES, 1ª Câmara
6 Art. 1º Esta Lei institui normas gerais para as parcerias entre a administração pública e organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação.
7 TCE-MG - CONSULTA: 1144641, Relator.: CONS. DURVAL ANGELO, Data de Julgamento: 13/03/2024, PLENO, Data de Publicação: 04/04/2024
8 TJ-MS - Apelação Cível: 0811737-51.2023.8 .12.0001 Campo Grande, Relator.: Desª Jaceguara Dantas da Silva, Data de Julgamento: 29/05/2024, 5ª Câmara Cível, Data de Publicação: 03/06/2024
9 Art. 23. A administração pública deverá adotar procedimentos claros, objetivos e simplificados que orientem os interessados e facilitem o acesso direto aos seus órgãos e instâncias decisórias, independentemente da modalidade de parceria prevista nesta lei.
10 Art. 61. São obrigações do gestor:
I - acompanhar e fiscalizar a execução da parceria.


