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O STF, a anistia e a teoria dos jogos: Uma solução institucional?

Uma análise do conflito STF - Congresso sobre a anistia ao 8 de janeiro, pela ótica da teoria dos jogos. Propõe-se uma solução estratégica e racional, evitando uma eventual crise institucional.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Atualizado às 11:39

É público e notório que o desgaste institucional do STF atingiu um patamar inédito em sua história. Por ultrapassar a sua função constitucional, de árbitro maior da nação e garantidor da Constituição, o Tribunal preferiu assumir um papel de agente político, tal qual um partido, só que sem votos ou mandato para tanto. Não se trata de mera opinião, mas de fato, sendo que a postura adotada é inclusive defendida pelos seus próprios ministros.1

Um dos temas mais delicados para a imagem e credibilidade do STF são os julgamentos dos envolvidos nos eventos de 8/1/23, e consolidou-se o senso comum - transcendente a posicionamentos ideológicos -- que a Corte tem punido com excesso e arbitrariedade, frequentemente sem atender ao devido processo legal, a ponto de ser considerado por muitos um tribunal de exceção.

Só que este comportamento do Tribunal gerou a correspondente reação do Legislativo. O avanço do projeto de lei que propõe anistia aos envolvidos nos eventos de 8/1/23 tem tomado corpo cada vez maior, tendo inclusive recolhido o número necessário de assinaturas na Câmara dos Deputados para a sua tramitação em regime de urgência, com apoio de expressiva parcela da opinião pública. Por seu turno, o STF insiste em sua posição punitiva, aventando inclusive a possibilidade de que, caso seja aprovada, a anistia seria eventualmente declarada inconstitucional pela Corte2.

Estaremos às portas de uma crise institucional iminente, talvez uma ruptura? É ainda possível encontrar uma saída, ou o STF já ultrapassou o ponto sem retorno? A teoria dos jogos poderia modelar este conflito?

Apenas para fins didáticos, a teoria dos jogos3 é uma intersecção entre a economia e a matemática, criada para descrever e modelar situações que envolvam múltiplos agentes racionais - jogadores - em situações estratégicas, entendidas estas quando a ação de um influencia qual decisão será tomada pelos outros e vice-versa. Há diversos jogos famosos que ilustram situações da vida real, como o dilema do prisioneiro, por exemplo, com as mais variadas aplicações, seja para compreender interações estratégicas cooperativas ou não, seja para resolvê-las por meio de ajustes nos incentivos envolvidos.

A nossa hipótese é que o STF se comporta como um jogador em um clássico "chicken game" - um jogo de confronto em que dois agentes correm em rota de colisão esperando que o outro recue. Quem recuar primeiro, perde. No entanto, se ambos não recuarem, o resultado será a colisão4.

Dois jogadores, múltiplos riscos

A insistência do Supremo em manter sua escalada punitiva o coloca em rota de choque não apenas com o Legislativo, mas também com parcelas da opinião pública. E quanto mais avança, maior o custo institucional e simbólico caso venha a "perder".

Contudo, sob a ótica da teoria dos jogos e da economia comportamental de Daniel Kahneman, há uma saída racional e estratégica que o STF ainda pode tomar: seguir julgando conforme sua convicção, mas deixar que o Congresso delibere sobre a anistia, sem confronto ou resistência institucional. Isso não representaria rendição, mas maturidade institucional e, sobretudo, autopreservação. Não se trata de "desviar" para evitar a colisão, mas de simplesmente não jogar um jogo que não lhe cabe jogar até o fim.

O jogo político e institucional da anistia pode ser modelado envolvendo os dois atores principais: 1) O STF, que julga e condena; 2) O Congresso Nacional, que discute a anistia.5 Cada um possui as seguintes estratégias: O STF pode continuar dobrando a aposta e mantendo a retórica de defesa da democracia, ou pode adotar postura institucional mais discreta, reconhecendo a soberania legislativa na matéria. Por sua vez, o Congresso pode aprovar ou não a anistia, e arcar com os custos políticos decorrentes.

O risco do STF, nesse cenário, é duplo: ou insiste na rota de colisão, com risco de ser derrotado politicamente, ou recua tardiamente, o que sinalizaria fraqueza e incoerência. No entanto, se agir com racionalidade estratégica - como um agente que calcula consequências, e não apenas reage - pode preservar a coerência de sua atuação passada e, ao mesmo tempo, respeitar a autonomia de outro Poder da República.

O problema do Supremo não está apenas no jogo político, mas na forma como o joga. As condenações do 8 de janeiro têm sido duramente criticadas por juristas, acadêmicos, opinião pública e organismos internacionais por violarem garantias fundamentais inscritas no art. 5º da CF/88. Entre elas: O devido processo legal (inciso LIV), com provas frágeis ou generalizações perigosas; O direito à ampla defesa e ao contraditório (inciso LV); A presunção de inocência (inciso LVII); O princípio da individualização da pena (inciso XLVI); A proibição de penas cruéis ou desproporcionais (inciso XLVII). Ao mesmo tempo em que é inclemente com estes réus, mostra ser, aos olhos da opinião pública, magnânimo em outros casos julgados, notadamente envolvendo crimes de corrupção, como os da extinta operação Lava Jato. Ao tornar-se o ator central da repressão, o Supremo arrisca-se a ser percebido não como Corte Constitucional, mas como agente acusador com toga, movido por indignação política, e não por razão jurídica. E isso acarreta altos custos de imagem, credibilidade e legitimidade.6

Daniel Kahneman, prêmio Nobel de Economia, propõe um modelo de tomada de decisão com dois sistemas7: o Sistema 1, intuitivo, emocional, impulsivo; e o Sistema 2, racional, analítico e deliberativo. O comportamento do STF nos casos do 8 de janeiro parece alinhado ao primeiro. O tom emocional dos votos, a linguagem inflamada, a preocupação com "mensagens" e "exemplos", tudo aponta para um modelo de decisão orientado mais por paixão do que por ponderação, mais pelo fígado do que pelo cérebro.  Mas há uma alternativa. Se adotasse o Sistema 2 - o da racionalidade estratégica - o Supremo avaliaria que continuar dobrando a aposta, em um jogo que o Congresso pode resolver politicamente, é insustentável no longo prazo.

Mas no chicken game, quem desvia não perde?

Aqui está o ponto mais delicado. No modelo clássico do chicken game, desviar é sinal de fraqueza. Mas isso só é verdadeiro quando os jogadores são simétricos e em antagonismo. Não deveria ser o caso entre o STF e o Congresso, pois aquele tem função jurisdicional e este tem função legislativa, não competindo entre si. Ao reconhecer os limites de sua atuação, o STF não "perde", apenas cumpre seu papel constitucional, sinalizando inclusive uma postura moderada. O truque estratégico está no framing da saída: não se trata de desistir da briga, mas de não participar dela quando ela ultrapassa a sua esfera legítima. Usando a metáfora do próprio chicken game, o STF não recuaria, apenas tiraria o pé do acelerador e seguiria por uma estrada paralela, fora da rota de colisão.

Pode-se inclusive imaginar uma manifestação oficial assim:

"Cumprimos nosso papel constitucional ao julgar os réus. Agora cabe ao Congresso, no exercício legítimo de sua competência, deliberar sobre eventual anistia. O Supremo não interfere nesse processo."

Essa postura não é rendição. É maturidade. É uma forma de "desviar" sem perder. Ao sair do jogo, o Supremo preserva sua imagem, transfere o ônus político para o Congresso e reafirma a separação de poderes. Uma retirada estratégica, institucionalmente elegante e perfeitamente legítima.

Uma anistia seletiva e um paradoxo estratégico para o STF

Importa destacar que o projeto de anistia em tramitação na Câmara dos Deputados8 não tem a amplitude de medidas similares adotadas na história brasileira, como a de 1979, que beneficiou tanto os perseguidos políticos quanto os agentes do regime militar responsáveis por graves violações de direitos humanos.

No caso do PL da anistia aos réus do 8 de janeiro, trata-se de uma proposta deliberadamente restrita, voltada apenas aos acusados de crimes políticos ou conexos, como incitação, invasão de prédio público, associação criminosa e atentado ao Estado de Direito. Não estão incluídas eventuais autoridades públicas ou agentes estatais que possam ter cometido abusos de autoridade, nem há menção à revisão das práticas processuais excepcionais que marcaram o ciclo de julgamentos.

Esse desequilíbrio jurídico e simbólico revela um aparente paradoxo: mesmo sem reconhecê-lo publicamente, o STF teria muito a ganhar com uma anistia mais ampla, pois nada impede que, em um futuro próximo, os ventos políticos mudem e sejam revisitadas decisões e as consequências delas, que hoje escapam a qualquer forma de controle. Ministros, magistrados, membros do Ministério Público ou autoridades policiais poderiam ser responsabilizados - inclusive criminalmente - por abusos cometidos supostamente em nome da democracia. É justamente nesse ponto que o Legislativo, ao exercer sua prerrogativa soberana, poderia proteger o STF de si mesmo: aprovando uma anistia que eventualmente preservaria todos os envolvidos, sem que o tribunal incorresse no custo reputacional de reconhecer a necessidade dessa salvaguarda.

Assim, o silêncio do STF não seria omissão, mas cálculo estratégico: deixar que outro Poder assuma o custo da pacificação - e também lhe ofereça um escudo institucional para o futuro.

A racionalidade da "lavagem de mãos"

Pilatos não se omitiu: apenas declarou que aquela decisão já não era sua. O STF pode fazer o mesmo. A Constituição prevê, no art. 48, inciso VIII, que a anistia é matéria de competência do Congresso, logo, não cabe ao Judiciário opinar, interferir ou condenar politicamente uma decisão dessa natureza. Ao reconhecer isso, o Tribunal adota uma estratégia racional e se protege do desgaste crescente que já compromete a sua imagem perante a sociedade civil, organismos internacionais e até instâncias internas do próprio Judiciário.

A retórica e narrativa seria: Como Corte, já fizemos o que julgávamos necessário. Agora, devemos deixar que o tempo político siga seu curso.

Conclusão: Ganhar ao recuar

O STF pode insistir em um jogo de colisão institucional que o desgasta moral, jurídica e politicamente, talvez de forma irreversível. Mas também pode escolher agir com racionalidade estratégica, retirando-se do conflito e deixando o Congresso decidir - como prevê a CF/88.

Ao agir assim, não perde - vence pela razão. Preserva a coerência de seus julgamentos, respeita os direitos fundamentais, os quais tem sido acusado de violar, e reafirma sua posição como Corte, e não como ator político. Causa estranheza, aliás, os magistrados supremos não perceberem algo, que ao menos para observadores desapaixonados, parece até óbvio, em termos de custo-benefício: livrar-se de um impasse desgastante, sem sinalizar a imagem de recuo. Pelo jeito, realmente é o Sistema 1 dominando a tomada de decisões, o que não é nada bom, ainda mais quando se trata da mais alta Corte do país.

A história está repleta de anistias: da ditadura à redemocratização, dos crimes comuns aos crimes políticos. Nenhuma delas significou derrota do Judiciário ou de qualquer outro poder da república. Significaram apenas que a democracia, quando amadurece, sabe absorver e resolver conflitos sem destruir suas instituições. Que a racionalidade prevaleça sobre as paixões.

__________

1 "Nós derrotamos o Bolsonarismo, diz Luis Roberto Barroso, na UNE: Próximo presidente do Supremo Tribunal Federal faz discurso inflamado em Congresso da UNE, com críticas à ditadura e a Jair Bolsonaro. Poder 360. Brasília, 13 jul. 2023. Disponível em: https://www.poder360.com.br/justica/nos-derrotamos-o-bolsonarismo-diz-barroso-na-une/. Ou a recentíssima fala durante sua participação no Brazil Conference, evento realizado em abril de 2025 nas universidades de Harvard e MIT, Barroso afirmou: "Aqui no Brasil, para enfrentar o populismo autoritário, o extremismo, o Supremo Tribunal Federal chamou para si essa missão, ao lado de outras instituições, e atuou intensamente mediante diferentes formas de atuação." Poderíamos ainda colacionar dezenas de outros exemplos, como as incontáveis falas de Alexandre de Moraes, como, por exemplo, que o Tribunal deve "combater" um determinado movimento político que denomina de "populismo de extrema direita"1. Outros Ministros são igualmente notórios por frequentemente manifestar suas opiniões políticas, como Gilmar Mendes e Flavio Dino.

2 Em entrevista ao jornal o Globo (17.04.2025), o Ministro Gilmar Mendes declarou que uma futura lei de anistia poderia vir a ser declarada inconstitucional pelo STF. https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2025/04/17/entrevista-projeto-de-anistia-do-81-tem-como-objetivo-beneficiar-os-mentores-da-trama-golpista-diz-gilmar-mendes.ghtml?utm_source=chatgpt.com

3Para aprofundamento no tema, sugerimos o nosso livro O Tributarista Estratégico. A Teoria dos Jogos no Direito Tributário, em co-autoria com Bradson Camelo (Belo Horizonte: Editora Forum, 2024).

4 O jogo é ilustrado em dois filmes de cinema, Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955), com James Dean, e Footloose, com Kevin Bacon (1984). Em ambos, com algumas variações, o jogo consiste em um avançar contra o outro com carros (ou tratores) e a estratégia é sinalizar ameaça crível ao oponente, no sentido de mostrar intenção de não recuar, sem temer o resultado catastrófico para ambos (colisão). Perde quem desviar primeiro ("chicken", portanto).

5 O Chicken Game aqui poderia ser modelado com três jogadores, STF, Legislativo e Opinião Pública, sendo que esta última também avançaria e recuaria, por meio da mídia, manifestações públicas e outras formas de pressão. Porém, para fins de simplificação, a deixaremos apenas como componente das recompensas (sistema de incentivos) aos jogadores. Embora a opinião pública exerça papel importante como força moderadora e fator de pressão, sua função neste modelo não é a de jogador autônomo, mas sim a de variável que afeta os incentivos estratégicos do STF e do Congresso. Ambos os poderes agem também em função da percepção pública de legitimidade, coerência e responsabilidade institucional.

6 Independente de suas razões e fundamentações nos casos concretos, que não nos cabe examinar aqui, o ponto é a imagem que a opinião pública tem do Tribunal, mensurada por pesquisas de opinião. Segundo pesquisa recente, a aprovação do STF perante a população em geral se encontra em 12% e parece estar em queda acentuada. Outra pesquisa, divulgada em fevereiro de 2024, mostra que quase metade da população, 47% acreditam que o Brasil vive uma "ditadura do Judiciário", enquanto outros 17% embora não cheguem a fazer juízo tão severo, reconhecem existir abusos. Na última edição do Rule of Law Index, ranking internacional elaborado pela organização independente World Justice Project (WJP), o Brasil teve a pior nota do mundo, dentre 142 países avaliados, empatando apenas com a Venezuela, no quesito "parcialidade do Judiciário". Links: https://www.poder360.com.br/poderdata/avaliacao-positiva-do-stf-cai-de-31-para-12-em-2-anos/.https://www.poder360.com.br/pesquisas/47-acham-que-o-brasil-vive-uma-ditadura-do-judiciario-diz-atlasintel/.https://www.poder360.com.br/poder-justica/brasil-e-so-o-80o-em-ranking-global-de-estado-de-direito/.

7 Rápido e Devagar. Duas formas de Pensar. São Paulo: Objetiva, 2012.

8https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2218130&filename=Tramitacao-PL%202858/2022

Cristiano Rosa de Carvalho

VIP Cristiano Rosa de Carvalho

Professor Livre-Docente em Direito Tributário (USP), Mestre e Doutor em Direito Tributário (PUC-SP), Pós-Doutorado em Direito e Economia (U.C. Berkeley). Advogado no Brasil e em Portugal.

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