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Norma geral de proteção e incentivo a reportantes no Brasil - Parte I

O artigo analisa a evolução da proteção legal aos reportantes no Brasil, destacando os avanços e lacunas, bem como a necessidade de uma norma geral clara, segura e eficaz para incentivar denúncias.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Atualizado às 09:48

A proteção a reportantes e sua importância para a prevenção, apuração e punição de irregularidades está cada vez mais presente na discussão jurídica brasileira. No contexto de fraudes corporativas, dentre as diferentes falhas de governança que possam ter contribuído ao incidente, a omissão de reportantes é frequente objeto de questionamentos.

Em que pese a importância de incentivar reportes de irregularidades, hoje não há clareza ou consenso sobre quais os requisitos básicos para a efetivação de um sistema de tratamento, proteção e incentivo de reportantes. Além disso, diferentes terminologias são utilizadas para se referir aos sujeitos que realizam o reporte: "reportantes", "informantes", "denunciantes", "informantes do bem", "denunciante de boa-fé", etc. Para os fins deste artigo, adotaremos a expressão "reportante", por não se confundir com outras categorias já existentes na legislação nacional.

Em 2018 foi sancionada a lei 13.608/18 que introduziu no ordenamento nacional um conjunto de normas voltadas à proteção e premiação a reportantes no país. Após a inclusão de novos dispositivos pela lei 13.964/19 (também conhecida como "pacote anticrime"), a lei 13.608/18 deu robustez ao sistema de garantias a reportantes. Não tardou para que o Governo Federal regulamentasse diversos aspectos da lei 13.608/18 por meio dos decretos federais 10.153/19 e 10.890/21, que dispõem sobre a proteção à identidade dos reportantes de ilícitos e de irregularidades praticados contra a administração pública federal direta e indireta.

Apesar da vigência dessas normas, percebe-se que, ao estabelecerem diretrizes gerais para o tratamento de denúncias, não há clareza quanto às regras essenciais para o estabelecimento de um programa de proteção e incentivo a reportantes. Isso se evidencia com o advento de propostas legislativas mais específicas, que parecem conflitar, em certos aspectos, com as leis já existentes. Um exemplo é o PL 2.581/23 que está em tramitação na Câmara dos Deputados e que disciplina a proteção, incentivo e recompensa a reportantes no âmbito do mercado de valores mobiliários.

Diante do atual cenário legislativo, observa-se a necessidade de uma legislação geral mais robusta que aborde questões essenciais para a efetivação prática de um sistema de proteção e incentivos a reportantes, gerando um ambiente jurídico previsível, seguro e, portanto, eficaz, para o reporte de irregularidades.

O presente artigo, o qual será dividido em três partes, busca analisar alguns aspectos da legislação nacional sobre o tema, para apresentar os principais desafios e tecer algumas recomendações (quando cabível) para a construção de uma norma geral ampla, segura e eficaz.

Nesta primeira parte será examinado o escopo da lei 13.608/18, assim como o conceito de reportante nela apresentado. Na segunda parte, haverá um enfoque nas proteções ao reportante. Por fim, a terceira parte será voltada à análise da premiação ao reportante e os desafios para a sua efetivação.

Escopo de aplicação da lei 13.608/18

Conforme mencionado acima, a lei nº 13.608/18 introduziu no ordenamento nacional um conjunto de normas voltadas à proteção e premiação a reportantes no país. No entanto, alguns dispositivos na Lei tornam o seu escopo pouco claro, o que cria dificuldades para a sua efetivação.

Primeiro, nota-se uma espécie de "divisão" entre os dispositivos instituídos em sua redação original e aqueles posteriores ao Pacote Anticrime, que pouco conversam entre si. Entre os arts. 1º e 4º, previstos na redação original, a lei 13.608/18 tratou da instituição de serviços de "recepção de denúncias por telefone", destacando em seu art. 2º a "autorização" aos Estados para criarem "serviço de recepção de denúncias por telefone". Já os arts. 4º-A a 4º-C, incluídos pelo pacote anticrime, trataram da instituição de verdadeiros sistemas de ouvidoria e correição no âmbito da administração pública direta e indireta. Para tanto, dispuseram em maior detalhe sobre algumas garantias de proteção ao reportante.

Segundo, da leitura da lei 13.608/18, verifica-se uma dificuldade na identificação de qual o escopo das denúncias a serem recebidas pelas eventuais unidades de ouvidoria. O art. 4º, caput, ao tratar das recompensas ofertadas, indica que elas poderão ser pagas àqueles que ofereçam informações sobre "crimes ou ilícitos administrativos", o que demonstra um escopo amplo, capaz de alcançar qualquer delito previsto no Código Penal ou em legislação penal especial, assim como quaisquer "ilícitos administrativos" em geral. Já o art. 4º-A delimita as informações almejadas àquelas que versem sobre "crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público", o que, por um lado, parece se limitar aos delitos do título XI do Código Penal, mas, por outro, amplia o alcance a todos os atos ou omissões que lesionem o interesse público.

Diante do exposto, é evidente que a pouca comunicabilidade entre a primeira e segunda partes da lei 13.608/18 causa confusão quanto ao seu objeto e escopo de aplicação.

Apesar das divergências entre as duas "partes" da lei, há concordância em alguns pontos. Uma delas é a necessidade de os entes federativos, na administração direta e indireta, instituírem sistemas de recebimento de denúncias e de proteção a reportantes (arts. 4º e 4º-A, da lei 13.608/18). A estruturação dessas unidades cabe, portanto, a administração direta e indireta.

Ocorre que, diante desse objetivo, o legislador se restringiu a estabelecer, em poucos dispositivos, as garantias essenciais a serem refletidas nas regulamentações dos entes federativos. Da maneira como está hoje desenhado, abre-se margem para a construção de uma multiplicidade de sistemas de proteção a reportantes sem uma base sólida a evitar abusos àqueles que, na tentativa de reportar atos ilícitos, expõem-se a riscos pessoais e profissionais.

Esses vários sistemas tendem a variar não apenas entre os entes federativos, mas também quanto ao objeto dos ilícitos apurados. A ausência de um escopo claro quanto às informações pretendidas e natureza dos ilícitos investigados dá abertura para o surgimento de sistemas de recebimento e processamento de denúncias que variam em suas garantias conforme o ato ilícito denunciado. O PL 2.581/23 é um exemplo disso, propondo normas específicas no âmbito do mercado de capitais, podendo o mesmo ocorrer para ilícitos ambientais, concorrenciais, lavagem de dinheiro etc.

Não se discute a necessidade de adaptações nesses sistemas a depender da natureza e gravidade dos ilícitos ou dos órgãos de apuração. Contudo, a inexistência de normas gerais sólidas, com proteções robustas, leva a um cenário de incertezas e prejuízos a eventuais reportantes.

Nesse sentido, a diretiva da União Europeia 2019/1937 apresenta um modelo interessante a se seguir, pois, ao tratar da proteção a reportantes, estabelece requisitos mínimos comuns aos seus Estados-Membros para garantir um alto nível de proteção e parâmetros de atuação para apurar reportes de violações a leis da União Europeia1.

Nota-se que a legislação europeia, respeitando a autonomia de cada Estado-membro, não entra em detalhes sobre a forma de processamento e apuração de denúncias, que poderá variar em sua adequação à legislação nacional, mas estabelece garantias e direitos imprescindíveis para a proteção de reportantes na comunidade europeia.

Este modelo poderia ser traduzido para o sistema brasileiro onde órgãos de persecução em diferentes esferas possuem unidades e procedimentos particulares de apuração de ilícitos. Tal qual na União Europeia, caberia à norma geral brasileira trazer maior uniformidade ao sistema, abordando os elementos fundamentais para um programa eficaz de proteção a reportantes e, ao mesmo tempo, deixando em aberto outros aspectos que poderão ser regulamentados por lei suplementar ou, na esfera privada, pelo exercício de autonomia de cada companhia.

Definição de reportante

A lei 13.608/18 não definiu quem seria o "informante" nela referido. Em tentativa de alcançar uma definição, Rhasmye El Rafih (2022) parte do disposto nos arts. 4º, caput, e 4º-A para apontar quatro elementos que trariam a definição legal almejada:

"Na lei 13.608/18, a definição legal do 'informante' se escora em quatro elementos, quais sejam: i) sujeito ("qualquer pessoa"); ii) ação ("relatar informações"); iii) conteúdo ("sobre crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público"); iv) finalidade da ação ("informações que sejam úteis para a prevenção, a repressão ou a apuração de crimes ou ilícitos administrativos")." (EL RAFIH, 2022, p. 83).

A partir desses elementos, a autora aponta ser o "informante" um gênero maior, onde categorias como o whistleblower, informantes policiais, bell ringers e leakers, por exemplo, seriam espécie (EL RAFIH, 2022).

Na esfera federal, o decreto federal 10.153/19 alterou a nomenclatura utilizada para "denunciante", definindo-o em seu art. 3º, III, como "qualquer pessoa, física ou jurídica" que realize as denúncias do art. 2º, V, da lei 13.460/17 ou do art. 4º-A da lei 13.608/18. Especificamente para reportes de crimes ou ilícitos contra o mercado de capitais, o art. 2º do PL 2.581/23 retornou ao termo "informante", definindo-o como quem "noticia, de forma voluntária, crimes ou quaisquer atos ilícitos no mercado de valores mobiliários".

A divergência de conceitos (e não apenas de terminologia) renova o entendimento já apresentado, o que evidencia a necessidade de uma definição única, em norma geral, para fins de uniformização e segurança jurídica sobre quem, de fato, são as pessoas protegidas no sistema da lei 13.608/18.

Diante do exposto, é possível notar uma abertura para um extenso grupo de sujeitos ao permitir que "qualquer pessoa" possa se enquadrar no conceito de reportante. Além disso, verifica-se no decreto federal 10.153/19 a possibilidade de pessoas jurídicas realizarem as denúncias referidas na lei 13.608/18. Em determinadas normas estrangeiras, com a estadunidense e europeia, os sistemas de proteção a whistleblowers costumam ser restritos a pessoas físicas, tratando-se de escolha própria do legislador brasileiro.

Diversamente do "denunciante" do decreto federal 10.153/19, a experiência internacional também revela a limitação de proteções e incentivos ao reporte às pessoas caracterizadas como um "whistleblower". Para El Rafih (2022, p. 129), o conceito envolve três requisitos fundamentais: "(i) ele não pratica ou participa da infração, (ii) não é vítima da infração relatada e (iii) é um Insider, portanto uma fonte qualificada de informação que possui acesso privilegiado".

Banisar (2011) ainda restringe o conceito de whistleblower àqueles que realizam a denúncia de forma voluntária, ou seja, sem que possuam o dever legal de reportar. Abordagem similar foi adotada no Dodd-Frank Act, nos EUA, que exige a espontaneidade da denúncia e exclui indivíduos que ocupem determinados cargos com obrigação de reportar.

Nota-se, portanto, que o whistleblower não é apenas um "informante", mas alguém que, enquanto terceiro à ilicitude, está em posição privilegiada em uma organização para fornecer informações relevantes sobre o ocorrido. São essas características que fazem desse indivíduo alguém merecedor de tratamento legal diferenciado, tanto em termos de proteção quanto de incentivo ao reporte.

De acordo com as boas práticas internacionais, o conceito de reportante deveria ser bem definido e amplo, abarcando qualquer funcionário ou trabalhador do setor público ou privado que reporte informações sobre irregularidades, e que corre risco de retaliação (Transparência Internacional, 2018)2. Questiona-se, contudo, se a abertura proposta no decreto federal 10.153/19, ampliando seu escopo para "qualquer pessoa", é recomendável.

Mesmo que uma definição ampla seja benéfica, deve-se atentar ao risco de equiparar verdadeiros whistleblowers a, por exemplo (i) coautores dos ilícitos reportados, mais bem enquadrados no instituto da colaboração premiada, (ii) terceiros espectadores que não têm qualquer relação com o ente privado ou público, ou mesmo (iii) advogados dos autores.

Nesse sentido, seria oportuno que a norma geral brasileira definisse claramente quem é o reportante que gozará de proteções e incentivos, bem como esclarecesse o escopo de aplicação da norma conforme abordado nesta primeira parte do artigo.

Nas partes seguintes deste artigo serão abordados outros elementos essenciais que deveriam estar previstos em lei geral, como as proteções fundamentais aos reportantes e os potenciais incentivos financeiros. 

_________

BANISAR, David. Whistleblowing: International Standards and Developments. In: Corruption and Transparency: debating the frontiers between State, Market and Society. Washington, D.C., 2011. Disponível em: [https://ssrn.com/abstract=1753180]. Acesso em 22/10/24.

CAMBI, Eduardo Augusto Salomão; e KICHILESKI, Gustavo Carvalho. Whistleblowing: corrupção e o informante do bem. Curitiba: Juruá, 2020.

CAVALI, Marcelo Costenaro; e BOTTINI, Pierpaolo. Proteger (e recompensar?) os denunciantes de boa-fé? (parte 2). Revista Consultor Jurídico. 12/2/24. Disponível em: [https://www.conjur.com.br/2024-fev-12/proteger-e-recompensar-os-denunciantes-de-boa-fe-parte-2/]. Acesso em 2/12/24.

EL RAFIH, Rhasmye. Whistleblowing, delinquência econômica e corrupção: Desafios para a consolidação de uma política geral de reportantes no Brasil. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2022.

TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL. A Best Practice Guide for Whistleblowing Legislation. 2018. Disponível em: [chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://images.transparencycdn.org/images/2018_GuideForWhistleblowingLegislation_EN.pdf]. Acesso em 19/9/24.

1 Para um panorama geral da Diretiva UE nº 2019/1937, vide CAVALI e BOTTINI, 2024.

2 Tanto a Transparência Internacional quanto o Conselho da Europa estipulam que a definição de whistleblower deve abranger todos os indivíduos que trabalham nos setores público ou privado, independentemente da natureza da sua relação de trabalho e se são pagos ou não (Council of Europe, 2014, Principle 3).

Olivia Castello Branco

Olivia Castello Branco

Associada no Maeda, Ayres & Sarubbi Advogados. Bacharel em Direito pela FGV/SP e pós-graduada em Compliance pela FGV/SP.

Thiago Borba

Thiago Borba

Bacharel em Direito (UFPR), com mobilidade acadêmica na Universidade de Bolonha. Especialista em Compliance (FGV/SP). Mestrando em Direito Comercial (USP). Advogado no Maeda, Ayres & Sarubbi Advogados

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