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Norma geral de proteção e incentivo a reportantes no Brasil - Parte II

O artigo analisa a evolução da proteção legal aos reportantes no Brasil, destacando avanços e lacunas, bem como a necessidade de uma norma geral clara, segura e eficaz para incentivar denúncias.

terça-feira, 6 de maio de 2025

Atualizado às 13:47

Na parte I deste artigo analisamos alguns aspectos da legislação brasileira de proteção a reportantes, incluindo (i) o escopo da aplicação da lei 13.608/18 e (ii) o conceito de reportante na legislação. Nesta segunda parte, iremos abordar um dos temas mais centrais para a eficácia desse sistema: a proteção ao reportante.

Há diversas razões que podem desincentivar uma pessoa a reportar uma irregularidade ou ilícito, desde preocupações profissionais, como demissões, até pessoais, como perseguições e ameaças à vida. Dessa forma, a proteção ao reportante se torna um elemento essencial para garantir a sua segurança e o exercício do seu direito de manifestação.

Alguns motivos comuns para as pessoas não reportarem incluem (i) temer as consequências legais, financeiras e reputacionais (ii) acreditar que nada será feito ou mudado e (iii) a incerteza de como, onde e para quem reportar.

Nesta parte II, será explorado, de maneira não exaustiva, alguns mecanismos fundamentais de proteção aos reportantes que deveriam estar previstos em uma lei geral sobre o tema, sendo levado em consideração também algumas limitações razoáveis a estas proteções.  

Proteção da identidade do reportante

A lei 13.608/18 trata da proteção da identidade do reportante em seus arts. 3º e 4º-B, os quais garantem o sigilo dos dados do reportante e a preservação de sua identidade, que somente poderá ser revelada "em caso de relevante interesse público ou interesse concreto para a apuração dos fatos" e com a concordância formal do reportante.

O decreto federal 10.153/19 buscou a operacionalização dessa proteção ao prever: (i) o momento da preservação da identidade do reportante, sendo desde o recebimento da denúncia (art. 6º); (ii) o prazo de 100 anos de restrição ao acesso aos elementos de identificação (art. 6º, §1º); (iii) os meios de preservação da identidade (art. 6º, §2º); (iv) o controle de acesso de agentes públicos (art. 6º, §3º); (v) o processo de pseudonimização para envio às unidades de apuração (art. 6º, §4º); (vi) hipótese do levantamento do sigilo somente quando for indispensável à análise dos fatos relatados na denúncia (art. 7º); e (vii) a necessidade de consentimento prévio do reportante para o encaminhamento da denúncia com elementos de identificação entre as unidades de ouvidoria do Poder Público (art. 8º).

Já o PL 2.581/23, específico para reportes de ilícitos no âmbito do mercado de capitais, dispôs em seu art. 5º que "o informante terá direito à preservação de sua identidade, a qual somente será revelada mediante comunicação prévia e com sua concordância por escrito".

Diante dos dispositivos acima, é possível notar algumas preocupações compartilhadas, como (i) a concessão imediata da proteção da identidade do reportante (sem a necessidade de análise de mérito da denúncia), e (ii) o consentimento prévio do reportante na hipótese de levantamento do sigilo.

Importante destacar que o consentimento prévio do reportante para o levantamento do sigilo concede ao reportante maior previsibilidade sobre as consequências do seu relato, criando um ambiente mais propício para a prevenção, apuração e punição de irregularidades.

A lei 13.608/18 estabeleceu que a identidade do reportante poderá ser revelada "em caso de relevante interesse público ou interesse concreto para a apuração dos fatos", previsão ampla e que pode abrir margem para interpretação e gerar incertezas quanto à confidencialidade da identidade do reportante. O PL 2.581/23, por sua vez, não menciona uma hipótese para esse levantamento de sigilo. Considerando as graves consequências que o afastamento do sigilo da identidade poderá ter para o reportante, seria recomendável que as hipóteses para remover essa proteção estivessem previstas em lei geral, de maneira clara e exemplificativa.

Não responsabilização do reportante

Outra proteção prevista na legislação brasileira é a não responsabilização civil ou penal do reportante. A lei 13.608/18 estabeleceu no parágrafo único do art. 4º-A que será assegurada ao reportante a "isenção de responsabilização civil ou penal em relação ao relato". O PL 2.581/23, por sua vez, abriu esse escopo propondo a "isenção de qualquer responsabilidade civil, administrativa, trabalhista ou penal em relação ao relato, mesmo que provada a sua posterior improcedência". 

Essa isenção busca incentivar os reportantes que estejam reticentes em relatar irregularidades por estarem possivelmente violando alguma norma ou cláusula contratual, como as referentes a proteção de dados, contrato de trabalho ou cláusulas de confidencialidade.

Apesar dessa abrangência de isenções de responsabilidade incentivar a realização de denúncias, é preciso se atentar (i) às pessoas excetuadas do enquadramento de reportante, como, os coautores dos ilícitos reportados ou quem têm o dever legal de tomar medidas apuratórias; (ii) à natureza dos delitos ou irregularidades praticados, evitando-se a prática de atos graves para possibilitar o reporte; e (iii) à vedação de proteções aos reportantes que relatarem fatos sabidamente falsos, conforme será descrito abaixo.

Assim sendo, além de prever de forma ampla e clara as isenções de responsabilidade concedidas aos reportantes, seria recomendável a norma geral também delimitar situações em que tais isenções não seriam aplicáveis.

Proteção contra retaliações

Adicionalmente, um programa de reporte eficaz precisaria estabelecer proteções contra retaliações aos reportantes. Quando um órgão público ou empresa privada toma alguma medida retaliatória contra um reportante, outros reportantes são desincentivados a denunciarem irregularidades, por receio das medidas que poderão vir a sofrer.

A lei 13.608/18 elencou, em seus arts. 4º-A, parágrafo único, e 4º-C, um rol exemplificativo de medidas de retaliação vedadas e as penalidades previstas para os agentes públicos que cometerem essas práticas.

O art. 10, III, do decreto federal 10.153/19 indicou a controladoria-Geral da União como o órgão competente para (i) apurar denúncias relativas a práticas retaliatórias contra agentes públicos e instaurar processos para responsabilização administrativa resultantes de tais apurações; (ii) adotar, de ofício, as medidas de proteção previstas no caput do art. 4º-C da lei 13.608/18; e (iii) suspender atos administrativos retaliatórios praticados.

O PL 2.581/23, por sua vez, propôs em seu art. 7º outras condutas que seriam consideradas como medidas de retaliação, assim como estabeleceu sanções a atos retaliatórios praticados no setor privado.

Sobre o tema, uma boa prática seria a definição em norma geral do escopo das condutas vedadas de forma abrangente, porém não exaustiva, de modo a fornecer mais segurança jurídica e evitar limitar o escopo da proteção concedida aos reportantes (G20, 2019). Ainda, a abrangência das medidas protetivas deveria se estender ao âmbito privado, de modo a alcançar condutas retaliatórias praticadas por entes privados.

A alternativa apresentada pelo PL 2.581/23 de autorizar, no âmbito privado, demissões por justa causa e sanções na CVM decorrentes de atos retaliatórios se mostra interessante para prevenir retaliações. Em uma norma geral, a expansão da medida para outras esferas além do mercado de valores mobiliários, contudo, demandaria a indicação de outra autoridade central para a imposição dessas sanções.

Boa-fé e a habilitação da denúncia

Foram previstas na legislação nacional, assim como em projetos de lei, limitações a determinadas proteções concedidas aos reportantes relacionadas à crença na veracidade do relato do reportante e à razoabilidade material da denúncia.

O art. 4º-A da lei 13.608/18 e o art. 6º, § 1º, do PL 2.581/23 estabelecem a exclusão das proteções legais àquele reportante que tiver apresentado, de modo consciente ou intencional, informações ou provas que sabia serem falsas. Ainda, o PL 2.581/23 estipulou que erros de interpretação do reportante sobre a existência de irregularidades não afetarão as proteções concedidas (art. 6º, § 2º).

Diante dessas disposições, entende-se que as proteções seriam concedidas para reportantes que denunciarem informações verídicas, ou que, à época do relato acreditavam ser verídicas, mesmo que posteriormente comprovadas errôneas.

Caso sejam reportadas informações sabidamente falsas, boas práticas recomendam que estes reportantes sejam responsabilizados, mediante sanções profissionais, empregatícias ou civis, sem prejuízo da reparação dos danos causados aos denunciados (TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL, 2018).

Uma limitação adicional às proteções prevista na legislação brasileira é referente à razoabilidade da denúncia e sua habilitação, sendo previsto na lei 13.608/18 que somente após considerado razoável o relato, serão asseguradas proteção integral contra retaliações e isenção de responsabilização civil ou penal (art. 4º-A).

Mais precisamente, o decreto federal 10.153/19 estabeleceu que os efeitos de proteção do art. 4º-A da lei 13.608/18 ocorrerão a partir da habilitação da denúncia, ao qual consiste no "procedimento de análise prévia por meio do qual a unidade de ouvidoria verifica a existência de requisitos mínimos de autoria, materialidade e relevância para a apuração da denúncia e o seu encaminhamento à unidade de apuração" (art. 3º, IV).

Para fins de uma norma geral, seria recomendável que tais limitações às proteções legais oferecidas ao reportante sejam analisadas e sopesadas com cautela, para evitar que haja uma exposição a riscos ainda maior, com a previsão de prazos razoáveis para habilitação e análise prévia do conteúdo do relato.

Diante do exposto nesta segunda parte do artigo, entende-se a essencialidade de previsões legislativas claras e objetivas referente às proteções aos reportantes para que haja um sistema de reporte de irregularidades eficaz. Já na terceira e última parte deste artigo será abordado um tópico um pouco mais polêmico sobre este tema: as premiações financeiras aos reportantes.

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TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL. A Best Practice Guide for Whistleblowing Legislation. 1/3/18. Disponível em: [https://www.transparency.org/en/publications/best-practice-guide-for-whistleblowing-legislation]. Acesso em 3/11/24.

G20. High-Level Principles for the Effective Protection of Whistleblowers. Osaka Summit. 2019. Disponível em: [https://www.mofa.go.jp/policy/economy/g20_summit/osaka19/en/documents/]. Acesso em 3/11/24.

Olivia Castello Branco

Olivia Castello Branco

Associada no Maeda, Ayres & Sarubbi Advogados. Bacharel em Direito pela FGV/SP e pós-graduada em Compliance pela FGV/SP.

Thiago Borba

Thiago Borba

Bacharel em Direito (UFPR), com mobilidade acadêmica na Universidade de Bolonha. Especialista em Compliance (FGV/SP). Mestrando em Direito Comercial (USP). Advogado no Maeda, Ayres & Sarubbi Advogados

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