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O rol não taxativo e a transmudação do contrato aleatório pelas operadoras de saúde

A exemplificidade do rol da ANS no contexto da essencialidade assistencial em saúde é medida principiológica que consagra a função social do contrato e a dignidade da pessoa humana.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Atualizado às 11:56

A incansável busca das operadoras de planos de saúde em mitigar os riscos dos contratos cativos e de longa duração em relação aos beneficiários dos planos de assistência à saúde e seguros-saúde não é uma celeuma atual, o que comporta uma análise normativa temporal para melhor compreensão.

A redação do art. 10, da lei 9.656/1998, é indelével quanto à cobertura obrigatória das doenças listadas na CID-10 e ainda, mais precisamente em seu art. 12, ressalvadas as segmentações contratadas, que o elenco das coberturas listadas são as mínimas exigíveis e não exauríveis às amplitudes da prestação dos serviços em saúde, conquanto tratar-se do próprio cerne do contrato de plano de saúde.

Ocorre que anteriormente à lei 14.307/22, que normatizou o processo de atualização do elenco de coberturas na saúde suplementar, alterando a redação da lei 9.656/1998 e criando a COSAÚDE - Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, não havia um prazo preestabelecido de submissão das tecnologias em saúde ao crivo avaliatório da ANS, fazendo com que os seus beneficiários não tivessem acesso a tratamentos e medicamentos mais modernos, eficazes e com menor risco de toxicidade, devido à morosidade da análise técnico-científica pela comissão responsável.

Com o advento da supracitada lei, em especial atenção aos §7º e §8º, do art. 10, o prazo de avaliação administrativa e respectiva atualização do rol dos procedimentos e eventos em saúde passou a ser de 180 dias, prorrogáveis por 90 dias e ainda, em relação aos tratamentos oncológicos, comporta a redução para 120 dias, prorrogáveis por mais 60 dias, considerada a urgência ínsita das doenças neoplásicas.

O processo de atualização do rol é premissa inerente à própria prestação dos serviços em saúde, pois com o avanço da Medicina, além de novas moléstias não catalogadas na classificação internacional de doenças, sejam de origem genética ou hereditária, outros tratamentos em saúde mais avançados ou mais efetivos surgem, o que derrui na origem a possibilidade em se ter um rol engessado e limitativo, o que impõe a primeira tese para derruir o argumento da taxatividade do elenco de procedimentos de cobertura obrigatória pelas operadoras de planos de saúde.  

Sobre a aleatoriedade do instrumento contratual infere-se fatos futuros de natureza tipicamente securitária, haja vista que o beneficiário que contrata um plano de saúde, ainda que não queira estar sujeito à alguma doença, firma a avença por prazo indeterminado, o que enseja a catividade e sua longa duração, pagando o preço estabelecido pela operadora de saúde, para que, na eventual necessidade do uso dos serviços em saúde (álea), esteja assegurado, a despeito de eventuais riscos do negócio, inerentes à atividade comercial da pessoa jurídica prestadora dos serviços de assistência à saúde.

Neste sentido, o art. 1º, inciso I, da lei 9.656/1998 estabelece a garantia da prestação continuada dos serviços em saúde, sem limitação financeira, reverberando que o risco decorre da natureza obrigacional da avença, vez que o beneficiário pode pagar a vida inteira pelo plano de saúde, sem que dele faça uso; entretanto, a vertente econômico-financeira sempre surge como mola propulsora das operadoras de saúde que intenta vigorosamente subverter as características e finalidades dos contratos de planos de saúde.

Para tanto, os mecanismos de regulação surgem para equalizar a sistemática assistencial em eventuais disparidades, dentre as quais citamos a cobertura mínima, imposição de carência e CPT (cobertura parcial temporária), para os casos em que o beneficiário possua doença ou lesão preexistente, vedadas quaisquer imposições de natureza discriminatória quanto à idade, histórico de saúde, limites de utilização ou outra variável que induza a transferência do risco negocial aos seus usuários.

Nas palavras de BIAZEVIC: "O usuário tem como propósito contratar serviços de saúde para utilizar na eventualidade de algum infortúnio. A operadora tem com propósito auferir lucro através da exploração da atividade econômica". Neste sentido, advém a contraposição das legítimas expectativas entre aderente e o proponente e que até hoje são ponto de debate, inclusive, após o advento da lei 14.454/22, que sedimentou o entendimento acerca da exemplificidade do rol da ANS, ou como também denominada taxatividade mitigada.

Entretanto, novo ponto de inflexão foi suscitado pela ADIn 7.265, proposta pela União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde, que sustenta junto à Corte Suprema, a inconstitucionalidade da supracitada Lei, à luz do caráter suplementar da saúde privada e ainda, que a amplitude de coberturas excepcionais cria um óbice econômico-financeiro de insustentabilidade do sistema privado de saúde.

Em que pese os reiterados argumentos das operadoras de saúde quanto à necessária previsibilidade das coberturas para a manutenção do sistema de saúde ofertado na esfera privada, a fim de viabilizar o pleno equilíbrio contratual não prospera, pois em se tratando de contrato de adesão, tal critério não é factível na sua origem, considerado o fato de que neste tipo de relação as cláusulas não podem ser previamente discutidas entre os contratantes.

Não obstante, o consumidor sempre padece de sua condição de hipervulnerabilidade técnica e econômica, o que invoca a concomitância da legislação consumerista, estabelecida pelo art. 1º, da lei 14.454/22, que afastou o entendimento preconizado pelo artigo 35-G, da lei 9.656/1998, quanto à aplicabilidade subsidiária da lei 8.078/1990, revigorando a relevância protetiva em favor dos usuários. 

Ainda que as operadoras de saúde invoquem em sua defesa que o aumento das coberturas em saúde poderá elevar os custos das mensalidades a serem pagas pelos beneficiários de saúde e que o sistema privado padece de grave crise financeira, devido a não previsibilidade das coberturas pelas quais será obrigada a custear, não consegue justificar o aumento em seu lucro líquido, que em 2024 foi de R$ 11,1 bilhões, o que impõe a análise das diversas arbitrariedades promovidas pelas operadoras de saúde, das quais podemos citar: negativas de fornecimento de medicamentos, reajustes sem base atuarial idônea; cancelamentos unilaterais de contratos; seleção de riscos entre outros.

Em síntese, será que os verdadeiros vilões desta relação são realmente os beneficiários que quando precisam de um tratamento de saúde imprescindível à salvaguarda de sua vida recebem a recusa de cobertura pela operadora? 

Será que os pacientes que necessitam de terapias continuadas ou de atendimento multiprofissional em saúde vindicam os respectivos tratamentos no intuito de lesar deliberadamente as operadoras?

Será que pessoas idosas que contribuíram religiosamente e muitas das vezes, sacrificando outras necessidades familiares, priorizando as mensalidades do plano de saúde são as responsáveis diretas pela "penúria financeira", arguida pela saúde suplementar?

Ou talvez a responsabilidade recaia sobre os pacientes em tratamento de doenças graves e raras e que são surpreendidos com o cancelamento injustificado de seu plano porque tornaram-se "onerosos em demasia" às operadoras de saúde suplementar. Fica a reflexão para aqueles que lerão este artigo.

Priscila de Melo Side Gomes

VIP Priscila de Melo Side Gomes

Advogada especialista em Direito da Saúde. Membro Comissão Sudeste Direito da Saúde e Comissão Nacional Def. Direitos Pessoa com Câncer/ABA.Vice-Presidente da Comissão Bioética e Biodireito da OAB/MG.

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