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A (necessária) diversidade de gênero no Judiciário brasileiro

A diversidade de gênero no Judiciário é essencial para a representatividade e a equidade, além de desafiar narrativas sobre mérito e competência que privilegiam homens.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Atualizado às 14:27

O Brasil possui política afirmativa de gênero para o Poder Judiciário, implementada através do art. 1º-A, da resolução 106/10, do CNJ, com redação dada pela resolução 525/23. A política, contudo, não é aplicável aos Tribunais Superiores (a exemplo do STJ e do STF), e passou a ser aplicada sob resistência significativa entre associações, magistrados e comunidades jurídicas1

Não obstante as vozes contrárias, a questão parece ser muito clara: trata-se de medida urgente, que visa reparar uma falha histórica e social que não mais cabe no século XXI, sendo uma questão de direito, plenamente constitucional, e a demonstração do início da tomada de medidas pelo Estado brasileiro no sentido de satisfazer a constitucional previsão de igualdade e o compromisso internacional firmado pelo Brasil relativo à busca da equidade de gênero nas instituições.

As vagas abertas no STJ trazem incertezas quanto ao perfil dos futuros ocupantes. Não surpreenderia, infelizmente, se os postos anteriormente ocupados por mulheres fossem preenchidos por homens.

É interessante notar como, sempre que se fala em inclusão de gênero, exige-se uma justificativa acerca da necessidade do estabelecimento de políticas afirmativas: é que em uma sociedade utilitarista, espera-se das mulheres (e de qualquer grupo socialmente marginalizado) a provação contínua. Sob a falsa bandeira do mérito, somente homens brancos alcançam o poder. Questiona-se, portanto, se apenas eles detêm a competência técnica necessária para ascender aos postos mais altos da magistratura, ou se enfrentamos na sociedade um pacto silencioso pela alocação de certas pessoas em cargos determinados.

A perquirição acerca do porquê mulheres importam no Judiciário surge constantemente quando o tema é abordado, e pesquisas acadêmicas sérias sobre o tema da feminização do Judiciário2 demonstram que a ascensão de magistradas na carreira é institucionalmente árdua, existindo um "teto de vidro" que dificulta o caminho por elas percorrido. Em suma, o que as pesquisas nos mostram é que, ao invés de questionarmos se mulheres no Judiciário fariam alguma diferença por serem mais "justas" ou equilibradas, deveríamos questionar por que magistradas que possuem competência técnica têm muito mais dificuldade do que os magistrados com essas mesmas competências para ascender na carreira. Precisamos parar de buscar justificativas essencialistas, que falam sobre uma falaciosa natureza feminina e buscar uma análise social séria para enfrentar um fenômeno baseado em barreiras institucionais que não deveriam existir.

Deveríamos, portanto, inverter a lógica da tentativa de justificar a presença da mulher em posições de poder e perguntar: por que apenas homens seriam considerados competentes? Será que só homens brancos possuem as habilidades necessárias para ocupar cargos de liderança e poder? Não existiria, na verdade, um pacto silencioso que reserva as posições mais altas a um grupo específico de pessoas?

Em trabalho que questiona por que a presença de mulheres no Judiciário importa (why women in the judiciary really matter), a professora Sally J. Kenney (2012) afirma que "o ônus da prova' da questão aqui posta deveria recair sobre aqueles que querem excluir as mulheres e não sobre quem quer incluí-las" (Kenney, 2012, p. 175, tradução nossa).

Deveríamos estar preocupados, ao falar em inclusão feminina nos Tribunais, na busca pela legitimidade dessas instituições. Afinal, órgãos julgadores são compreendidos atualmente, pela ciência do direito e da política, como um órgão político, pertencente à estrutura democrática composição (Malesson, 2003, p. 19). A legitimidade de uma instituição perpassa pelos critérios do simbolismo e da confiança pública. O primeiro, não está situado em como os profissionais irão julgar, mas na noção de que as pessoas que dizem o que é o direito devem representar, ao menos fenotipicamente, a população. A confiança pública, a sua vez, é responsável por mostrar à sociedade que todos podem estar representados naquele espaço de poder (Malesson, 2003, p. 19).

A realidade, contudo, é que as mulheres correm o risco de perder mais cadeiras no alto escalão do Judiciário, afinal, o STF já teve o posto da ministra Rosa Weber ocupada por um homem (e aqui, repise-se, não se questiona a falta de competência do ministro que ocupou o cargo, mas sim a suposta inexistência de uma mulher capaz de ocupar a cadeira que estava vaga), e agora paira o mistério sobre quem ocupará as cadeiras vagas do STJ.

Na obra "a vida psíquica do poder", Judith Butler analisa como a teoria do poder e a teoria da psique iluminam uma à outra e faz uma profunda perquirição, a partir de teorias filosóficas e da psicanálise, acerca de como o sujeito se forma na subordinação (BUTLER, 2024). A autora afirma que o poder é algo que forma o sujeito, que determina a própria condição de sua existência e a trajetória de seu desejo, o poder não é apenas aquilo a que nos opomos, mas também e de modo bem-marcado, aquilo de que dependemos para existir e que abrigamos e preservamos nos seres que somos (BUTLER, p. 10).

Ao deixarmos mulheres de fora dos altos bancos do Judiciário, passamos à sociedade a ideia de que aquele Poder tem um fenótipo muito bem-marcado, e de que não há espaço para as pessoas do gênero feminino escalarem essas funções, ou seja, de que o poder não pertence às mulheres.

A ausência de símbolos que demonstrem que as instituições pertencem igualmente a todas as pessoas, e não apenas aos homens, deixará profundas marcas na formação dos indivíduos em nossa sociedade. Em um contexto em que discursos misóginos circulam amplamente nas redes sociais, a falta de representatividade feminina nas instituições públicas afeta não somente a confiança e as aspirações de nossas meninas, mas também compromete o desenvolvimento crítico dos nossos meninos, privando-os de referências essenciais para contrapor esses discursos preconceituosos. Dessa maneira, distanciamo-nos cada vez mais de uma sociedade justa e pacífica, transmitindo implicitamente a mensagem de que apenas aos homens cabem os espaços públicos e postos de liderança, enquanto às mulheres resta a esfera privada da submissão.

E o mérito? Não há qualquer desmerecimento meritório. As vozes contra as campanhas por mais mulheres no poder podem até almejar, mas não podem ser bem-sucedidas nesse fraco argumento. As mulheres que compõem as listas tríplices (da magistratura e do Ministério Público) indicadas pelo STJ para composição das cadeiras vagas são tão bem-preparadas quando os homens que integram a mesma lista; basta analisar os currículos de todos.

Ocorre que a ideia de um profissional "universal", que atende a todos os critérios profissionais é sempre voltada à figura do masculino, e nasce do ideário do que é ser masculino, no sentido da ausência de preocupações com tarefas domésticas, com a criação e filhos, ou com outros assuntos que não sejam os do trabalho de fora de casa. Esse seria o "profissional ideal", aquele que a quem as cadeiras de poder devem ser reservadas.

Não é o mérito, contudo, que decide quem ocupa certos postos de poder e, no Judiciário, temos pesquisas (por. Ex. Bonelli, Epstein, Severi, Kahwage, Kenney, Andrade) que nos falam sobre isso: há questões políticas e institucionais que interferem na escolha de quem são os profissionais que merecem promoção na carreira. Não se trata, portanto, de uma escolha neutra, mas de decisões, conscientes ou não, que visam a manutenção do poder a um determinado grupo social.

Portanto, colocar uma mulher em um dos mais altos postos do Judiciário brasileiro é sim uma decisão política, que fala sobre o compromisso com a agenda de gênero, uma pauta que só pode ser enfrentada por governantes que possuem coragem de assumir um compromisso dessa natureza. Falta, contudo, encontrar quem tenha essa coragem, cabendo a nós, enquanto isso, levantar nossas vozes para sermos ouvidas.

__________

1 Por ex.: MARTINS, Ives Gandra da Silva Martins. Inteligência do artigo 93 da constituição federal - imposição da lei suprema - lei complementar único veículo adequado para promover os critérios de promoção de magistrados - atos regimentais dos tribunais ou do conselho nacional de justiça não podem modificar artigo 93 da CF e o estatuto da magistratura - promoção por antiguidade e merecimento - resolução do conselho nacional de justiça nº 525/2023 - participação de mulheres paridade de gênero - cotas sociais interpretação hermenêutica - princípios constitucionais da proporcionalidade razoabilidade e igualdade - parecer. São Paulo: 19/03/2024. Disponível em https://www.migalhas.com.br/arquivos/2024/3/F6309349D5EBBA_PARECERMAGISTRATURAVERSAOPUBLI.pdf. Acesso em 01 jun. 2024.

2 BONELLI, Maria da Gloria; OLIVEIRA, Fabiana Luci de. Mulheres magistradas e a construção de gênero na carreira judicial. Novos estudos CEBRAP, v. 39, n. 1, p. 143-163, jan./abr. 2020. Disponível em: https://doi.org/10.25091/S01013300202000010006. Acesso em: 05 abr. 2025.

3 ANDRADE, Ana Carolina Annunciato Inojosa de. A feminização do tribunal de justiça do estado de São Paulo no período de 1988 a 2023: uma análise da existência de barreiras simbólicas ou materiais à transversalização de gênero na magistratura. 2023.

4 BONELLI, Maria Gloria. Carreiras jurídicas e vida privada: intersecções entre trabalho e família. Cadernos Pagu, n. 46, p. 245-277, jan./abr. 2016. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8645799. Acesso em: 05 abr. 2025.

5 BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Autêntica, 2024.

6 EPSTEIN, Cynthia Fuchs et al. Glass ceilings and open doors: Women's advancement in the legal profession. Fordham Law Review, v. 64, n. 2, p. 291-449, 1995. Disponível em: https://ir.lawnet.fordham.edu/flr/vol64/iss2/2/. Acesso em: 05 abr. 2025.

7 KAHWAGE, Tharuell Lima; SEVERI, Fabiana Cristina. Para além de números: uma análise dos estudos sobre a feminização da magistratura. Revista de Informação Legislativa, v. 56, n. 222, p. 51-73, abr./jun. 2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/56/222/ril_v56_n222_p51. Acesso em: 05 abr. 2025.

8 KENNEY, Sally. Gender and justice: Why women in the judiciary really matter. Abingdon: Routledge, 2012.

Ana Carolina Annunciato Inojosa de Andrade

Ana Carolina Annunciato Inojosa de Andrade

Advogada. Mestre em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUCC. Especialista em direito civil.

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