Interdição cautelar da Medicina: Aspectos jurídicos e disciplinares
A interdição cautelar do exercício da medicina, como medida excepcional, vai além da questão ética: revela o ponto de tensão entre proteger a sociedade e garantir o devido processo ao médico.
terça-feira, 29 de abril de 2025
Atualizado às 13:23
Introdução
A interdição cautelar do exercício da medicina caracteriza-se como um dos mecanismos mais incisivos e excepcionais da regulação da atividade médica no Brasil. É uma resposta administrativa de natureza acautelatória adotada pelos CRMs - Conselhos Regionais de Medicina, sujeita a referendo do CFM - Conselho Federal de Medicina, com potencial impacto imediato tanto na esfera individual do profissional da medicina quanto na dimensão coletiva da saúde pública. Trata-se de medida de altíssima gravidade, cuja complexidade ética, jurídica e processual desafia o intérprete do Direito Médico.
Conceito e natureza jurídica
Segundo entendimentos consolidados no âmbito do CFM (v. resolução CFM 1.987/12 e CFM 1.789/2006), a interdição cautelar consiste na suspensão provisória e imediata do exercício da medicina por profissional cuja conduta, por ação ou omissão, represente risco iminente de dano irreparável ou de difícil reparação ao paciente, à população e ao prestígio e bom conceito da profissão.
Não se trata de pena disciplinar, mas sim de medida administrativa cautelar e preventiva, com finalidade exclusivista de tutela do interesse público e da segurança dos pacientes, sem presunção de culpa do interditado.
A nosso ver a interdição cautelar está ancorada no princípio da precaução, atuando como resposta excepcional diante de um juízo de risco verossímil e relevante à coletividade, sem desprezar a garantia do contraditório e da ampla defesa.
O contraditório na interdição cautelar
Em seus julgados, o CFM tem entendido que o exercício da ampla defesa e do contraditório no processo de interdição cautelar é diferido. Isso porque a sistemática adotada para julgamento da medida cautelar é igual à sistemática adotada em provimentos judiciais cautelares e antecipatórios, onde, dada a urgência e o perigo da continuidade da atuação do agente, em caso de impossibilidade do contraditório prévio, posterga-se a garantia constitucional para um momento posterior, no processo ético-profissional, preservando-se, assim, a efetividade de outros direitos igualmente constitucionais: a vida, a incolumidade física das pessoas e a boa prática da medicina.
Para nós, o grande desafio é garantir o equilíbrio dos direitos à vida e incolumidade física, dos deveres da ética profissional e das boas práticas da medicina com o exercício pleno do direito de defesa e contraditório do médico interditando, permitindo, sempre que possível, que ele possa se manifestar, ainda que de forma preliminar, sobre o cabimento ou não da interdição cautelar, sem adentrar ao mérito da questão a ser apurada no processo ético-profissional.
O Código de Processo Ético-Profissional assegura, na seção IV, art. 29, §3º, que o médico interditando deverá ser notificado com pelo menos 72 horas de antecedência da sessão plenária do CRM, sendo facultada a sua presença ou de seu representante legal (advogado devidamente constituído), para, querendo, fazer sustentação oral no prazo de 10 minutos.
Logo, a previsão é que o direito de defesa seja exercido, ainda que de forma singular.
A jurisprudência administrativa do CFM tem reforçado que a interdição cautelar, por sua natureza gravosa, deve ser instrumento de última ratio, primando pelo respeito aos direitos fundamentais, ainda que no exercício do poder de polícia administrativa.
Procedimento de aplicação
A interdição cautelar poderá ser aplicada quando da instauração do processo ético-profissional ou no curso da instrução, quando houver a ocorrência de fatos novos diversos daqueles que fundamentaram a abertura da sindicância ou a instauração do processo. Dada sua natureza cautelar, o art. 29, §2º, do CPEP veda a possibilidade de aplicação na sessão de julgamento do processo ético-profissional.
Compete ao pleno do Conselho Regional de Medicina, em sessão especialmente convocada para esse fim, que poderá ser presencial ou por ambiente eletrônico, por votação de maioria simples e com respeito ao quórum mínimo de 11 e máximo de 24 conselheiros, a aplicação da interdição cautelar.
Da decisão caberá recurso no prazo de cinco dias. A efetivação da interdição dependerá de referendo obrigatório do CFM, que avaliará legitimidade, preenchimento dos requisitos mínimos e a pertinência da medida.
Requisitos de validade
Para que a interdição cautelar seja válida, são imprescindíveis:
a) Prova da probabilidade da autoria e da materialidade da prática apurada. A normativa aplicada fala em prova e não em indícios. A existência de simples indícios é insuficiente para a aplicação da interdição cautelar. A materialidade dos fatos precisa estar demonstrada e a autoria razoavelmente indicada, de forma a garantir a verossimilhança da acusação. Não pode haver incerteza significativa quanto ao potencial danoso da conduta. Os elementos probatórios devem evidenciar, com razoável segurança, que houve conduta lesiva, distinta daqueles fatos já processados ou sindicados em outras oportunidades;
b) Fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação ao paciente, à população e ao prestígio e bom conceito da profissão. A normativa fala em requisitos conjuntos, ou seja, o dano irreparável ou de difícil reparação deve ser ao paciente/população e além disso, deve ferir o prestígio e bom conceito da medicina. Se estiver presente somente o dano ou somente o desprestígio, não está cumprido o requisito. A ideia é que a interdição cautelar permita poupar que a conduta do médico possa resultar em prejuízos ainda maiores ao seu paciente, à terceiros e à sociedade médica;
c) Contemporaneidade dos fatos. Os fatos que sustentarem o pedido de interdição cautelar devem ser atuais. Deverá ser levado em consideração o tempo decorrido entre a data do conhecimento dos fatos pelo Conselho Regional de Medicina (e não da ocorrência dos fatos) até a efetiva interdição, que não poderá exceder ao prazo de seis meses. Fatos antigos não admitem a aplicação da medida cautelar de interdição;
d) Decisão fundamentada. O ato administrativo de interdição cautelar exige motivação explícita, indicando, em linguagem clara e precisa, de forma detalhada, as razões do convencimento do colegiado. É necessário que haja correlação entre as condutas apuradas e eventuais infrações praticadas pelo interditando. A decisão genérica e sem fundamentação pormenorizada anula a interdição;
e) Referendo do CFM. A decisão de interdição cautelar total ou parcial será encaminhada, com recurso ou não, ao CFM, que designará um relator para elaborar relatório e voto e submeterá para julgamento na sessão plenária.
Efeitos e abrangência
A decisão de interdição cautelar total ou parcial, após a validação pelo CFM, terá abrangência nacional e deverá ser comunicada aos estabelecimentos onde o médico interditado exerce a atividade profissional, além da vigilância sanitária. O interditado será notificado a apresentar a carteira profissional e cédula de identidade profissional no CRM onde possui inscrição, sob pena de sofrer medida judicial de busca e apreensão. A informação será lançada no cadastro do interditado e poderá ser publicada no Diário Oficial da União e publicizada nos sites dos CRMs e do CFM.
Prazos processuais
O processo ético-profissional no qual tiver sido decretada a interdição cautelar terá tramitação prioritária, devendo ser julgado no prazo máximo de seis meses. Excepcionalmente, por motivo justo e devidamente autorizado pela Corregedoria, o prazo poderá ser prorrogado por igual período, uma única vez. O prazo de seis meses poderá não ser observado caso o atraso tenha sido provocado por ato abusivo do médico interditado, sem justo motivo.
Casos de aplicação
Dentre as situações mais comuns de aplicação da interdição cautelar do exercício da medicina estão a realização de procedimentos cirúrgicos sem habilitação comprovada, resultando em danos graves ou risco iminente aos pacientes; a prescrição indiscriminada de medicamentos controlados, expondo a população a riscos tóxicos e dependências; o exercício da medicina sob efeito de álcool ou outras substâncias psicoativas, prejudicando a capacidade técnica e gerando risco objetivo à saúde dos pacientes; o assédio sexual a pacientes e a divulgação em massa de promessas fraudulentas ou sensacionalistas em redes sociais, com evidente potencial de prejudicar o prestígio da profissão e induzir a erro a população.
Conclusão
A interdição cautelar do exercício da medicina constitui um instrumento de grande relevância no panorama regulatório da atividade médica no Brasil, com contornos singulares que a distinguem de outras ferramentas disciplinares à disposição dos Conselhos de Medicina. Por seu caráter excepcional e potencialmente lesivo à esfera de direitos do profissional, exige-se do intérprete e do aplicador uma compreensão sistemática dos seus requisitos e uma ponderação criteriosa de sua necessidade em cada caso concreto.
No delicado equilíbrio entre a proteção do interesse público - materializado na saúde dos pacientes e na credibilidade da profissão médica - e a salvaguarda dos direitos fundamentais do médico, especialmente a ampla defesa e o contraditório, reside o maior desafio relacionado à interdição cautelar. É imperativo que os Conselhos Regionais e Federal de Medicina atuem com proporcionalidade, evitando que um instrumento concebido para prevenção de danos converta-se em mecanismo de punição antecipada, sem o devido processo legal.
A legitimidade da interdição cautelar está intrinsecamente vinculada ao respeito escrupuloso aos seus pressupostos normativos, notadamente a robustez probatória, a contemporaneidade dos fatos, a fundamentação idônea e detalhada e o potencial lesivo da conduta. Só assim se poderá garantir que esse instituto cumpra sua função constitucional de proteção da coletividade sem violar direitos individuais igualmente tutelados pela ordem jurídica.
Por fim, é fundamental que os operadores do Direito Médico estejam atentos às peculiaridades procedimentais da interdição cautelar, em especial no que concerne aos prazos exíguos para manifestação e recurso, bem como à necessidade de pronta contestação de eventuais arbitrariedades na sua aplicação. O controle jurisdicional dessa medida administrativa, quando necessário, constitui garantia essencial no Estado Democrático de Direito contra possíveis excessos no exercício do poder de polícia pelos órgãos de fiscalização profissional.


